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6. Individualidade, linguagem e emoção como ponto de partida para

6.7 Relatos biográficos – seis jovens entre os sonhos, os desejos, as

6.7.1 Caso 1 – Maitê entre o peso da Toga e o encanto pelo artesanato de bonecas

6.7.1.5 Formação, escolhas e perspectivas para o futuro

Maitê até aquele momento nunca havia sido remunerada. Cursou informática na empresa SOS Computadores e atuou como monitora voluntária ajudando num projeto de iniciação a informática com idosos. É comum empresas privadas oferecerem projetos sociais obtendo abatimento de impostos fiscais e aproveitando a disponibilidade de iniciantes no mercado para não pagar pelo serviço em troca da comprovação de experiência de trabalho de que estes neófitos tanto necessitam.

Maitê já quis trabalhar em escritório com trabalhos de informática, mas hoje não sabe se ainda gosta disso. As dúvidas sobre qual escolha profissional seguir é um dilema muito comum entre os jovens na difícil missão de definir em que trabalharão para o resto de suas vidas ou pelo menos por um bom tempo dela. Disse que foi chamada para uma entrevista de emprego para trabalhar nessa área, mas acabou desistindo porque teve que ajudar sua irmã. Seu novo trabalho é cuidar da sua sobrinha recém-nascida para que sua irmã volte a trabalhar. Foi a única que acompanhou a irmã no hospital, e justificou “ela precisava mais de mim do que eu do emprego”, e concluiu dizendo: “eu sou desse tipo de pessoa que gosta de ajudar os outros e deixo eu pra depois... sei que isso não é certo, mas...”. Sua irmã vai lhe ajudar dando um dinheiro para ficar com a sobrinha. Por causa disso mudou para o turno da noite na escola. Ela se revela pelos seus relatos muito altruísta, solícita e solidária.

Ao concluir o ensino médio, seus planos para 2015 é fazer faculdade de Direito, e que já está “super ansiosa”. A profissão desejada por Maitê é ser advogada. Questiono o

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porquê de sua escolha e ela diz que gosta dessa profissão. Pergunto o que acha que o advogado faz e diz que “o advogado fica lá no tribunal defendendo, ou, então, botando uma pessoa ruim na cadeia, é interessante colocar os bandidos na cadeia, eles merece”.

Conta que se não passar no ENEM vai tentar entrar na faculdade pelo FIES. Pergunto se ela sabe como funciona o FIES e ela me diz que não sabe, “assim só por alto, só de ouvir falar... e que leva um dinheirão, viu, e depois... eu já tô até pensando, tem hora que me dá um medo assim... sei lá vai que seja tanto, tanto, que eu não consiga pagar, né.... (risos). Mas eu tôdisposta”. Pergunto como ela soube do FIES, e ela disse que ouviu falar pelos seus amigos, que eles também vão fazer isso.

Sobre a origem de suas escolhas e ideias a respeito de seu futuro diz o seguinte:

Quando era criança sempre quis ser professora. Achava muito legal você ensinar outras pessoas. Mas quando vim morar em Fortaleza conheci uma mulher que quer que eu seja advogada, ela quer que eu faça Direito... isso não partiu de mim, não, partiu dela essa ideia. Que é pra eu ajudar meus pais. Esta senhora é advogada, os dois filhos são advogados e o marido é arquiteto. Eles moram na praia, mas é próxima da minha casa. Ela paga várias coisas pra mim, curso de redação pra mim fazer o ENEM... Aí tudo que eu quero, assim, questão de curso ou qualquer outra coisa assim, ela quer que eu ligue pra ela pra dizer, pra me ajudar. Mas não faço isso não, eu fico com vergonha, mas algumas vezes eu falo.

Antes, seu maior sonho era encontrar a mãe e os irmãos. Agora como já os encontrou, e não foi como ela queria que fosse, hoje quer “muito construir uma carreira de sucesso”, ajudar seus pais e se ajudar. Quer “conhecer vários lugares, como alguns países”, diz. Considera que nenhum de seus sonhos é possível no momento, porque a “carreira de sucesso” vai levar tempo. Acredita que vai começar a faculdade ano que vem. Para muitos jovens das classes favorecidas ingressarem no ensino superior e se formarem é apenas uma etapa evidente, mas nas classes populares equivale quase a ganhar na loteria.

Para Maitê concluir o ensino médio já será a realização de um sonho, pois de seus cinco irmãos, ela foi a única que estudou. Diz que será a única de seus familiares até agora que entrará na faculdade, que sua mãe disse que seus irmãos “não quiseram estudar”. Maitê faz uma ressalva: “vai ver eles não tiveram oportunidade”. Eles são agricultores e garimpeiros no Pará. Ela acha que eles não têm sonhos. Depois, para, pensa melhor e diz: “ou de repente eles têm”, mas ela diz não saber. Quer ajudar seus pais, e menciona seu pai e sua madrasta, dizendo considera-la sua mãe. Sempre quis dar tudo para eles, dar uma casa e uma vida melhor. Lembra que seu pai já teve uma casa, mas que ele precisou vender, e hoje não tem mais.

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Insisto sobre que desejos tem para o futuro, ela sorrir e diz “quero casar, ter filhos, mas não agora, porque sou muito nova, mas quando já tiver formada, quando tiver um emprego, puder me sustentar, quando já tiver ajudado meu pai e minha madrasta, aí sim vou pensar em ter filhos”. Pergunto quais são seus planos, como pretende alcançar seus sonhos e objetivos e ela responde: “estudando, só estudando bastante é que vai me levar a isso, né? A gente sem estudo não faz nada, tem que ser alguém na vida”.

