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a ficção de Chico Buarque

Narrado na terceira pessoa por um narrador onisciente,

Benjamim traz uma atmosfera em que sonho e rea-

lidade se fundem.

Independente de se gostar ou não dos meandros obscuros e enigmáticos aos quais o ficcionista Chico Buarque nos leva em seus dois primeiros romances, uma coisa deve-se reconhecer de imediato: a qualidade da sua prosa, marcada, sobretudo, pela concisão, pela eliminação de qualquer excesso de linguagem, pelo ritmo da frase, pela elaboração minuciosa, às vezes minimalista, de imagens e dos personagens que se constroem na ação.

É na ação contínua, às vezes frenética – daí talvez o fato de ter se definido estes romances, a nosso ver mais precisamente o primeiro, como

thrillers – que a trama ficcional do autor se constrói. Em Estorvo, narrado na

primeira pessoa, testemunha-se o trajeto insólito de um personagem que foge de um homem de barba sólida, terno e gravata (esta é a única coisa que sabe sobre ele), materializado, à noite, sem nenhum motivo aparente, em frente ao olho mágico do seu apartamento; fuga esta que o leva, e ao leitor,

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a um intrincado quebra-cabeça, a uma alucinação ou pesadelo, que pode expressar os descaminhos de uma cidade, o Rio de Janeiro, e de um país, o Brasil, que não são, entretanto, jamais nomeados. Eis aí um eco de Kafka, mais um, aliás, no conjunto de um universo labiríntico e sufocante.

O homem sem nome, na cidade sem nome, transitando alternada- mente entre as esferas de uma elite insensível e de pessoas que vivem à margem da legalidade, pode ser um outro modo de ver o Brasil que está nas músicas e nas letras do compositor Chico Buarque. O Brasil cuja identidade se perde gradativamente e que o autor das canções da utopia, do protesto e da melancolia não conseguiu impedir de se transformar num simulacro, num reflexo distorcido de si mesmo. Não é à toa que, mesmo nas cenas que acontecem durante o dia, Estorvo pareça estar sempre acontecendo à noite: numa noite psicológica, de medo, paranóia, perigo, solidão. E que em Benjamim, o personagem título, como bem observou Heitor Ferraz Mello (Cult, maio/2003), ao se imaginar sempre com uma câmera filmando seus movimentos, perca a naturalidade do sujeito para a representação de si mesmo. Ao contrário do criador de um universo musical no qual se insere como agente transformador, o narrador e/ou protagonista do romance torna-se um títere submetido a um poder despersonalizado – à sociedade como uma máquina desumanizante que tritura e destrói, após exigir dele o que ele não é e nem pode ser.

Com um protagonista menos difuso e angustiado que o de Estorvo,

Benjamim, narrado na terceira pessoa por um narrador onisciente, traz a mesma

atmosfera em que sonho e realidade se fundem, às vezes com características surrealistas – há, por exemplo, um toque buñuelesco na cena em que uma picape transporta uma girafa “nua”, envolta num plástico preto –, mas, num conjunto em que, entretanto, tudo se explica logicamente (o que só faz acentuar a sua estranheza).

Nesses romances inexiste o país das músicas de Chico: o país do samba, do futebol, da ditadura militar, da gente humilde dos subúrbios, da esperança, dos desencontros amorosos, das relações partidas. Neles, a verdade estética está

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CARLOS RIBEIRO

mais distanciada da verdade histórica, a ponto de duvidarmos se o ficcionista Chico Buarque é mesmo o compositor Chico Buarque.

Mas há, sim, um ponto que une ambos: a preocupação com a linguagem e o rigor formal com que trabalha suas obras: o mesmo que está presente em cada sílaba da sua antológica Construção, e em grande parte do seu Benjamim. Rigor este que podemos ver já na primeira frase do livro e que revela como uma das suas principais características, a riqueza das imagens: “O pelotão estava em forma, a voz do comando foi enérgica e a fuzilaria produziu um único estrondo”. Que prossegue na segunda: “Mas para Benjamim Zambraia soou como um rufo, e ele poderia dizer em que ordem haviam disparado as doze armas ali defronte”. E que encontramos ao longo do livro, muitas vezes, num texto marcado pela sobriedade e pela recusa a metáforas fáceis, ao ponto de, como em Kafka, se revestir de uma qualidade prosaica, enganosa:

