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Nas crônicas de A música liberta, Mirella Márcia Longo retrata com sensibilidade obras, autores e cenas do dia a dia.

Gêneros diversos, como a crônica, a ficção, o ensaio e a memória estão presentes – e algumas vezes se entrelaçam – nos textos de Mirella Márcia Longo, publicados originalmente no Jornal Soterópolis, e agora reunidos em seu terceiro livro, A música liberta. A dificuldade de encontrar critérios que agrupem os escritos (como ela mesma prefere chamá-los) numa definição precisa é referida pela própria autora, na breve apresentação que faz de sua obra. Segundo ela, em suas colaborações para o periódico, nas quais “misturara memória pessoal, comentário literário e registro poético de experiência cotidiana”, terminou julgando desnecessária essa definição.

Se em alguns dos textos se reconhece o toque predominante da crônica, no tratamento que dá aos fatos do cotidiano, em outros observa-se, como diz a própria autora, uma guinada para a prosa poética, “na medida em que sutilizam ao extremo, ou mesmo anulam a sequência temporal”. E, mesmo

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no momento em que a professora universitária imprime sua marca analítica, tomando como referência obras literárias e escritores (Machado de Assis, Eça de Queirós, Lobo Antunes, Tagore, Clarice Lispector etc.) ou cine- matográficas (A mulher e o atirador de facas, Amadeus, Lembranças de um

verão e Neve sobre os cedros), a escrita ganha sempre as características de uma

experiência compartilhada – e a subjetividade dá o tom lírico à observação distanciada dos objetos.

A diversidade de gêneros e abordagens, verificada no livro, não compromete o prazer do leitor; ao contrário, amplifica-o através de uma costura hábil e consciente, cujas linhas mestras são o estilo leve, claro e fluente, e a aguçada sensibilidade da autora. É, portanto, com enlevo que, ora sob o jugo do pensamento analítico, ora sob a tutela de comentários aparentemente descompromissados, ou na entrega a divagações e reminiscências, navega-se por fatos e acontecimentos do dia-a-dia, sempre enriquecidos pelo olhar poético, transfigurador.

Em grande parte dos textos, é visível a filiação da escritora a importantes autores líricos brasileiros do século 20, como Drummond e Rubem Braga. Não por acaso, Mirella é autora de um estudo sobre a poesia amorosa do primeiro (Confidência mineira, editado pela Edusp em 1995), e possuidora de uma paixão declarada pelas crônicas do segundo, tema de um dos escritos publicados no livro, Lembrança de um autor.

A filiação é visível, em muitos casos, sobretudo na capacidade de extrair dos fatos aparentemente insignificantes do dia-a-dia, a dimensão lírica que os tornam perenes. Sua trajetória é sempre no sentido do transitório para a permanência. É a autora mesma quem diz que “em vários escritos, o acontecimento leva à reflexão e, muito frequentemente, a uma ânsia de revelação. Em outros, os fatos ocorridos no presente imediato tornam-se pretextos para que se manifeste a persistência de instantes supostamente passados”. Assim, diz Mirella, mesmo dos escritos que se ligam diretamente às suas atividades de professora universitária e pesquisadora de literatura, “emergem recordações e registros poéticos do dia-a-dia”.

Como todo bom poeta lírico – e vale lembrar que Mirella é, antes de tudo, uma poeta, conforme revelou em sua estréia com O curso das águas

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CARLOS RIBEIRO

(Coleção dos Novos, 1981) – ela consegue libertar os fatos cotidianos do peso de suas contingências. Ao dizer que “o trânsito contínuo entre letra e vida tornaria falsa qualquer fronteira erguida entre a sensibilidade, a reflexão, a confissão, a observação e o juízo de valor”, lança-nos num espaço onde as coisas se misturam, mas que, ao final, faz ressurgir o que nelas têm de comum, de essencial.

Com um estilo envolvente e elegante, Mirella nos transporta à intimidade dos objetos sobre os quais se detêm: um casal de namorados que, num domingo, diantes um do outro, nos envolvem “num silêncio que não é paz, mas extermínio de sentido”; ou o padre que, na Igreja de São Francisco, mostra à narradora sua pequena coleção de cactos, nos quais ela sente “a ordem derramada sobre o mundo” e “a mão caridosa de Deus”. A experiência da perda (centrada no assassinato da colunista Maristela Bouzas, que foi sua aluna), ou a sucessão de rostos de crianças tragadas pela dor, pela violência, pela guerra e pela miséria, mostrados em fotografias, imagens de TV e em carne e osso, em Cabul, Belfast e nas ruas de Salvador – “meninos notáveis”, diz ela, diante dos quais caem-se os véus e revela-se a vergonha.

Você pode ler A música liberta como quem anda por ruas e becos de Salvador, pelos bosques da ficção ou, ainda, como quem se deixa transportar por uma sinfonia. Não por acaso a similitude verbal/musical, sugerida, como diz a professora da UFRJ, Rita Maria de Abreu Maia, na orelha, pela “pulsação rítmica da palavra lírica da autora”, é revelada no próprio título do livro, que por sua vez é uma referência à crônica A música liberta: conversa de natal

sobre piano e mar, uma das melhores do volume.

Nela, a autora/narradora é transportada, por uma certa melodia ouvida numa noite de Natal, a um fato que ocorreu quando tinha cinco anos e, também num Natal, recebeu do pai (Herbert Longo, a quem a crônica é dedicada) um piano. Ao ver um vizinho, recém chegado ao bairro – que pedira aos pais dela para tocar o instrumento – retirar-lhe uma das tampas de madeira, entrou em pânico, acalmando-se apenas ao ouvir “as ondas da música liberta, que se espalhava no ar”. Anos mais tarde, ao ouvir do irmão que algo similar acontecera entre ele, quando rapaz, e aquela mesma pessoa,

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perceberam que ambos haviam julgado injustamente o homem, que morreria tempos depois de um derrame.

E conclui:

Afinal, nós erramos, mas de nada adiantaram os nossos erros. O músico por duas vezes nos venceu. O homem conseguira, a despeito dos nossos limites, nos dar o melhor de si mesmo. De que valeram os gritos da menina, se os sons tocados naquela tarde ainda persistem em mim e sempre me convidam à audição de uma música executada sem barreiras? De que adiantaram a desconfiança e a revolta do jovem cansado, se elas não impediram que se gravasse, no adulto, a lembrança de um gesto solidário, feito com beleza e doação? E mais: nesse Natal, o flutuante musicista trazia um presente. Ao unir pedaços diversos das nossas memórias, ele ainda mais nos irmanava; agradeci e agradeço em oração a sua interferência luminosa. (LONGO, 2002, p. 71).

E não é exatamente isto que Mirella faz? Unir os pedaços diversos das suas memórias para nos dar um gesto solidário, feito com beleza e doação.

A Tarde, 2002.

Referências

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