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2 GOVERNOS E POLÍTICAS: DILEMAS DA INDÚSTRIA CALÇADISTA EM UMA CONJUNTURA DE SIGNIFICATIVAS MUDANÇAS

2.2 FHC e Lula: Continuidade ou descontinuidade das políticas econômica e industrial?

avançasse no sentido de recuperar a esperança de lutar pela construção de um caminho de desenvolvimento, conforme ponderam.

[...] Esta trajetória foi favorecida, em um primeiro momento, pelas condições internacionais, que em seguida, no entanto, atuaram fortemente em sentido contrário. As mudanças nas condições internacionais pós-crise, a sobrevalorização do real e a explosão do fenômeno China desenham um contexto que acentua a relevância do debate sobre o projeto de desenvolvimento que se deseja para o país, colocando novos e difíceis desafios à Política Industrial [...] (CANO; SILVA, 2010, p. 19).

2.2 FHC e Lula: Continuidade ou descontinuidade das políticas econômica e industrial?

Diante do cenário até então delineado, consideramos relevante fazer um contraponto entre as políticas econômicas e industriais do governo de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Para isso, buscamos embasamento teórico em alguns estudiosos do assunto, como Morais e Saad-Filho (2011) e Ferraz (2009). Os primeiros chamam a atenção para as políticas macroeconômicas adotadas no início do primeiro governo Lula que mantiveram inalteradas aquelas introduzidas pelo governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) após a crise do real, em 1999. Embasados pelo pensamento de Ferraz, Crocco e Elias (2003), os autores consideram que essas políticas eram baseadas no paradigma neoliberal e, tipicamente, inspiradas pela abordagem dos mercados eficientes. “[...] Sua ênfase na ‘competitividade’ e na estabilidade monetária substituiu gradualmente, a partir dos anos 1980, o paradigma desenvolvimentista periférico fundado no dirigismo estatal para assegurar o crescimento acelerado [...]” (MORAIS; SAAD-FILHO, 2011, p. 507).

Não é à toa que os autores consideram que as políticas macroeconômicas mantidas por Lula eram fundadas no famoso tripé composto por uma política monetária determinada pelas metas de inflação, câmbio flutuante e uma política fiscal visando manter um superávit primário que compensasse o déficit nominal das contas pública, no contexto do artigo, essas são as políticas neoliberais. Por isso Morais e Saad-Filho (2011) salientam que essas políticas são também associadas às reformas institucionais da década de 1990, que resultaram em forte liberalização comercial, desregulamentação financeira, uma crescente abertura da conta de capitais e outras reformas microeconômicas coerentes com o suposto da eficiência intrínseca dos mercados, denominadas em seu estudo de reformas neoliberais, conforme especificam os autores

que vão além no trecho que segue:

[...] Um dos objetivos dessa linha de análise heterodoxa era a formulação de propostas concretas de uma nova política macroeconômica e de políticas assessórias (de crédito, industrial etc.), formando um todo coerente e capaz de substituir as políticas neoliberais. As análises com esse objetivo acabaram fundando uma nova proposta de política econômica, denominada pelos seus autores como “novo-desenvolvimentismo” (ou “neodesenvolvimentismo”). Essa proposta deveria funcionar como instrumento de intervenção no debate dentro e fora do governo Lula [...] (MORAIS; SAAD-FILHO, 2011, p.509).

Segundo os autores, foi com base nelas que, a partir de 2006, o governo Lula passou a adotar novas iniciativas e políticas que se mesclaram às políticas macroeconômicas neoliberais, estabelecendo-se então, a política econômica híbrida que caracterizou esse governo até 2010, e que parece persistir no governo de sua sucessora, a presidente Dilma Rousseff, conforme sua análise.

Portanto, Morais e Saad-Filho (2011) são pontuais ao afirmar que havia um razoável consenso sobre as insuficiências das políticas neoliberais, bem como sobre as suas consequências macroeconômicas adversas, o que era evidenciado, segundo eles, pelas baixas taxas de crescimento do PIB nos dois mandatos de FHC, e pela contínua vulnerabilidade das contas externas. Por fim, os autores salientam que os economistas heterodoxos insistiam que “[...] as políticas neoliberais eram incompatíveis com políticas industriais e de transferência de renda promovendo a retomada do crescimento econômico e a redução da desigualdade de renda e riqueza [...]” (MORAIS; SAAD- FILHO, 2011, p.511).

