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2.2 A delimitação de expressão idiomática

2.2.1 Fixação

Ao tratar da fixação, é pertinente, primeiramente, lembrar que está associada a outro mecanismo: à cristalização, ou seja, à consagração da UF pela tradição cultural.

Além de Saussure (2006), para quem as UFs, ao utilizar a denominação frases feitas, são o resultado da tradição cultural (ver 2.1), Bally (1951) define a fixação como o produto da repetição e, na mesma orientação, Coseriu (1977) concebe os fraseologismos dentro daquilo que é tradicionalmente fixado. Como é possível observar, para os estudiosos em questão, os fraseologismos são unidades resultantes do saber tradicional de uma comunidade.

Assim, de acordo com Zuluaga (1980, p. 99, tradução nossa)11, segundo o saber linguístico do falante, a fixação é entendida

11 como la propiedad que tienen ciertas expresiones de ser reproducidas en el hablar como combinaciones previamente hechas, tal como las estructuras prefabricadas en arquitectura. Desde el punto de vista de la

como a propriedade que certas expressões têm de serem reproduzidas na fala como combinações previamente feitas, tal como as estruturas pré-fabricadas na arquitetura. Do ponto de vista da linguística, [...] tal propriedade pode ser definida como a suspensão de alguma regra da combinação dos elementos do discurso.

Então, qual a relação direta da cristalização com a fixação? Quando se faz referência a unidades fraseológicas ou especificamente às expressões idiomáticas, por consequência, ocorre uma alusão a uma combinatória fechada, em que os seus sintagmas não permitem nenhuma possibilidade de substituição por associação paradigmática (XATARA, 1998). Em decorrência dessa estreita relação entre os elementos que compõem as EIs, não são possíveis determinadas operações típicas das associações paradigmáticas. Elucidando com exemplos do nosso próprio corpus, algumas das operações impossíveis em uma EI consistem em: alterar a ordem dos elementos (em dedicarsi/buttarsi anima e corpo a., a sequência corpo e anima não é possível); fazer qualquer alteração de número (dizer *con la testa tra la nuvola, em lugar de tra le nuvole); ou, ainda, inserir elementos que alterem a composição, ou substituir um elemento por outro (como, por exemplo, trocar o verbo perdere da EI perdere la testa por *scomparire). Nessa linha, concordamos com Ruiz Gurillo (1997, p. 55, tradução nossa)12 ao argumentar que por tais combinações serem “repetidas ao longo dos anos com a mesma ordem, com idênticos procedimentos gramaticais, com elementos léxicos iguais, cristalizaram-se como expressões fixas no sistema linguístico.”

Assinalamos que toda essa distribuição restrita está relacionada ao conhecimento que os falantes têm da expressão idiomática. Se qualquer alteração for feita, e os falantes não reconhecerem a expressão como parte integrante da língua, significa que ela não se constitui como tal ou pelo menos ainda não está lexicalizada no idioma. A utilização da proposição “parte integrante da língua”, é porque, de fato, consideramos o nosso objeto de estudo uma parte essencial da língua. Para Biderman (2005, p. 756), por sua vez, “a questão das EIs remete-nos ao domínio da norma e não da língua. Assim sendo, as EIs são aprendidas de cor como se aprende o vocabulário do idioma e elas fazem parte do acervo da cultura e não do sistema linguístico.” Contudo, a autora pontua que essas mesmas unidades fraseológicas vão sendo armazenadas na memória individual e coletiva e passam a incorporar o léxico da língua.

lingüística, [...] dicha propiedad puede ser definida como suspensión de alguna regla de la combinación de los elementos del discurso.

12 [...] repetidas a lo largo de los años con el mismo orden, con idénticos procedimientos gramaticales, con iguales componentes léxicos, han cristalizado como expresiones fijas en el sistema linguístico.

Como dissemos anteriormente, a Fraseologia voltada ao ensino de línguas é um campo de estudos que está avançando substancialmente (ver 2.1). Ocorre, entretanto, que se as expressões idiomáticas já são aprendidas pelo uso repetido, corre-se o risco de pensar equivocadamente que seria desnecessário ensiná-las. A nosso ver, não se trata, pois, de uma relação fechada, mas de ensinar o aluno a fazer relações, com o intuito de que seja capaz de identificar uma EI (ou outro fraseologismo qualquer), de compreendê-la e de utilizá-la adequadamente nos contextos linguístico e enunciativo correspondentes.

Voltamos a atenção, neste momento, para a estrutura das expressões idiomáticas. Se a forma delas é sempre a mesma, é porque os seus traços sintáticos e semânticos foram consagrados pelo uso assim. Desse modo, é difícil encontrar uma explicação para a forma com que determinada expressão se fixou, não há como explicar, por exemplo, as preferências pelo plural ou pelo singular.

