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2.2 A delimitação de expressão idiomática

2.2.2 Idiomaticidade

Do mesmo modo como outras questões teóricas, existem diferenças entre alguns autores no tratamento dedicado à idiomaticidade. Podemos citar Zuluaga (1980, p. 122, tradução nossa)16 que a define como:

o traço semântico próprio de certas construções linguísticas fixas, cujo sentido não pode ser estabelecido a partir dos significados dos seus componentes nem do significado de sua combinação, ou, parafraseando a formulação de Bally (‘oubli du sens des élements’), idiomaticidade é a ausência de conteúdo semântico nos componentes.

Outro exemplo é o de Corpas Pastor (1997), para quem a idiomaticidade também é uma propriedade semântica pela qual o significado global de uma expressão idiomática não é dedutível a partir de seus elementos. Em uma orientação análoga, Tristá Pérez (1983, p. 50, tradução nossa)17 diz que “na combinação de palavras, cada uma das palavras que a compõe perde sua função nominativa própria.”

Para outros estudiosos, como Gibbs (1992, 1993), Iñesta Mena e Pamies Bertrán (2002), a idiomaticidade é um produto de processos metafóricos ou metonímicos. Não obstante, as conceituações para idiomaticidade coincidem, essencialmente, com a definição de que o significado global da expressão não equivale ao significado individual dos constituintes, por conseguinte, há uma perda do sentido denotativo e aquisição do sentido global conotativo.

Tomemos a expressão abbassare/chinare/piegare la testa (correspondente a “abaixar a cabeça” no PB”) como exemplo. O significado desse fraseologismo não é o produto da soma dos seus elementos, tampouco dos seus constituintes separadamente. Na realidade, para compreender o seu significado fraseológico, “ceder, submeter-se, aceitar uma humilhação”, é necessário recorrer a um processo metafórico. Nesse processo, a metáfora orientacional em questão sugere que triste é para baixo, de modo que a postura caída de quem abaixa a cabeça

16 [...] el rasgo semántico propio de ciertas construciones lingüísticas fijas, cuyo sentido no puede establecerse a partir de los significados de sus elementos componentes ni del de su combinación, o, parafraseando la formulación de Bally (“oubli du sens des élements”), idiomaticidad es ausencia de contenido semántico en los elementos componentes.

17 En la combinación de palabras, cada una de las palabras que la componen pierde su función nominativa propia.

revela tristeza (LAKOFF; JOHNSON, 2002)18; dessa postura decorre a relação entre os elementos da EI supracitada e o seu significado. Gostaríamos de explicitar, entretanto, que o significado idiomático da referida expressão pode indicar dois conceitos emocionais: tanto submissão quanto desânimo. Ao contrário dessa natureza, esclarecemos que essa EI em particular possui também um significado literal, e, nesse caso, corresponde à soma dos seus elementos. A diferença é que se isso ocorre, a expressão deixa de ser idiomática.

No caso dos significados idiomáticos, a aquisição do novo sentido, basicamente conotativo, “[...] é o resultado de um processo histórico em que o significado literal e o figurado se distanciaram progressivamente.” (RUIZ GURILLO, 1997, p. 63, tradução nossa)19.

Em consequência desse processo, Ruiz Gurillo (1997) pontua que hoje existem diversas expressões idiomáticas não motivadas. Dadas as proposições dessa autora, convém retomarmos discussão já realizada, a qual propõe a existência de graus ou escalas de idiomaticidade. Dessa forma, segundo essa gradação, diríamos que em expressões com maior grau de idiomaticidade, o significado literal estaria bem afastado ou distante. Por outro lado, expressões com menor grau de idiomaticidade guardariam uma relação mais imediata com o significado originário (literal).

No tocante à motivação, Zuluaga (1980, p. 128) argumenta que as expressões idiomáticas são duplamente arbitrárias. Primeiramente, são arbitrárias porque, como qualquer signo linguístico, a relação entre o significante e o significado não é motivada de forma natural. Em segundo lugar, os signos que integram essa UF não apresentam nenhuma motivação do ponto de vista linguístico, ao contrário do que acontece com as lexias complexas. No entanto, segundo a visão desse fraseólogo, quando se trata da sua origem, essas UFs são signos linguisticamente motivados, existindo uma motivação figurada em seu significado idiomático. Nas palavras dele, “[...] as expressões idiomáticas são signos linguisticamente motivados. Porém, essa motivação parcial originária desapareceu do funcionamento atual ou […], já não forma parte do significado referencial da expressão total [...].” (ZULUAGA, 1980, p. 128, tradução nossa)20.

Em consonância a Zuluaga (1980), Ruiz Gurillo (1997) concorda com o ponto de vista dele, visto que, para essa pesquisadora, apesar da arbitrariedade, é possível encontrar

18 Utilizamos a obra traduzida de Lakoff e Johnson, mas a obra foi originalmente publicada em 1980.

19 [...] es el resultado de un proceso histórico en el que el significado literal y el figurado fueron alejándose progressivamente.