Foi colocada em xeque pelos autores a capacidade do governo assegurar a retomada do crescimento econômico e de vir a ser politicamente bem-sucedido. Embasados por um estudo da composição de classes dos governos FHC e Lula feito por Boito Jr. (2006), Morais e Saad-Filho (2011) concluem que:

[...] não se pode considerar o segundo apenas como uma “continuidade pura e simples” do seu antecessor, entendendo que Lula “amplia e dá uma nova dimensão” à estabilidade da política burguesa iniciada por FHC, embora estabelecendo uma relação diferente com as diversas frações do capital brasileiro e internacional. Esse autor não descartava, no entanto, a ocorrência de um processo de desenvolvimento sob um modelo “liberal- desenvolvimentista”, em que pese a sua “dinâmica moderada e instável” [...] (MORAIS; SAAD-FILHO, 2011, p.512).

Neste sentido, os autores explicam que as políticas econômicas decorrentes da perspectiva novo-desenvolvimentista não se satisfariam, portanto, apenas com a “estabilidade monetária”, objetivo maior das políticas neoliberais, segundo eles que acrescentam que ao invés disso, seu objetivo é a “estabilidade macroeconômica”.

Segundo Morais e Saad-Filho (2011), esta seria uma forma de redução de incertezas relativas à demanda futura que acabaria criando um ambiente estável para a tomada de decisões de investimento privado.

[... Isso inclui tanto a regulação estatal das taxas de juros, do câmbio e dos salários, quanto a redução da vulnerabilidade externa para defender a economia de choques externos e da volatilidade dos fluxos de capitais estrangeiros mediante uma taxa cambial administrada e a imposição de controles de capitais, caso necessário (“blindagem da conta de capital”) [...] (MORAIS; SAAD-FILHO, 2011, p. 513).

Prova disto é a percepção do empresário Carlos Alberto Mestriner acerca dos governos em debate. Como exposto anteriormente, ele considera que o governo Fernando Henrique Cardoso buscou equilíbrio para a economia. Em detrimento disso, o ex-presidente do Sinbi avalia que o grande segredo do governo Lula teria sido seguir as regras econômicas que tinham sido implantadas por FHC, tanto enquanto ministro, quanto ao assumir a presidência. De acordo com sua perspectiva, governo Lula pautou seu diferencial nas questões sociais, mantendo a política econômica e investindo em políticas sociais, tendo como consequência a introdução de mais consumidores no mercado.

[...] O governo Fernando Henrique deu um grande passo e o governo do PT deu continuidade. Em linhas gerais, acho que ambos os governos contribuíram e o governo do Lula não seria bem sucedido se não tivesse havido o governo do Fernando Henrique. E por isto, se o governo Lula não tivesse se voltado para as questões sociais também não teríamos avanço. É uma somatória e uma evolução. O Brasil evoluiu muito nestes anos e com certeza a indústria como um todo ganhou com isto [...]” (CARLOS ALBERTO MESTRINER, Anexo XX, p. 1).

O ex-diretor executivo do SindiFranca, Ivânio Batista complementa que Fernando Henrique Cardoso de modo geral, encaminhou de forma satisfatória os pleitos do setor em Brasília. Com o governo de Lula, havia o temor de uma ruptura com o empresariado, conforme salienta o empresário que esclarece que isso não aconteceu. “[...] Houve até uma continuidade, as portas dos Ministérios sempre abertas para as reivindicações, sempre fomos atendidos. Agora volto naquilo, fomos atendidos, fomos sempre muito bem recebidos. Agora em nossos pleitos, alguns sim, outros não, o que é muito normal [...]” (IVÂNIO BATISTA, Anexo XI, p. 3)

Em contrapartida, o ex-presidente do SindiFranca, Miguel Bettarello, aponta em artigo de sua autoria, publicado pelo jornal Exclusivo, que havia uma ilusão e uma falta de informação àqueles empresários que avaliavam de forma tão positiva o governo de FHC, ou mesmo o processo que antecedeu seu governo:

[...] Passamos a refletir sobre as causas verdadeiras que levaram os calçadistas a uma posição, se não de crise, de perda acentuada na atividade exportadora. Vínhamos registrando recordes e aumentos acentuados nos volumes exportados. De repente, a partir do engodo da paridade da moeda que havia até a entrada efetiva do real (só para refrescar a memória, tudo era feito com base em uma URV igual a um dólar), começamos a despencar nas exportações. Será que todas as empresas, todos os fabricantes, como num passe de mágica, de um dia para o outro, desaprenderam a fazer sapatos competitivos? Desaprendemos ou foi a falta de competitividade que nos levou ao que temos hoje? [...]” (EXCLUSIVO, 03 a 09/11/1997, nº 1779, p. 18).