Por outro lado, ressaltamos que há casos em que são permitidas alterações na estrutura da unidade fraseológica, contanto que não afetem sua unidade semântica. Na verdade, a fixação não é absoluta, e, como mencionamos, é possível encontrar diferentes graus de fixação nos fraseologismos, o que se aplica às expressões idiomáticas. Diante dessa dita flexibilidade (convencionalmente determinada, por estar prevista na norma da língua), pode- se dizer que existem escalas de variabilidade. Para Xatara (1998), essa variabilidade corresponde a diferentes graus de cristalização.

Tendo em vista a existência de variantes fraseológicas, apoiamo-nos em alguns dos fundamentos preconizados por Carneado Moré (1985) e por Roncolatto (2001). Com base na classificação que cada uma dessas fraseólogas empreende, enunciamos, a seguir, os tipos de variação mais frequentes, aliando-os com exemplos do material da nossa pesquisa na direção italiano-português.

As variantes podem ser classificadas em: morfológica (mudança na categoria “número” – a exemplo das EIsavere un(dei) grillo(i) per la testa (italiano) e “ter minhoca(s) na cabeça”/ “ter caraminhola(s) na cabeça” –, no determinante, na preposição ou outra modificação que não altere a função); lexical (substituição por unidades lexicais sinônimas ou de mesmo campo lexical), ilustrada por avere un cuore di sasso/ferro/pietra/ghiaccio/tigre (italiano) e “ter coração de pedra/ferro/gelo” (português); sintática (alteração de regência verbal, na ordem dos elementos, elipse ou acréscimo de elementos). Dentre as mudanças de ordem sintática, podemos mencionar vendere/dare l'anima (al diavolo), correspondente à expressão “vender/dar/entregar a alma (ao diabo)” no PB, em que é possível a elipse da parte al diavolo (ao diabo), e avere (un grande) cuore (italiano) e “ter (um grande) coração”

(português), em que tanto a EI italiana quanto a brasileira ocorrem com ou sem o artigo indefinido e o adjetivo. Quanto a esse último caso de variação (acréscimo de elementos), tomando os exemplos em questão, é preciso sublinhar que o efeito que essa interpolação causa é, sobretudo, o de intensificar a expressividade.

De outra perspectiva, Zuluaga (1980) considera como variantes somente aquelas de nível lexical, ou seja, aquela que se produz mediante substituição de uma parte da expressão. Para ele, variação sintática, como alteração na ordem dos elementos, não é possível. No entanto, atestamos no nosso corpus que os tipos de variações não se limitam às lexicais, como os exemplos de mudança sintática supracitados, mas destacamos que as de cunho lexical nos parecem ser as mais produtivas. Nessa perspectiva, enfatizamos que as variantes lexicais mais frequentes no material analisado foram as verbais – como é o caso de frullare ou saltare in testa – e as do componente lexical nominal – a exemplo de avere in mente/avere in petto/avere in cuore. Há casos em que as variações dentro de uma EI não se restringem a um único tipo. É o que se observa em arrivare/andare all’anima di, arrivare/scendere al cuore di. (italiano); “ir/chegar à alma de”, “ir/chegar ao coração de” (português), cujas expressões significam comover profundamente alguém, com variações nos componentes verbal e nominal. Acrescentamos que, nesse tipo de variação, segundo Alvarez (2000, p. 88), “cada componente, [...] potencialmente pode se manifestar em relações associativas sem detrimento do sentido do fraseologismo e sem alterar a sua estrutura com outro componente.”

Assim, aliada a essa constatação, para o que nos interessa, as variantes lexicais são valiosas, especialmente as que se manifestam pelos componentes nominal e adjetival, na medida em que favorecem a comparação das expressões idiomáticas por relações associativas. Dito de outro modo, é de nosso interesse analisar, dentro de um conceito emocional13, as variações que podem emergir das lexias14 do campo semântico do corpo humano nas duas línguas em apreço. Além disso, essa aplicabilidade é conferida às unidades fraseológicas sinônimas. Carneado Moré (1985, p. 61, tradução nossa)15 define-as “como unidades que têm forma interna e externa diferentes, todavia possuem significado comum e são empregadas em situações análogas”, por exemplo, as EIs italianas fare girare la testa a, perdere la testa per e as suas respectivas expressões brasileiras “virar a cabeça de”, “perder a cabeça por”.

13 A utilização do termo “conceito emocional” é uma influência que advém da tradução da denominação inglesa emotion concept, a qual é recorrente nos estudos de Kövecses (2000, 2005, 2010). Com esse tratamento, ora empregamos “emoção”, ora “conceito emocional”.

14 Levando em conta que o termo palavra, por diversas vezes, é impreciso, neste trabalho, empregamos os termos lexia ou unidade (ou item) lexical para se referir às formas que aparecem no discurso; são manifestações discursivas registradas no léxico da língua (BIDERMAN, 1996, 2001).

15 como unidades que tienen diferente forma interna y externa, pero significado común y que se emplean en situaciones análogas.

Problematizamos, na sequência, outro traço característico das unidades fraseológicas, em especial das expressões idiomáticas: a idiomaticidade. Trata-se de examinar um pouco mais essa propriedade, relacionando-a com as EIs.