20 […] las expresiones idiomáticas son signos linguísticamente motivados. Pero esa motivacíon parcial originaria ha desaparecido del funcionamento actual o [...], ya no forma parte del significado referencial de la expresion total [...].

expressões parcialmente motivadas – não totalmente arbitrárias. Ademais, se Zuluaga, quando trata da origem das expressões idiomáticas, faz referência à motivação como parcial, Ruiz Gurillo fala também em diferentes graus de motivação.

Diante dessas concepções, compartilhamos com o que Zuluaga (1980) e Ruiz Gurillo (1997) defendem a respeito da motivação parcial das expressões idiomáticas. Trata-se de levar em conta que a idiomaticidade é uma categoria gradual, ou seja, pode conservar alguma relação com o significado literal ou não, o que está relacionado à possibilidade de recuperar a imagem que a criou ou não. Logo, a motivação está inter-relacionada à idiomaticidade, posto que, dessa relação, se infere que quanto maior for a idiomaticidade da UF, menor se será sua motivação.

Com efeito, as EIs portam um caráter eminentemente conotativo, de modo que o seu significado é motivado por recursos como a metáfora, a metonímia, a hipérbole, etc., frutos das necessidades comunicacionais dos falantes (fator externo). Para Roncolatto (2001, p. 63), “as expressões idiomáticas são fruto de um processo metafórico de criação, no sentido que, com base em pontos de vista e visões de mundo, são criadas imagens mentais que geram metáforas.” A pesquisadora utiliza “metáfora” em sua definição, porque a metáfora é uma das principais figuras de linguagem que atuam na formação das expressões idiomáticas. Contudo, reconhecemos que há outras.

Nessa linha, concordamos que existe uma motivação figurada no significado global da expressão idiomática, sobretudo metafórica, o que constitui um ponto de interesse deste trabalho. Para tanto, interessa-nos a relação entre o significado literal-parcial e o metafórico- global, tentando resgatar parte dos valores metafóricos. Não obstante, para alguns estudiosos, essa motivação tende a desaparecer ao longo do tempo, e prova disso é que alguns consideram expressões idiomáticas como metáforas mortas.

Um exemplo de posicionamento teórico contrário à visão de metáforas mortas em expressões idiomáticas é dado por Gibbs e O’Brien (1990), ao efetuarem uma investigação de imagens mentais convencionais em fraseologismos do inglês, concluíram que as pessoas têm um conhecimento da base metafórica das EIs. Depois, em outros trabalhos, Gibbs (1992, 1993, 1994) novamente assume essa postura, contestando com veemência a visão supracitada. O argumento dele é que o sentido das expressões idiomáticas é motivado pela existência de metáforas conceptuais que fornecem a base para muitos dos nossos pensamentos diários (GIBBS, 1992).

Para Gibbs (1992), essas expressões mantêm boa parte de sua metaforicidade. Na tentativa de exemplificar o que esse autor afirma com dados do nosso material de pesquisa,

notamos que o significado figurado da EI italiana scaldare la testa a e do correspondente no PB “encher a cabeça de” é motivado pela metáfora “a mente é um recipiente”. Dessa maneira, o pesquisador em questão acredita que os significados dos elementos da expressão contribuam para o significado conotativo. À semelhança do que Gibbs preconiza, mencionamos ainda Titone e Conine (1999), que tocam na abordagem composicional das expressões idiomáticas. No estudo realizado por elas, um dos resultados evidencia que o significado literal das palavras facilita a compreensão das expressões idiomáticas, na medida em que ele se sobreponha semanticamente ao significado idiomático.

Para atingirmos os nossos propósitos, nesta pesquisa, partilhamos da perspectiva desses teóricos (GIBBS, O’BRIEN, 1990; GIBBS, 1992; TITONE, CONINE, 1999), já que não há como ignorar o papel do significado literal de muitas expressões idiomáticas em nossa reflexão. É, pois, esse significado que nos possibilita, por exemplo, ao comparar duas línguas, verificar a intensidade da carga semântica de um verbo da língua de partida e de outro da língua de chegada. Cabe explicitar que ao adotar a noção de significado literal neste trabalho, concebemos tradução literal de acordo com a concepção de Tagnin (1988, p. 44), para quem “a tradução literal é uma tradução lexical, ou seja, cada item lexical é traduzido pelo seu equivalente lexical na língua de chegada.” Além disso, as análises dos nossos dados apontaram que a maioria das EIs de nossa investigação tem alguma base metafórica ou, ainda, que, além de conter a metáfora, ocorre interagindo com outro processo cognitivo, no caso, a metonímia.

Como último aspecto das EIs que focalizaremos, prosseguimos com o exame da expressividade na próxima subseção.