De acordo com as reflexões de Miguel Bettarello, o setor calçadista do Brasil, durantes os últimos 30 anos, considerando a data em que o artigo foi publicado, vinha trabalhando incansavelmente para ocupar e ampliar os seus espaços no mercado mundial. Segundo ele, quando o objetivo dependia única e exclusivamente do trabalho e da capacidade do empresário, os resultados foram altamente positivos, sendo que eles acabaram aumentando consideravelmente a receita e ampliaram os empregos, conforme o argumento do empresário. “[...] Quando, porém, esses objetivos fogem do nosso alcance e passam a depender da vontade dos governantes, os resultados tornam-se bastante desanimadores [...]” (EXCLUSIVO, 03 a 09/11/1997, nº 1779, p. 18).

Além disso, para complementar as reflexões feitas por Bettarello, é apropriado falarmos de política de juros. Em entrevista ao Jornal Exclusivo, realizada por Marta Pedroso, no Distrito Federal, o professor catedrático de Economia Brasileira e de Teoria do Desenvolvimento Econômico, Antônio Delfim Netto, que na época também era deputado federal (PPB) desde 1986, e foi Ministro da Fazenda de 1967 a 1974, expõe o seu ponto de vista sobre o assunto. Ele critica a “política monetária absurda” adotada pelo Governo Federal, naquele contexto, afirmando ainda que uma boa parte daquele governo teria se deixado “contaminar” pela doença que chama de “viés antidesenvolvimento”, que era endêmica na administração “tucana”, conforme aponta o especialista.

[...] Significa dar prioridade absoluta à perseguição de uma desesperada meta inflacionária, desprezando os custos sociais e econômicos dessa política ao insistir no mesmo erro do passado, que foi subir as taxas de juros e permitir a valorização do real perante o dólar para servir de âncora para segurar a inflação, comprometendo o crescimento da produção e das exportações. Desde setembro do ano passado, a indústria em geral e a calçadista, particularmente, que voltara a crescer com as exportações, vem sofrendo o efeito dessa política, que opera como uma tesoura ao subir os juros e baixar o câmbio [...] (EXCLUSIVO, 09 a 15/05/2005, nº 2260, p. 10 e 11).

Delfim classifica a política de juros do Banco Central de “indecente” e remete a ela e à sustentação de uma taxa de câmbio “fora do equilíbrio” a responsabilidade pela

perda de competitividade dos produtos brasileiros no mercado internacional.

Mas o deputado também acredita que naquele momento havia condições para a retomada do crescimento acelerado da economia brasileira e que as PPPs (Parcerias Público-Privadas) estariam se reorganizando. Segundo ele, esperava-se que logo se iniciassem as obras de infraestrutura, de modo a não retardar mais o crescimento e que o setor calçadista, com longa tradição de agilidade na absorção de modernas práticas comerciais e que sobreviveu aos constantes congelamentos das taxas de câmbio nos últimos 15 anos, a contar do período em questão, às restrições de créditos e aos níveis absurdos de tributação, também superaria os atuais obstáculos. E recomenda: “[...] Reclamem, mobilizem sua gente e sindicatos para bater o tambor e tocar trombone nos ouvidos do governo, porque isso vai acabar produzindo o efeito necessário do Banco Central [...]” (EXCLUSIVO, 09 a 15/05/2005, nº 2260, p. 10 e 11).

Reiterando o que Delfim defende, citamos a seguinte frase: “Tributação excessiva compromete o empreendedorismo”. É o que afirma em conversa com o Jornal Exclusivo, o presidente da Associação Comercial de São Paulo (ACSP), Guilherme Afif Domingos, entrevistado por Eduardo Zilles Borba. Ele comentou aspectos da economia que influenciam diretamente nas questões do empreendedorismo. O excesso de tributos e a dificuldade burocrática para se empreender foram tópicos apontados por ele como prejudiciais à “saúde” das corporações e também ao surgimento de novos talentos empresariais. “[...] O Brasil tem impostos de primeiro mundo e serviços de terceiro. A contrapartida que os cidadãos recebem pelos tributos que pagam não é compatível com o nível de tributação [...]” (EXCLUSIVO, 20 a 25/02/2006, nº 2305, p. 9), aponta.