Acredita que terá dificuldades, mas espera que não sejam tantas. Comenta: “vou encontrar pessoas que vão me ajudar e outras que vão atrapalhar. Agora, por exemplo, meu pai está querendo ir embora, sendo que a gente vai voltar pra um lugar que não tem oportunidades, não tem nada. Eu não terminei nem o terceiro ano ainda”. Relata que ele não está se dando bem aqui. Entende o lado dele, pois está desempregado e não tem trabalho. Quer voltar para Passagem Franca, no Maranhão e vai leva-la consigo. Mas também cogita deixa-la aqui se encontrar alguém que possa se responsabilizar por ela. Enfim, ela tem consciência das dificuldades que enfrentará, desde a entrada pelo ENEM, o risco do FIES, e acrescenta o medo de cursar o Direito pelo nível de dificuldade e a dedicação que supõe ser necessária. Lembra que o filho da sua tutora advogada está cursando Direito, e que, o nível de exigência e de envolvimento, requer muito esforço e ela não sabe se terá essa disponibilidade para só estudar.

Mas quando falamos sobre suas chances de sucesso, ela se mostra bem otimista dizendo que acredita que depois terá um “cargo reconhecido”, que sua madrinha já é muito conhecida e que ela lhe ajudará nessa empreitada, que ela lhe abrirá portas. Enxerga muitas conquistas para adiante.

Ao interrogar sobre sua inclinação profissional ela tira da cartola algo inusitado e revela: “assim, acho que poderia ser estilista, porque eu adoro fazer roupinha de boneca, saem tão perfeitas! Sei fazer um monte de roupinhas, e deixo elas [as bonecas] arrumadinhas!” Convido-lhe a falar sobre suas habilidades, e ela elege como a maior delas, como o que mais gosta de fazer: ajudar as pessoas. Que fica mal, triste mesmo, quando não pode atender ao ser solicitada e acha que isso é “meio anormal”. Questiono se ser solidária e comprometida com os outros não seria mais uma qualidade do que um problema. Ela sorrir e diz: “talvez...porque sinto muito prazer em ajudar”.

Pergunto-lhe sobre se há um plano B caso não consiga pôr em prática o planejamento que traçou. Sorrir e diz que não havia pensado sobre isso, e que realmente não sabe o que vai fazer caso isso ocorra. Finaliza agradecendo dizendo que foi muito bom ter sido entrevistada, e que isso é tudo sobre seus planos e sonhos, e sobre sua vida hoje.

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Vinda de uma peregrinação interiorana, Maitê parece adaptada à vida urbana apesar de ainda se sentir receosa e insegura em transitar pela cidade. Gosta de Fortaleza e vê nesta realidade a possibilidade de alcançar os objetivos que almeja: estudar, trabalhar, construir uma carreira e constituir família.

Alguns laços familiares se dissolveram e outros se consolidaram. A relação de incompletude com a mãe fica evidente pelo desejo de aproximação e sensação de rejeição, de desinteresse, por parte de sua progenitora. Sua frustração é visível na fala vacilante pela falta de estímulo da mãe em não procurar, e em não manter contato. Parece não saber nada da pessoa e da história da mãe. Procura disfarçar a carência de orfandade materna, que apesar de viva, se mostra em seus relatos, total e literalmente distante. Sua busca e anseio de amor (disse que era seu maior sonho até ter este contato) são revelados na sua fala e nas expressões de olhos marejados que seus sentimentos pela mãe não são vivenciados reciprocamente.

Na fala em que descreve a madrasta demonstra nutrir respeito, carinho e gratidão, junto à sensação de apoio. Mas é pela avó que o afeto materno mais se assemelha, ainda que ela não nomeie ou a defina assim, mas quando questionada, ela disse que era a que mais se aproximava dessa imagem. No entanto, é como se esse papel tivesse sempre ficado vazio. A ausência de afeto é um ponto forte na fala de Maitê.

Os propósitos dessa jovem de vinte anos abarcam uma responsabilidade por muita gente: seus progenitores, a si mesma, e já menciona seus descendentes. Seu raciocínio é guiado por uma lógica cronológica de ações que dão suporte a outras, sem as quais não é possível realizar seus desejos, sonhos e projetos. São planos elaborados com o mínimo de organização que demonstra reflexão e consciência de esquema de ações e causalidades, sabe que seja qual for sua escolha precisará estudar e persistir muito.

Seus sonhos e escolhas estão confusos. O que percebo é que sua opção pelo Direito foi forçada por uma influência tendenciosa, como se essa fosse uma carreira e ofício redentor, e uma alternativa de ter retorno financeiro garantido e reconhecimento social. Sua primeira opção antes de chegar a Fortaleza aos treze anos foi ser professora, até ter contato com sua tutora e orientadora de carreira. Ela fala do prazer e da realização de ensinar as pessoas. Enquanto que como advogada ela emite um discurso evasivo de defender as pessoas e prender os bandidos. Não está em discussão a nobreza e eficácia destes ofícios, mas suas escolhas mais genuínas acabam se revelando no decorrer da conversa, quando fala com orgulho do talento em costurar para bonecas.

Dez meses após a entrevista, em maio de 2015, com muita dificuldade Maitê conseguiu aderir ao FIES. Parou de trabalhar como babá da sobrinha e está cursando Direito

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na Faculdade Privada Estácio FIC no diurno e um cursinho preparatório para um concurso no INSS no noturno. Disse: “nem sei como me sinto... tô feliz... Minha família tá me apoiando e minha madrinha faz tudo por mim...”. Apesar do cansaço ela parece está satisfeita com as oportunidades que surgiram.

Lanço ao longo da entrevista e das conversas pelo whatsapp o questionamento de como percebe sua inclinação e sua escolha profissional, provocando-a para que avalie sua aptidão e vocação de vida. Ela enfatizada várias vezes ao longo do seu discurso a satisfação que sente em ajudar aos outros.