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3 CONSOLIDAÇÃO, ALAVANCAGEM, ABERTURA E REESTRUTURAÇÃO DAS EXPORTAÇÕES BRASILEIRAS: O SETOR CALÇADISTA EM FOCO

3.2 Recessão e crise monetária

Dupas (1992) considera que pelo menos até o início dos anos 1980 o desenvolvimento industrial brasileiro contou com um cenário externo bastante favorável. O fluxo de recursos externos se intensificou a partir da década de 1950 pela combinação de duas circunstâncias favoráveis: de um lado a estratégia de crescimento das empresas multinacionais, que iniciavam o processo de expansão de seus negócios para fora de seus países de origem; de outro, os atrativos do mercado doméstico e as facilidades oferecidas pelo Governo brasileiro tornavam o país uma alternativa atraente para o capital estrangeiro de risco.

A partir dos anos 1960 e, principalmente, 1970, muda-se a natureza da articulação do Brasil com a economia internacional. Passam a predominar os empréstimos de moeda, utilizados pelo Brasil para financiar os crescentes déficits em seu balanço de pagamentos (em particular a partir da primeira crise do petróleo e do lançamento do II PND).

A cooperação estreita com o capital estrangeiro foi fundamental para o desenvolvimento industrial brasileiro, mas não alterou a sua natureza excessivamente protecionista, voltada para o mercado interno e pouco dinâmica em termos de inovação tecnológica. As empresas multinacionais, em sua maioria, concentraram suas inovações quase que exclusivamente no processo de adaptação dos seus produtos às especificidades do mercado brasileiro. A proteção tarifária contra a concorrência externa garantia margens de lucro expressivas; principalmente se considerarmos que, do ponto de vista tecnológico, tratava-se de investimento já amortizado nos países de origem dessas empresas, conforme demonstram Evans (1984), Tavares (1980) e Dupas (1992). Essas considerações mostram a limitação, mas não retiram a importância da participação do capital estrangeiro como um dos pilares de nosso desenvolvimento industrial.

Da Crise do Petróleo até o início dos anos 1990, o Brasil viveu um período prolongado de instabilidade monetária e de recessão, com altíssimos índices de inflação (hiperinflação) combinados com arrocho salarial, aumento da dívida externa e crescimento insignificante.

econômicos39 que visavam o controle da inflação, sem nenhum sucesso. O resultado foi o não pagamento de dívidas com credores internacionais (moratória), o que resultou em graves problemas econômicos que perdurariam por anos. Não foi por acaso que os anos 1980, na economia brasileira, foram apelidados de década perdida.

De acordo com Dupas (1992), a década de 1980 marca o início da chamada crise da economia brasileira. Segundo ele, as demonstrações mais evidentes deste fenômeno podem ser localizadas na perda de dinamismo da economia e na emergência de um processo inflacionário de natureza crônica. Conforme o autor demonstra que os números são eloquentes. O crescimento acumulado do PIB ao longo dos anos 1980 foi de somente 17%, mantendo o PIB per capta praticamente inalterado na faixa de US$ 2000/ano.

“A novidade da década de 1980 não é a presença da inflação, mas sim o seu caráter crônico e a emergência do risco de hiperinflação”, explica Dupas (1992, p. 85). Nesse processo de desagregação da economia os mecanismos de indexação acabam exercendo um papel contraditório: por um lado, eles permitem o funcionamento da economia em condições de relativa normalidade mesmo com taxas de inflação elevadas; verdade que a indexação já vinha dando sinais de esgotamento, mas, de acordo com o autor, a economia brasileira nunca passou pelo quadro de desagregação enfrentado por alguns dos países vizinhos.

Em suas declarações, o ex-presidente do SindiFranca, Jorge Felix Donadelli confirma o contexto descrito acima. Segundo ele, a crise do calçados de Franca começou, precisamente em 1986, no governo Sarney, com o plano Cruzado.