Segundo Afifi Domingos, além das empresas estarem sofrendo com a tributação, elas estariam perdendo competitividade diante da concorrência daquelas que não pagavam os impostos. “[...] As empresas médias são as que mais sofrem, porque não tem a força das grandes para repassar e nem a flexibilidade das menores para reduzir os tributos [...]” (EXCLUSIVO, 20 a 25/02/2006, nº 2305, p. 9). Acompanhando o setor calçadista, o presidente da ACSP indica que a busca de alternativas para competir com os calçados chineses, seria através do aumento da produtividade ou de campanhas de valorização dos sapatos brasileiros. “[...] Ao mesmo tempo, o setor deve pressionar o governo para a redução da tributação [...]”EXCLUSIVO, 20 a 25/02/2006, nº 2305, p. 9), pondera.

Quando questionado até que ponto os tributos poderim prejudicar a vida de uma corporação, o presidente da ACSP explicou que

[...] a tributação excessiva, inclusive dos lucros, reduz a capacidade de reinvestimento das empresas, diminui o mercado consumidor e, ainda, gera enormes custos burocráticos. Como a poupança e o investiemnto também são altamente tributados, isso prejudica o crescimento e a modernização da economia [...] (EXCLUSIVO, 20 a 25/02/2006, nº 2305, p. 9).

Neste sentido, embasados no argumento de Bresser-Pereira, (2003), Morais e Saad-Filho (2011) analisam que esses objetivos só podem ser alcançados por políticas com objetivos múltiplos e pela complementaridade entre as políticas monetária, fiscal, cambial e salarial para influenciar os “grandes preços” da economia: as taxas de juros, de câmbio, de salário e de inflação. Sendo assim, sob a perspectiva dos autores: “[...] As novas políticas macroeconômicas restabeleceriam a condição soberana da ação do Estado de controlar sua moeda e sua política fiscal, permitindo a adoção de uma política industrial de defesa da competitividade e da equidade [...]” (MORAIS; SAAD-FILHO, 2011, p.514).

Muitas das medidas de política econômica preconizadas pelo novo- desenvolvimentismo passaram a ser adotadas pelo governo Lula a partir de 2006, conforme expõem os autores que ponderam que houve este movimento, mas sem ter havido uma ruptura com as políticas macroeconômicas neoliberais. Segundo Morais e Saad-Filho (2011), essas mudanças consideradas como uma inflexão e não como uma “nova política” se deram de forma complementar (ou mesmo aditiva) às políticas macroeconômicas neoliberais, que foram mantidas praticamente sem alterações, apesar de tensões durante o período 2006-2010, salientam.

Outrossim, conforme explicitam os autores, o sentido mais amplo das mudanças foi dar ativismo ao Estado no domínio econômico, principalmente: no fomento à produção via financiamento de capital e investimentos públicos em infraestrutura; na expansão do mercado de consumo de massa via programas de transferência de renda, elevação do salário mínimo e do crédito ao consumo; e apoio à formação de grandes empresas brasileiras, transformando-as em agentes competitivos em frente às multinacionais tanto no mercado interno como no mercado internacional, via crédito e outros incentivos regulatórios para aquisições e fusões, e também via apoio diplomático, em especial nas relações Sul-Sul (MORAIS; SAAD-FILHO, 2011, p.520).

Enfim, Morais e Saad-Filho (2011) concluem que a institucionalização parcial de várias propostas novo-desenvolvimentistas no segundo governo Lula se deu através da chamada inflexão da política econômica, que preservou o núcleo das políticas macroeconômicas introduzidas pelas reformas neoliberais do governo Fernando

Henrique Cardoso, resultando em uma política econômica de natureza híbrida.

[....] Inesperadamente, em parte devido a condições externas favoráveis, e em parte aproveitando com imaginação política os “potenciais de ganhos de produtividade” da economia brasileira, essa política híbrida logrou um sucesso incontestável não só em termos de crescimento econômico, mas também através de uma melhoria da distribuição de renda e de uma redução da pobreza historicamente inédita. Ao mesmo tempo, a manutenção dos objetivos restritos das políticas neoliberais continuou a gerar graves problemas nas contas externas e fortes pressões fiscais, derivadas diretamente da sobrevalorização da moeda nacional e do elevado custo fiscal da política monetária e do livre movimento de capitais [...] (MORAIS; SAAD-FILHO, 2011, p.525).