• Nenhum resultado encontrado

da foz à nascente: um recado do rio

Nancy Mangabeira critica os fundamentos filosóficos da nossa civilização para chegar ao conceito de deser- tificação no mundo contemporâneo.

Parece não haver dúvidas de que a humanidade vive, hoje, um dos momentos mais críticos da sua história. Tal afirmativa não se refere, apenas, à crise mundial deflagrada após os atentados do dia 11 de setembro: à chuva de bombas derramadas sobre o Afeganistão, à série de ofensivas do bioterrorismo desencadeada em território norte-americano ou ao agravamento das tensões entre cristãos e muçulmanos, árabes e judeus, no Oriente Médio. Estes fatos são, na realidade, sintomas – graves e preocupantes – de um processo de alienação do homem perante sua própria inserção no mundo, na forma como ele se coloca perante seu semelhante, o cosmos e si próprio. Mas, como definir esse fenômeno? Quais as suas raízes? E o que é necessário para a superação dessa crise e o (re) encontro do ser humano com o equilíbrio, que não é apenas necessário, mas vital? Esta é uma das questões

154 À LUZ DAS NARRATIVAS

básicas colocadas no livro Da foz à nascente: o recado do rio (Editora Unicamp e Cortez, 200 páginas), da professora do Departamento de Filosofia da Universidade Federal da Bahia, Nancy Mangabeira Unger.

A autora, que nos brindou, há alguns anos, com os ensaios O en-

cantamento do humano: ecologia e espiritualidade e Fundamentos filosóficos do pensamento ecológico, ambos lançados pelas Edições Loyola, afirma, logo

no início do primeiro capítulo do seu novo livro, que “a crise que hoje atravessamos não é somente de caráter social, econômico, ou mesmo moral”, nem “se restringe a um país ou a uma determinada classe social”. A crise que vivemos, diz ela, “repõe certas questões que fundam e fundamentam o percurso de uma época”.

E é nesse ponto, precisamente, que Nancy Mangabeira, desenvolve uma reflexão radical, no sentido de uma verticalidade, sobre o desafio que se coloca, para a humanidade, neste ponto crucial da sua história: “o de saber decidir e discernir, o de saber realizar uma superação criadora deste momento que nos permita alcançar um novo patamar de pensamento, uma outra maneira de experienciar o mundo e a nós mesmos”. A autora adverte que “no caminho desta superação temos de nos defrontar com uma questão essencial: o que significa para nós o ser humano?”

Nesse livro – da mesma forma que fez em O encantamento do humano –, Nancy parte de uma crítica aos fundamentos filosóficos da nossa civilização, e da forma como esta civilização se relaciona com o real, para chegar ao conceito de desertificação no mundo contemporâneo – desertificação, diz ela, não somente no sentido físico, de ameaça de nossos recursos vitais – da água, do ar, das espécies vegetais e animais –, mas no sentido anímico.

Tomando como ponto de partida a frase de Nietzsche: “O deserto cresce; ai de quem abriga desertos!”, ele questiona: “Que deserto é este que cresce? É o instaurado por uma dinâmica que nega a vida, que transforma pessoas em instrumento para gerar lucro”. E acrescenta: “O que Nietzsche vê é a crescente aridez de uma época na qual a vida está sendo negada e que tem seu eixo na racionalização e controle de todas as coisas.”

Mas, à noção do deserto como carência e esgotamento, Nancy acrescenta um outro sentido, “que é o do deserto como lugar que contém

155

CARLOS RIBEIRO

em si múltiplas possibilidades de renovação e virtualidades de criação”. E é nesse sentido que se desenvolve um dos eixos básicos do livro: a do reencontro com esse sentido, tomando como exemplo a experiência feita por um grupo de franciscanos que, em 1992/93, realizaram uma peregrinação ecológica pelo rio São Francisco, centrada no contato com o povo da região. Peregrinação que revelou, contrapondo-se à lógica instrumental de dominação da natureza, uma outra lógica, repleta de “significados culturais e espirituais profundos: a ligação com os antepassados, com a própria história, com a terra natal.”

Evidencia-se, portanto, na escrita de Nancy, um tecido habilmente bordado, no qual ficam evidentes os elos existentes entre a filosofia e a questão ecológica, a partir de um olhar sobre a realidade social e ecológica do rio São Francisco e das comunidades que vivem à sua margem. A peregrinação, diz ela, “ajuda a recuperar o político além de sua redução a estratégias e táticas da luta pelo poder. Recupera o sentido originário da política como pertencimento do homem à comunidade”.

Trata-se, aqui, de ter acesso, com humildade e respeito, a uma outra visão de mundo – das comunidades ribeirinhas e de seus pensadores – que, fora da lógica utilitária da nossa civilização, possa contribuir para a crise que ora enfrentamos. Em Da foz à nascente, Nancy procura pôr em diálogo “a sensibilidade para a poesia da natureza encontrada na tradição sertaneja” –, cujo melhor exemplo são os depoimentos de Valdemar Barbosa, morador da região – “com aspectos do pensamento de Heidegger e também com a mística de Mestre Eckhart”. “São experiências do pensar que favorecem um modo de ser criativo e nos dão indícios para restaurar a morada humana no mundo.”

Toda essa recuperação de símbolos, valores e sentido para a existência se da, segundo Nancy, no processo de caminhar em direção à nascente, à força inaugural da qual o novo pode renascer. Mas lembrando que “não se trata de caminhar para trás, não é saudosismo, mas sim ver nessa cultura elementos que devem ser incorporados nessa transição que vivemos”.

“Preservar uma tradição”, diz Nancy, é também traduzir, é integrar, é possibilitar novas ressonâncias, é permitir o surgimento de novos sentidos. “É radicalizar – no sentido de um movimento verticalizante do pensamento

156

– a reflexão a seu respeito; é descobrir, em sua configuração particular, indícios para pensar as questões essenciais com as quais, sempre e novamente, defrontamo-nos”. A nascente não está no passado, porque o rio traz, em qualquer ponto do seu percurso, a sua nascente.

157