Jorge Felix Donadelli contrasta as realidades do período em questão, com o período que antecedeu o início da crise, e sugere uma comparação do tamanho de Franca em 1970 e em 2000, pode-se constatar que a cidade quase triplicou sua população, porque, de acordo com o ex-presidente do SindiFranca, realmente, entre os anos de 1970 e 1986, Franca teve um crescimento considerável.

[...] Escrevi um artigo dizendo que viajando para qualquer lado ou horizonte, num raio de 200 quilômetros de Franca, encontrava-se um caminhão de mudança que vinha para Franca. Chegava-se na cidade na sexta-feira e na segunda-feira tinha o serviço garantido. A cidade cresceu muito e as exportações trouxeram um progresso muito grande. Franca ficou conhecida no mundo inteiro durante estes anos, até que com o término do governo militar, acabaram-se os incentivos e a indústria teve que buscar outras alternativas, e se não bastasse a falta de incentivos, tivemos também que enfrentar a política cambial que foi terrível. A indústria sofreu, teve várias etapas com um “boom” muito grande, um crescimento extraordinário, depois

teve o declínio (JORGE FELIX DONADELLI, Anexo VIII, p. 3).

O atual presidente do SindiFranca, José Carlos Brigagão, também faz algumas considerações acerca da década de 1980, pois teve um mandato no Sindicato da Indústria de Franca que abrangeu um período crítico - 1986 a 1990. De acordo com ele, a saída do governo militar para o governo de Sarney foi turbulenta para a indústria em geral, porque houve uma situação política conturbada em decorrência da introdução do cenário político da Democracia brasileira, saindo do regime ditadura para o primeiro governo civil. Segundo ele, logicamente, os militares deixaram uma estrutura pronta no país, após fazerem um relevante trabalho, no que se refere à indústria nacional. A possível entrada do Tancredo Neves na presidência da República, significava uma ampla e irrestrita negociação com todos os partidos políticos, envolvendo uma série de interesses do ponto de vista ideológico para o país. Isto despertou no empresariado uma grande ansiedade com relação à projeção da indústria.

[...] A programação e o planejamento de uma indústria, como é que vai ser para o futuro? Esta incógnita toda influencia na economia do país, porque você não tem como fazer um planejamento estratégico do futuro desta indústria, porque não está estabelecida a política a ser adotada no país e o que vai ou pode acontecer. Então nada poderia ser feito enquanto este quadro não fosse desenhado e, claro, para toda a população, qual o rumo que país iria tomar. Durante o mandato de Sarney, observamos que tivemos infelicidade somada aos efeitos no exterior com as dificuldades existentes no país. [...] Tivemos a inflação galopante de mais de 80% ao mês, em que se comprava o feijão de manhã e a tarde o preço já era outro. Imagine do ponto de vista de mercadorias produzidas na indústria. Como é que a indústria projetava, fazia seu planejamento neste cenário, sem nenhuma perspectiva. Mas, o que

faltou naquela época continua faltando hoje, sem uma política industrial traçada para o país. E, naquele período, e de lá para cá a falta de uma política industrial, levou dezenas de milhares de empresas a falir, e isto envolveu uma insegurança muito grande do ponto de vista econômico no país e até financeiro [...]. Foi uma luta muito grande na tentativa de

acompanhar e adequar àquela situação. Então, isto colocou as indústrias numa situação difícil. E quando não se tem uma política industrial

traçada que determina os rumos da economia tanto no mercado interno como no mercado externo você fica à deriva e não tem como você estar trabalhando e planejando o futuro da indústria. Então, realmente, foi uma

década perdida [...], e isto veio a mostrar o setor calçadista um setor

sensível [...] (Grifo nosso) (JOSÉ CARLOS BRIGAGÃO, Anexo XII, p. 1-

2).