Mesmo quando estava em grande evidência, Benjamim não costumava ser abordado na rua. Saudavam-no às vezes com familiaridade equivocada, convencidos de conhecê-lo de vernissages, de alguma ilha, quem sabe do Jockey Club, de convenções ou de um transatlântico. Mas as pessoas mais sérias sem dúvida desconfiavam de um cidadão assim onipresente, que ostentava saúde, fortuna, simpatia, e não tinha nome. O próprio Benjamim sentia-se ludibriado por aquela glória crescente, que tornava cada dia mais profundo o seu anonimato. (FERNANDES, 2004)

Aqui está o autor (e) laborando, na sua fina carpintaria, uma história que começa no momento dramático do seu desenlace, que inicia no seu clímax – e que passa a ser narrada, de chofre, retrospectivamente, justo no momento em que nada mais pode ser alterado. A história é apresentada para o leitor como um caleidoscópio, no qual vão, pouco a pouco, ganhando voz, rosto e sentido, seus personagens: o protagonista Benjamim Zambraia, ex-modelo fotográfico que persegue obsessivamente a imagem de uma antiga paixão – Castana Beatriz, assassinada nos anos 70, juntamente com seu

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amante, professor Douglas, ativista político; Ariela Masé, suposta filha de Castana Beatriz, que personifica o enigma e a redenção perseguidos por Benjamim e em torno da qual ele procura remontar o quebra-cabeça da sua vida; e mais um elenco de personagens secundárias, a exemplo do ex-puxador de carros Aliandro Esgarate (ou, a partir da página 69, quando, em sua ânsia de ascensão social, reaparece como inescrupuloso candidato a um cargo político, Alyandro Sgaratti, “o companheiro xifópago do cidadão”); doutor Campoceleste, dono da Imobiliária Cantagalo, na qual Ariela trabalha, e pai de Castana, que ele deserdou tão logo soube ter ela engravidado (não de Benjamim, como pensara inicialmente, mas “de outro aproveitador”, o professor Douglas Saavedra Ribajó); G. Gâmbolo, proprietário da empresa de Publicidade e Marketing, em torno da qual giram os interesses profissionais e políticos de Benjamim e Alyandro; e Jeovan, cabo da Polícia Militar, inválido devido a um tiro na espinha – namorado de Ariela e, como se revela ao final, peça decisiva no desenlace trágico da aventura/desventura de Benjamim. Há ainda outro elemento recorrente: a Pedra do Elefante, em torno da qual acontecem, obsessivamente, os encontros e desencontros de Benjamim e Castana, de Benjamim e Ariela.

É em torno desses elementos que se desenrola a trama, que evolui de forma circular, um pouco menos sufocante que em Estorvo, é verdade, mas, tal como aquele, marcado por uma “soturna circunspecção”, característica, como bem lembrou José Guilherme Merquior, do nouveau roman.

Os críticos do ficcionista Chico Buarque, se considerados seriamente, jamais podem acusá-lo de qualquer tipo de concessão, seja à literatura fácil de consumo, seja ao mercado, seja ao experimentalismo vazio. Podem achar seus romances maçantes ou pretensiosos, mas não destituídos de significados. (E, vale lembrar aqui Ezra Pound, quando afirma que “Literatura é linguagem carregada de significado”). A inexistência do humor e da ironia que iluminam a obra musical do autor de Apesar de você (e que estão presentes no novo romance do autor, Budapeste) é um fato que só depõe contra o romancista quando se o vê projetado contra o pano de fundo do genial compositor, ou, segundo dizem, do homem Francisco Buarque de Holanda. Aliás, nos extremos dos que louvam e dos que atacam o ficcionista Chico Buarque

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parece estar sempre a impossibilidade de desvinculá-lo do homem e da sua persona.

Benjamim, bem como Estorvo e o recente Budapeste, são títulos

importantes no contexto da literatura brasileira contemporânea. Literatura de boa qualidade, sim, na medida em que, voltando mais uma vez a Pound, esta é “novidade que permanece novidade” na medida em que foi construída por um escritor que trabalha as palavras com o talento e a honestidade que só um autêntico criador pode ter.

Referência

FERNANDES, Rinaldo de. (Org.). Chico Buarque do Brasil. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.

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Baú de espantos