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Num panorama pouco animador, ensaios de As penas

do ofício, de Sérgio Augusto, elevam o tom do

jornalismo cultural.

Não escondo o enorme prazer que me dá a leitura de ensaios e biografias literários: Borges (Kafka e seus precursores), Cortázar (Vida de Edgar Allan

Poe), George Steiner (O leitor incomum) e Umberto Eco (Divagando pelo bosque), até Harold Bloom, Alberto Manguel, John Updike e Malcolm

Bradbury são responsáveis por alguns momentos de imenso prazer no desvendamento de autores e obras. Isto sem adentrar, é claro, no terreno da filosofia da poesia, dum Bachelard, ou dos estudos literários de Todorov (A

narrativa fantástica), ou mais especificamente da crítica literária, na qual se

destacam nomes como dos nossos Otto Maria Carpeaux, Antonio Candido, Ivan Junqueira, Wilson Martins, Antonio Carlos Secchin, André Seffrin, Miguel Sanches Neto.

A seara do Sérgio Augusto, no entanto, é bem outra: a do chamado jornalismo cultural. Não se trata apenas de ensaios literários, nem de crítica

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literária, mas de comentários, no velho estilo do ensaísmo que nos foi legado por Montaigne, sobre diversos temas da atualidade. A comparação é precária: o ensaísta carioca não trata, claro, de temas filosóficos, a exemplo de “Como uma mesma coisa nos faz rir e chorar”, ou “De como a alma que carece de objetivos para as suas paixões as manifesta ainda que ao acaso”, tão caros ao pensador francês. Não pretende elaborar uma nova concepção teórica do homem, mas é competente quando coloca em foco e comenta, criticamente, questões instigantes da cultura contemporânea.

Em As penas do ofício, Sérgio Augusto navega numa vertente do jornalismo na qual já fomos pródigos – mas que sofre de anemia crônica desde a morte de seu maior ícone, Paulo Francis, em 1997. Tivemos excelentes articulistas, paus para toda obra, atuando ao mesmo tempo no jornalismo voltado, sobretudo nos anos 60/70, para temas relacionados à política, à cultura e às artes, que muitas vezes se confundiam nos tempos pantanosos da ditadura militar. Destes, sobram algumas poucas feras: Millôr Fernandes, Fausto Wolff, Élio Gaspari, ex-integrantes do Pasquim.

Polemista, às vezes, mas sem fazer disso marketing, sem apelar para agressões grosseiras e frases de efeito e afirmações bombásticas, muitas vezes duvidosas, Sérgio Augusto traz para os leitores, em seus textos, conforme aponta Moacyr Scliar na orelha, o “prazer da inteligência”. Resumem-se, nesta expressão, os méritos de O prazer do ofício, associados ao de expor argumentos e de se dispor ao embate cultural isento, dentro do que é possível, para um “jornalista cultural”, de dogmatismo e arrogância.

São características marcantes dos textos do autor de Lado B, em primeiro lugar, a diversidade dos assuntos, com o tratamento preciso e instigante que dá a cada um dos temas abordados. Em alguns, a exemplo do primeiro ensaio do livro, Deus joga dados?, limita-se a passear – pontuando com breves comentários – pelas questões insólitas levantadas anualmente pelo escritor John Brockman, no site World Question Center – um centro mundial de perguntas desafiadoras, colocadas para um seleto grupo de cientistas e pesquisadores. Questões deveras insólitas, como “o que Deus tinha em mente quando fez as baratas” e “criou os vulcões”.

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CARLOS RIBEIRO

Do artigo seguinte, passei um pouco ao largo, por achar improdutivo comparar grandes compositores brasileiros a não menos importantes músicos norte-americanos. Parece-me desnecessário, por exemplo, estabelecer paralelos entre Lamartine Babo e Irving Berlin, ainda mais em pontos extra- estéticos, como o fato de ambos terem feito hinos (Berlin, para os escoteiros e Lamartine, para times de futebol). O livro, no entanto, volta a ganhar impulso na página 35, no artigo Assim rasteja a humanidade, no qual desanca as celebridades, e no seguinte, O Buster Keaton das Alagoas, em que mostra a paixão de Graciliano Ramos pelo cinema.

O escritor inglês Aldous Huxley é tema de O sábio vitoriano, interessante pincelada sobre a importância, ou desimportância, segundo alguns dos seus críticos, do autor de Contraponto, e do romance de idéias, que ele tão bem representava, num momento, 2002, em que seus livros voltavam a ser editados no Brasil pela Globo. Palavras, words, mots, paroles inicia criticando traduções equivocadas de títulos de obras estrangeiras, no Brasil, mas que é, na verdade, uma deliciosa viagem sobre palavras, em diversas línguas, que não têm correspondência em português – e que, contrariando a xenofobia de alguns defensores do idioma, deveriam, segundo o autor, ser adotadas. Algo como Mokita, palavra usada na Nova Guiné para designar “uma verdade que é do conhecimento de todos mas ninguém tem coragem de falar”; como o verbo escocês to tartle, “que descreve o mal-estar que sentimos ao cumprimentarmos uma pessoa cujo nome esquecemos”, e

treppenwitz, expressão alemã para “aquela resposta bem dada que só nos

ocorre horas depois”.

A partir daí o livro deslancha, com o curioso artigo que dá título ao livro, no qual são enumeradas 1.001 formas usadas pelos escritores de diversos quadrantes e épocas para escrever seus livros. A saudade (Uma emoção

diferente), o hino nacional brasileiro (Virundu), a má fama de agosto, o

mágico Mandrake das antigas HQs, a resistência de intelectuais às evidências dos crimes cometidos por Stalin, as três grandes distopias dos século 20 (1984, Admirável mundo novo e o pouco conhecido predecessor destes, o romance Nós!, de Yevgeny Zamyatin), o fanatismo religioso, Millôr

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Fernandes, o CinemaScope, Mário Lago, as diferenças entre o turista e o viajante e por aí vai.

Especialmente deliciosos, os textos sobre cinema, como o que põe em xeque o mito, tão propalado pelos teóricos da nouvelle vague, de que “o cinema começa e termina na direção e tudo num filme deve exprimir uma individualidade” – noção favorável, por exemplo, à prometéica megalomania de cineastas como Erich von Stroheim, que se acreditava um deus. Ou, ainda, sobre o fascínio que o gênero western exerce nos alemães – mas que pouca equivalência tem nos tipos regionais do Brasil.

Os temas variam, para os mais diversos gostos, passando da alta cultura para os folhetins de aventura de Emilio Salgari. O nível do texto mantém, entretanto, o tom elevado e faz jus à afirmação de Luis Fernando Veríssimo, de que “é raro ver alguém tão erudito ser tão divertido, ou alguém tão divertido ser tão profundo, ou alguém tão profundo ser tão comunicativo”.

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