Nelson Palermo vai mais longe e considera que períodos de problemas começaram no final de 1983, com o fim do governo de Figueiredo. Depois, no início do governo seguinte, de Sarney, em 1986, foi uma transformação violenta na forma de fazer o cálculo de custos na relação de fornecedor e cliente. Segundo ele, o ano de l990, não só o setor calçadista, mas o Brasil inteiro achou que havia resolvido os seus

problemas com o plano Cruzado. No entanto, muitas atitudes, muitas decisões que foram tomadas naquela época, danificaram todas as relações que haviam sido construídas na área de exportação. Ele afirma que muitas empresas diminuíram drasticamente a sua capacidade exportadora em benefício do mercado interno.

[...] aquilo que não existia lá atrás, em 1983/1984, que era a demanda, passou a existir, e os preços para a exportação ficaram proibitivos, dada a estabilidade cambial. Então, em 1986, começou uma nova fase que não foi promissora para a exportação. Foi uma fase difícil, e no nosso caso, em particular quando retornamos à atividade do mercado interno, percebemos que naquele período que ficamos fora, perdemos percentual no mercado interno, foi muito significativo, porque várias outras fábricas que não existiam haviam sido abertas. Então, a concorrência no mercado interno, apesar da demanda maior, também era muito maior. Depois de 1986, quando as empresas não tinham mais condições de exportar como antes, e se voltaram para o mercado interno, encontraram uma concorrência interna maior, mais fabricantes [...] (NELSON PALERMO, Anexo XIII, p. 2).

Conforme Rego e Marques (2000), a retomada desenvolvimentista deste período foi impulsionada pela manutenção dos investimentos nos setores de energia, de substituição de importações de insumos básicos e nas atividades voltadas para a exportação, especialmente agrícola. Para os autores, a política econômica mais adequada teria sido uma tentativa de recessão administrada, coerente com o II PND. “A conjuntura adversa requeria medidas como o racionamento de combustíveis, o controle seletivo das importações e um programa de emergência de substituição de importações, além do apoio redobrado às exportações” (REGO e MARQUES, 2000, p. 133).

Dupas (1992) expõe que a produção brasileira permaneceu estagnada ao longo da década de 1980. “O recorde de produção continua com o ano de 1980, quando foram montados 1,2 milhões de automóveis” (DUPAS, 1992, p. 89). A tentativa da indústria automobilística de compensar a retração do mercado doméstico aumentando as exportações serve para ilustrar outra característica básica da formação do parque industrial brasileiro: a pouca abertura para o exterior e o reduzido grau de competitividade dos produtos manufaturados.

[...] As vendas externas foram impulsionadas por incentivos e favorecimentos oficiais, inclusive em termos de taxa de cambio; trata-se da chamada competitividade espúria (a expressão é de Fernando Fanzylber), baseada em fatores conjunturais e não em vantagens comparativas de natureza estrutural. No momento em que cessam os incentivos, as exportações entram em declínio em função da perda de competitividade no mercado internacional [...] (DUPAS, 1992, p. 90).

E nos anos 1980 o Brasil passa de importador a exportador líquido de capitais.

[...] A partir do segundo choque do petróleo e da elevação das taxas de juros promovida pelo FED dos EUA a partir de 1979, o endividamento externo

brasileiro tornou-se explosivo e os bancos estrangeiros recusaram-se a continuar financiando os déficits em nossos balanços de pagamentos. A partir dessa época, o País passou a ser obrigado a gerar via balança comercial seus recursos (em moeda estrangeira) necessários para pagar o serviço da dívida externa [...] (DUPAS, 1992, p. 91).

Ao mesmo tempo, agravando ainda mais a situação, os capitais de risco desapareceram, principalmente porque no âmbito interno a aceleração inflacionária e a redução do ritmo de crescimento contraíram fortemente a rentabilidade esperada dos novos investimentos. Já no mercado internacional ocorre o inverso, como demonstra o autor, com a renovação das oportunidades de investimento na Europa, nos novos países da Ásia e mesmo em segmentos de ponta da indústria dos EUA.

