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Capítulo I: Contexto jornalístico e suas condicionantes históricas

2. Contexto histórico/jornalístico na Europa e nos EUA: do século XVII ao século XIX

2.1.3 O caso francês

O modelo francês era o ideal para um regime absolutista, que pretendia controlar o que se escrevia através de um sistema instituído de censura prévia, de um regime obrigatório de licenças e, ao mesmo tempo, financiar gazetas que estariam sob o seu domínio total, funcionando como base de uma propaganda monárquica. A imprensa periódica torna-se uma forma privilegiada do estado centralizado, absolutista, um instrumento de poder ao serviço do rei déspota. Como aduz Braojos Garrido (1999: 25), ―En lo comunicativo-periodístico, la afirmación del Absolutismo supuso una labor en dos direcciones: defensiva y ofensiva.‖

25 Os redatores seguiam instruções claras sobre o que escrever e como fazê-lo, o que terá acontecido em Mercure Français, mas principalmente na Gazette,27 de 30 de maio de 1631, dirigida por Théophraste Renaudot. Homem de notável valor cultural, interessou-se por todos os tipos de projetos e criou uma ―Agência de Informação‖ em 1629, onde se apresentam variadas atividades, como a recolha e publicação de pequenos anúncios, organização de conferências sobre temas médicos e medidas de socorro aos pobres (cf. Paz Rebollo 1996: 154).

O seu espírito intelectual ativo fez dele um homem de ação, que organizava frequentemente conferências e se preocupava em ajudar os mais necessitados (a título de exemplo refira-se a criação de um dispensário gratuito para os indigentes), o que acabaria por provocar os outros sem vocação altruísta. Esta sua forma de encarar a vida tê-lo-á levado a vários processos e polémicas.

Graças ao apoio de Richelieu, obtém o privilégio de impressão em outubro de 1631, que é confirmado em 1635. Desta forma, consegue garantir

[…] el derecho de hacer imprimir y vender por quien creyera oportuno las gacetas de noticias y relatos sobre todo lo que ha pasado y pasa, dentro y fuera del reino, conferencias, precios de las mercancías y otras impresiones de las citadas oficinas a perpetuidad, mientras dichas gacetas de noticias […] tengan curso en este reino, excluyendo a cualquier otra persona. (Guillamet 2004: 59).

A Gazette começou por ser um semanário com um pequeno formato, quatro páginas, que terá passado a oito em 1642, à semelhança do que aconteceu depois com outras gazetas europeias. As notícias que figuram nesta publicação são, maioritariamente, provenientes do estrangeiro, passando a incluir notícias, ainda que breves e sem caráter crítico, também da Corte a partir do sexto número.

Um jornalismo de análise e comentário iria ter lugar no seu suplemento mensal, as

Relations des nouvelles du monde (de fevereiro de 1632 a dezembro de 1633),

substituídas pelas Extraordinaires. Estes suplementos surgiam apenas em circunstâncias específicas, com o objetivo de descrever algum acontecimento, como foi o caso, por exemplo, da defesa da causa de Mazarino (sucessor de Richelieu). De periodicidade variável, estas espécies de ocasionais apresentavam grande qualidade, uma vez que se assemelhavam a uma gazeta que retratava acontecimentos particulares. Depois de permanecer nas mãos dos sucessores de Renaudot até 1749,28 passa a estar sob a alçada

27

A Gazette ―[…] inicia a propaganda oficial/estatal e consolida o modelo autoritário em matéria informativa de que a França é, sob o Antigo Regime, o seu máximo expoente.‖ (Paz Rebollo 1996: 153). 28 Neste ano, o sobrinho de Renaudot, Eusèbe Felix Chaspaux, marquês de Verneuil, vendeu os direitos da Gazette.

