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6. Individualidade, linguagem e emoção como ponto de partida para

6.7 Relatos biográficos – seis jovens entre os sonhos, os desejos, as

6.7.3 Caso 3 – Lucas o profissional da saúde – entre a Odontologia e a

6.7.3.9 Os projetos de vida em curso em 2015

Em janeiro do ano corrente, por whatsapp, Lucas me relata seu descontentamento com a nota no ENEM que foi apenas 545 pontos. Não sendo possível ingressar na universidade pública e nem entrar pelo PROUNI com bolsa integral ou parcial, parte para terceira opção que é tentar a adesão do financiamento estudantil para garantir uma vaga em instituições de ensino superior da rede privada.

Relatou que a adesão ao FIES foi muito complicada. Entrava no sistema do Ministério da Educação e da Cultura (MEC), chegando a passar “três dias sem parar e não conseguia”. Depois de muitas tentativas, passou seus dados por telefone para sua Tia que é enfermeira, com quem morou seis meses em São Paulo e ela conseguir finalizar o processo33. Conta que foi bem burocrático para levar a documentação na faculdade, pois sempre dava algum problema, porque o sistema ficava fora do ar. Enfim, ele conseguiu ingressar no curso de Enfermagem na Faculdade Estácio FIC pelo FIES e diz que “só aí, já foi uma grande vitória”. A considerar que este programa de governo teve uma redução drástica, ele tem toda razão de se sentir um sorteado. Antes do início das aulas já se encontrava com o contrato do FIES em mãos.

Ele comenta, “nunca fui de guardar datas, mas essa foi especial, dia 11 de março de 2015, ingresso na faculdade”, e fala da experiência que está vivendo:

Tô apaixonado. Gosto tanto que virei monitor voluntário de anatomia. Tem dias que eu passo o dia inteiro lá pra ensinar outras pessoas. Nunca imaginei que fosse fazer enfermagem, mas tô gostando muito e não passa pela minha cabeça trocar de curso. Já me adaptei!

Questiono as outras opções que mencionou anteriormente (Odontologia e Fisioterapia), e ele responde: “Escolhi Enfermagem por impulso, sei lá... Odonto é um curso muito caro, e acho que a área da Enfermagem é melhor para se empregar”. Percebo que a Enfermagem era a última opção da área da Saúde. Tanto que não lembra ter ventilado a hipótese na entrevista. Talvez porque haja uma escala de valor de mercado e de prestígio no campo da Saúde, em que as outras opções que foram citadas ocupem posição de mais

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Os novos contratos de adesão ao FIES a partir de 2015, passaram por ajustes e o processo restringiu o número de vagas para obedecer a regras de seleção/adesão que antes não contemplavam (a nota de corte na prova do ENEM, passou a ser de 450 pontos na média geral). Além de exigências quanto a qualidade do ensino e a regularidades das Instituições de Ensino Superior, coincide com um momento político e econômico de redução de gastos públicos que afetou também a Educação Superior, dentre eles o FIES.

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destaque, logo, são mais concorridas e mais difíceis de alcançar. A afirmação “já me adaptei”, faz supor que se conformou a alternativa que foi possível. De qualquer modo, ele se mostra muito satisfeito. O pragmatismo para vida ‘grita’ mais alto.

Conta que na família “tá todo mundo orgulhoso”, com sua nova etapa de estudos. Os pais e a avó ficaram muito felizes. A avó passou por uma cirurgia na tireoide, mas já está bem. Sua mãe continua em São Paulo sem planos para voltar a terra natal. Foi visita-la no último natal e trouxe o irmão mais novo, de nove anos, consigo para morar com a avó paterna, juntamente com ele. No início o irmão teve muita dificuldade de se adaptar. Chorava e sofria muito pela ausência da mãe que ficou em São Paulo. Mas Lucas conta que a avó e o neto caçula hoje estão muito próximos, e que tem que “dividi-la” com o irmão, brinca.

Por fim, no início desse ano, quando Lucas voltou de São Paulo com o irmão de nove anos, seu pai, o ente querido que mais lhe preocupava, tomou um novo rumo. Conta que seu pai “não faz mais aquelas coisas” (se referindo ao uso de drogas). E detalha:

Ele mudou muito... Tá outra pessoa. Conheceu uma mulher, se juntou com ela, construiu uma casa... Paga a escola do meu irmão, dá dinheiro pra eu ir pra faculdade, faz compras e manda deixar aqui em casa... Tá ajudando bastante! [...] Agora sim eu tenho um pai! Depois que ele conheceu essa mulher, ele mudou... Ele era daquele jeito porque se sentia sozinho e abandonado. Ele sempre fez isso... Mas quando minha mãe deixou, ele piorou... Aí essa mulher foi uma segunda chance para ele...