A economia brasileira passa a se defrontar com um ambiente externo desfavorável: “os detentores de créditos contra o Brasil tentando reduzir ao máximo o seu exposure e os novos capitais preferindo investir em outros países” (DUPAS, 1992, p. 92).

Em 1981, a balança comercial apresentou um superávit de US$ 1,2 bilhão, contra um déficit de US$ 2,8 bilhões em 1980. Segundo Rego e Marques (2000), as exportações alcançaram 8,5% do PIB, com o aumento de 0,5% em relação a 1980. Já as importações caíram 1,2% passando de 9,2% do PIB em 1980 para 8,0% em 1981. As taxas de juros internacionais aumentaram, porém, em quase quatro pontos percentuais em 1981, aumentando US$ 3 bilhões as despesas com juros da dívida externa, que absorviam, então, 40% das receitas com exportações.

A recuperação da economia americana a partir de 1984 foi de fundamental importância para a retomada do crescimento da economia brasileira, apoiada no aumento das exportações e no crescimento da renda agrícola. “A produção industrial cresceu 7% em 1984. A indústria de transformação teve uma expansão de 6,1%, enquanto a indústria extrativa mineral cresceu 27,3%, em decorrência da contínua expansão da produção de petróleo” (REGO e MARQUES, 2000, p. 137).

Em se tratando do setor calçadista brasileiro, mesmo com o cenário da década de 1980, no que tange às exportações, os números se mostraram favoráveis. Pesquisa realizada no segundo semestre de 1988, junto as 30 maiores empresas exportadoras de calçados femininos de couro, produzidos no Rio Grande do Sul, constatou o seguinte: Essas empresas exportaram durante o ano de 1987, acima de US$ 4.500,00 cada uma, e representaram em conjunto, um volume efetivo de US$ 410.000.000,00 em calçados, correspondendo a 60% do total do produto brasileiro exportado. A maior delas

comercializou com o exterior mais de US$ 50.000.000, durante o ano focalizado (MAZOCATO, 1989, p. 71).

De acordo com Mazocato (1989), no início da década de 1960, apenas duas das empresas pesquisadas exportavam. O total de calçados brasileiros exportados, então, era de pouco mais de 100 mil pares, de todos os tipos, e o preço médio alcançava cerca de US$ 1,00 por par. Como já discutimos anteriormente, nesse período o Brasil iniciava seu modelo exportador, surgindo assim uma oportunidade significativa para a história das exportações brasileiras de manufaturados, que colocou o Brasil, ao lado de Taiwan, Itália e Coréia como um dos principais fornecedores mundiais que em 1988 aproximou- se dos 130 milhões de pares exportados, gerando divisas de US$ 1,2 bilhão, que representavam quase 5% do total das exportações brasileiras40.

Segundo o autor, o preço do produto exportado, nas séries históricas, apresentava uma evolução média na ordem de US$ 1, em 1964, para US$ 7,90, em 1987, tendo ultrapassado US$ 8, em novembro de 198841.

Naquele ano a indústria brasileira de calçados era composta por mais de quatro mil empresas. Elas já apresentavam concentrações regionais nos seguintes polos: Vale do Rio dos Sinos, Rio Grande do Sul; Franca, Birigui e Jaú, em São Paulo; Juiz de Fora e Belo Horizonte, em Minas Gerais e São João Batista, em santa Catarina. O autor comenta que o Rio Grande do Sul concentrava as maiores, que respondiam por mais de 60% das exportações de calçados brasileiros42. Prova disso, é que no final da década de 1980, Mazocato afirmava:

[...] O setor manufatureiro calçadista é um exemplo de sucesso do programa exportador brasileiro, detendo quase 60% do mercado norte-americano de artigos femininos de couro, no segmento de preços entre US$5,00 e US$12,00, e 31% do volume total do produto importado no mesmo mercado [...] (1989, p. 79).