26 do Ministério de Assuntos Externos, em 1762, cuja direção estava a cargo de Choiseul. Esta alteração conduz a uma mudança no seu título, a nova Gazette de France, que se torna bi-hebdomadária, e a uma fachada que evidencia a sua ligação ao poder político, onde se ostenta o escudo de armas do rei. O ano de 1785 marca a sua entrada na cadeia de periódicos, pelos quais é responsável Panckoucke, grande editor da revolução.

No final do século XVII, assistimos a um período de queda decorrente de um maior controlo governamental a partir de 1660, da concorrência das notícias à mão e das folhas holandesas, bem como dos suplementos extraordinários do Mercure. Contudo, esta situação de quebra era contrabalançada pela tiragem elevada29 que alcançava nos períodos de guerra. Até à Revolução, este periódico concentrava as principais notícias políticas nacionais e do estrangeiro. Considerado como o primeiro e principal periódico da monarquia francesa num período aproximado de dois séculos, terá influenciado quase toda a Europa, por onde floresceram várias gazetas durante o Antigo Regime e ter-se-á constituído como o modelo de imprensa de Estado, oficial, que lhe permitia um controlo total da informação: ―Paradigma de centralización y homogeneidad, esta prensa oficial y única aseguraba a la monarquía francesa el control absoluto de la información y de la expresión cultural.‖ (Guillamet 2004: 59).

Para terminar a abordagem a esta publicação emblemática do jornalismo francês, referimo-nos a duas importantes inovações que a Gazette introduziu: a difusão do

Extraordinário era assegurada pelos vendedores ambulantes em 1650 e as reimpressões

regionais (que consistia em acrescentar notícias locais e publicidade ao texto parisiense) assumiam-se como importantes contributos para a história da imprensa local (cf. Paz Rebollo 1996: 155).

O contributo de Renaudot não termina aqui e não podemos deixar de mencionar, a partir de 1632, a publicação de Feuille du Bureau d’adresse, folha de anúncios que pode ser considerada precursora do que nós temos atualmente na secção dos classificados. Por sua vez, os seus herdeiros também foram pioneiros ao criarem, em 1650, o primeiro jornal francês a ter edições locais nas províncias, o Courrier Français, que, para além de conter publicidade, passa a ser vendido nas ruas.

29 ―Na sua época de esplendor chegou aos 12000 exemplares (em Paris e nas províncias). A venda fazia- -se sobretudo por assinatura. A distribuição nas províncias também se fazia em regime de monopólio. Havia duas categorias de assinantes: os «recomendados» (governadores, comissionados do rei, etc.) que recebiam a Gazette «fresca», sete dias depois de ser distribuída em Paris, e a «gente comum» que tinha acesso à Gazette «velha» com catorze dias de atraso.‖ (Paz Rebollo 1996: 155).

27 Na década de 60, surge outro título de referência francês, o Journal des Savants,30 que se caracteriza por ser uma publicação de índole cultural. Terá sido fundado em 1665, sob o patrocínio de Jean-Batiste Colbert, ministro de Estado de Luís XIV, e sob a direção de Denis Sallo, conselheiro do Parlamento. Assume-se como um defensor do Parlamento e contra o poder real e apresenta o seu jornal como um instrumento de crítica impiedosa das várias obras científicas e literárias que surgem em Paris e nas principais capitais europeias. Esta sua atuação mais ativa, como facilmente se percebe, fez com que se tivesse envolvido em algumas divergências com grupos poderosos, nomeadamente os jesuítas, o que teve como consequência a sua substituição31 por outro colaborador, o abade Gallois, que foi mais moderado e prudente nas críticas aos livros, especialmente os religiosos. Esta publicação bibliográfica, semanal no início, depois quinzenal e finalmente mensal (a partir de 1724), tinha por objetivo apresentar as obras publicadas em França e no exterior,32 tendo funcionado como modelo para outras publicações similares por toda a Europa. Em Trévoux, principado do duque do Maine, por exemplo, território escolhido para evitar o controlo e a censura, os jesuítas criaram, em 1712, um jornal literário intitulado Memórias para servir à História das Ciências e

das Artes, mais conhecido como Journal de Trevoux, que durou até 1764, data da

expulsão dos seus criadores. Esta publicação competia com o Journal des Savants, apresentando como novidade a inclusão de análises críticas de livros, ultrapassando a simples relação de novidades bibliográficas. O bom acolhimento que teve esta publicação deve-se ao seu monopólio e à inexistência no mercado de publicações semelhantes, o que levou a própria Academia de Ciências a financiar esta revista.