Outro problema familiar que lhe incomodava era o descrédito e desprezo por parte do que ele chama de “lado rico” da família: tios, primos e outros parentes não tão próximos. Lucas conta que “ficou todo mundo admirado [com sua entrada na faculdade], muita gente veio me parabenizar... principalmente esses [parentes]. A vó ficou toda feliz [com a atitude deles]. Fiquei surpreso, mas gostei muito. Provei que não sou o que eles pensam que eu sou...”. Questiono o que ele acha que pensavam que ele era e ele diz: “Não botavam fé que um dia eu fosse chegar até aqui. Minha família é bem preconceituosa. Achavam que eu nunca fosse chegar nem ao ensino médio”.

No início do ano em curso ele procurou emprego num Shopping recém-inaugurado como vendedor num quiosque de eventos e como operador de telemarketing numa empresa de contabilidade. Mesmo selecionado por estas empresas não chegou a ocupar a vaga, porque para assinar a carteira de trabalho exigiam o documento de reservista que já deveria ter sido feito no ano anterior, mas disse nunca ter tido conhecimento disso. Já está providenciando este documento e está marcado para se apresentar no quartel no dia 03 de agosto, levando um tempo para receber a carteira. Como ele mesmo diz: “aí o que penso, já que vou passar o ano

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inteiro sem trabalhar, no ano que vem já posso estagiar...”. Em maio de 2015, envolvido com os estudos, Lucas declara que “daqui pra frente é só estudar. Já estou pesquisando sobre pós- graduação, vendo onde me encaixo”.

Lucas apresentou ao longo dos relatos uma relação desapegada com o tempo e os eventos de sua vida: separação dos pais, mudança para o interior, temporada em São Paulo, volta para Fortaleza quando passou a morar com a avó. Enfim, nunca sabe dizer quantos anos tinha e nem em que ano ocorreram essas alterações em sua vida. Mas relata em detalhes esses acontecimentos e sem reserva, abriu uma série de intimidades, frustrações, inquietações e desejos.

Na sua trajetória escolar há muitas informações que foram relegadas às parcas memórias. Coincidentemente, foi uma fase da vida de muitas turbulências familiares e de indefinidas territorialidades familiares, residenciais e de espaço escolar. Foram muitas mudanças e por motivos desestabilizadores. Mudando de domicílios, de guarda familiar, de cidade em cidade, de escola em escola, acabou se encontrando confortavelmente no lar e no seio familiar de sua avó paterna, a quem elege como a pessoa mais importante de sua vida.

A família é tema recorrente em seu discurso. Apesar dos episódios de violência que presenciou em família (entre os pais), o preconceito em relação a sua homossexualidade sofrida por um tio paterno (seu vizinho) e alguns parentes menos próximos, Lucas diz se sentir amado e acolhido por aqueles que lhe importa: sua avó, sua mãe, sua tia paterna que mora em São Paulo, seus primos próximos e seu pai. Na época da entrevista, antes da recuperação da dependência química, apesar da condição de penúria que ele descreve a vida de seu pai, enfatiza que quando não está sob efeito de drogas, ele lhe trata bem. Revela no final de nossa conversa que gostaria de ocupar sua mente e seu tempo futuramente com algo que garantisse paz para ele e seu pai. Antes da reabilitação do pai, se sentia cotidianamente atormentando por saber que ele definhava aos poucos. Por isso, uma de suas metas de vida era se profissionalizar para custear um tratamento eficaz de desintoxicação e reabilitação da dependência química de seu pai.

Lucas fala de maneira objetiva, sistematizada e empenhada de seus projetos de vida. Seu empenho escolar parece um meio para o reconhecimento social, sobretudo, na família. Contraditoriamente, na época da entrevista ainda na escola, seu envolvimento e satisfação nos estudos se misturam, como necessidade. Ele tem boas notas, é querido e bem avaliado por seus professores com quem conversei, e, é o interlocutor da pesquisa que mais citou e comentou livros. Concebe o título escolar como um fator compensatório para superar estigmas de ordem classista e sexual. O jovem reúne energia nas dificuldades para se motivar

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e lutar pelo que deseja. Menciona várias vezes o aprendizado como passaporte, como uma moeda capaz de adquirir um visto de entrada para uma condição de vida mais favorável não só materialmente, mas o aval para se firmar não só como profissional, mas como pessoa.