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Festa de Nossa Senhora dos Navegantes

3 ENCONTROS COM O PENSAMENTO DE BAKHTIN:

4.2 FESTAS

4.2.1 Festa de Nossa Senhora dos Navegantes

A festa de Nossa Senhora dos Navegantes é organizada pela comunidade católica da Costa da Lagoa, cuja sede é a Capela Santa Cruz, e pelos festeiros elegidos entre partícipes da comunidade religiosa, contando com a colaboração da comunidade em geral. Essa festa é uma das mais expressivas da Costa e é realizada na primeira quinzena do mês de fevereiro, quando a comunidade está envolvida com as demandas do turismo.

As festividades têm início na sexta-feira com missa de abertura e a chegada na comunidade da imagem de Nossa Senhora dos Navegantes, que é trazida da igreja católica da Lagoa da Conceição, e se estende entre missas, almoços comunitários, bailes e a procissão, até domingo.

Em terra, o almoço festivo é um autêntico “banquete rabelaisiano”, com muita carne, pão e bebida, seguido de um baile no salão paroquial, que, embalado pelo som de bandas de música sertaneja, arrasta-se madrugada adentro. No que diz respeito ao ato de comer coletivamente, o enxergamos atrelado ao trabalho da pesca que se caracteriza pelo sentido de coletividade e unidade compreendidas nesse contexto como fundamentais na subsistência do homem em sua relação com a natureza.

A relação entre trabalhar e comer fica, neste contexto, prenhe de sentido, pois,

Enquanto que, no sistema das imagens do povo trabalhador, que continua a ganhar a vida e o alimento no combate que é o trabalho, que continua a devorar a parte do mundo que acaba de conquistar, de vencer, as imagens de banquete guardam sempre sua importância maior, seu universalismo, sua ligação essencial com a vida, a morte, a luta, a vitória, o triunfo, o renascimento. (BAKHTIN, 1993, p. 246)

Figura 4 - Procissão dos Barcos. Verão. 2011.

Figura 5 - Procissão dos barcos. Verão. 2012.

Fonte: Acervo de um dos Interlocutores da Pesquisa

São barcos, lanchas e canoas adornados com balões e bandeiras coloridas e bandeiras de times de futebol, principalmente do Avaí e do Figuerense, times catarinenses representativos da capital florianopolitana. A procissão é puxada por um barco que leva a estátua de Nossa Senhora rodeada de flores, crianças vestidas de anjo, padre e as senhoras responsáveis pelo ciclo de novenas, barco este seguido por outros, como o que transporta a tradicional banda da polícia militar do Estado de Santa Catarina.

É o momento daapoteose carnavalesca em que cada barco, canoa e lancha desfilam pela orla da lagoa com uma produção semiótica que reúne fogos de artifício, música, dança, comida e bebida.

Verificamos que no momento da procissão, conforme as fotos das figuras 4 e 5, dispõem-se, lado a lado, barcos fantasiados com a seriedade oficial da igreja com atos contidos, regrados e solenes; e barcos onde a liberdade desponta nas bandeiras de papel, fitas e balões coloridos juntamente com o movimento dos sujeitos dançando livremente aos embalos dos diversos gêneros musicais marcantes na comunidade, como o sertanejo, forró, funk e reggae.

Em suma, temos presentes a religiosidade e as condutas próprias das festas do carnaval, em intenso diálogo. Observamos que as centelhas de um mundo não oficializado emergem nesses momentos de

festividade coletiva, explodindo nos ritmos musicais distintos que compartilham do espaço festivo, dos camelôs vendendo roupas, CDs e jogos, dos artesãos nativos da comunidade vendendo rendas de bilro, crochê, tarrafas, dos artesãos não nativos vendendo brincos, pulseiras e colares, além dos frequentes vendedores ambulantes com suas guloseimas à vista.

Soma-se a tudo isso os tradicionais doces de dona Lisa que de barco faz o trajeto entre os restaurantes e vilas para aportar em terra carregando na cesta de vime as embalagens recheadas de brigadeiros, beijinhos, trufas de morango e de uva, bolo, rocambole, cocadas e sonho, vendidos de mesa em mesa nos restaurantes e nas areias da orla da lagoa.

Presenciamos nesta “farra” a manutenção da ordem social nos parâmetros da oficialidade e o seu reverso. As concepções se encontram e alimentam a reelaboração de mundo; aqui é possível apreender a realidade penetrando numa segunda vida, que, para Bakhtin (1993), permite ao sujeito experimentar e “estabelecer relações novas, verdadeiramente humanas, com os seus semelhantes.” (p. 9). Entendemos, igualmente, e repisamos, que reside aqui a profundidade do sentido de carnavalização trazido por Bakhtin.

Essa relação torna-se indiscutível se compreendemos que a intenção da festa é celebrar, agradecer e pedir proteção a Nossa Senhora dos Navegantes também conhecida na cosmologia africana por Iemanjá. Agradecer pela safra de peixes e sua abundância, para pedir a proteção aos pescadores com o objetivo de que continuem vencendo as agruras da subsistência.

A Festa de Nossa Senhora dos Navegantes é a festa que abrange a comunidade em sua totalidade; certamente está intrinsecamente relacionada ao cotidiano dos sujeitos que lá vivem, e em outros aspectos, como os já apresentados, podemos concluir que essa festa reúne elementos que, segundo Bakhtin (1993), estão associados às imagens das festas populares da Idade Média e do Renascimento.

Destacamos o excesso de bebidas e comidas em meio às falas mescladas por palavrões, xingamentos,estabelecendo um contato franco e direto entre os sujeitos. A vida privada de alguns sujeitos vem a público, passando de boca em boca entre comentários, julgamentos e deboches, com temáticas voltadas para questões conjugais, intrigas familiares e de amizades.

Assim, ao redor do balcão e das mesas dispostas pelo salão paroquial, é possível observar que “As conversações à mesa são conversas livres e brincalhonas: o direito de rir e de entregar-se a

palhaçadas, de liberdade e de franqueza, concedido à ocasião da festa popular, estendia-se a elas.” (BAKHTIN, 1993, p. 249). Reina nesses momentos a imagem do triunfo do coletivo, em síntese, “Essas imagens são profundamente ativas e triunfantes, pois elas completam o processo de trabalho e de luta que o homem, vivendo em sociedade, efetua com o mundo.” (p. 264).