Depois de o ministro Colbert ter apoiado o surgimento de uma publicação, o que se torna revelador da vontade política em controlar e influenciar as leituras da futura audiência e a sua vida intelectual, agora seria o próprio monarca Luís XIV a encarregar- -se de apoiar a próxima publicação. Neste contexto, em 1672, Donneau de Vizé publica

30

―A indissociabilidade entre ciência e ideologia, entre saber e poder, tem neste exemplo de imprensa periódica real expressão.‖ (Alves 2005b

: 53).

31 A forma de compensar a dificuldade de criticar abertamente determinadas obras foi a deslocação para a Holanda, que se assumia como um país livre, com abertura de espírito. Neste sentido, o filósofo Pierre Bayle, retomando a tradição de Denis de Sallo, publica na Holanda, entre 1684 e 1687, um jornal que tem logo sucesso: o Nouvelles de la Rébuplique des Lettres, que ―[…] atravessava as fronteiras mais facilmente que a imprensa política e iludia mais facilmente a vigilância dos funcionários de alfândega.‖ (Jeanneney 1996: 29). A partir de 1687, data em que que Bayle abandona a direção da revista, passa a ser Jacques Bernard o responsável pela sua edição até 1718. Apesar de mudar a sua linha editorial, continua a afirmar-se como divulgador da ciência.

32 Esta revista ―[…] apresentava a visão francesa do mundo científico e cultural europeu e, precisamente graças a esta revista, Paris passou a reunir as referidas actividades.‖ (Paz Rebollo 1996: 156).

28

Mercure Galant, cujas páginas abordam conteúdos que eram pouco aflorados:

curiosidades, notícias mundanas, fenómenos insólitos, receções académicas, relatos de lugares, críticas de espetáculos, modas, poesias, enigmas, etc. Com uma vocação simultaneamente mundana e literária, esta publicação procurava entreter o público com os seus ambientes familiares, os círculos cortesãos e aristocráticos em que naturalmente se moviam.

A partir de 1724, momento em que fica a cargo do Ministério dos Assuntos Externos, passa a denominar-se Mercure de France.

Para além da imprensa protegida pelo poder, que abrangia todas as áreas (a

Gazette, dedicada à política, o Journal des Savants, de caráter científico, e o Mercure Galant, de cariz literário e mundano), surgiu outra não oficial, que se caracterizava por

não estar tão limitada pelos instrumentos repressivos que se impunham às publicações oficiais, condicionadas quanto à sua estrutura e conteúdo. É de realçar o papel desempenhado por estas notícias à mão que colmataram eventuais falhas conteudísticas da outra imprensa, estabelecendo-se uma positiva relação de complementaridade entre as duas:

Por uma espécie de compensação inerente à relativa mediocridade da imprensa de informação os noticiaristas tiveram, na França do Antigo Regime, uma importância considerável em Paris, e esse ambiente tão curioso, onde os espiões se misturavam com informantes da classe alta, inundava a França de múltiplas notícias a mão. (Albert e Terrou 1990: 16).

O fenómeno do florescimento da imprensa manuscrita foi crucial no cenário informativo, uma vez que os periódicos oficiais eram marcados pelas ausências informativas sempre que uma determinada notícia contestava a estabilidade do governo. É precisamente neste ambiente de perseguição mais rígida e de medidas repressivas que proliferam as tais folhas manuscritas que não precisavam de autorização estatal.

Estas circunstâncias explicam também o papel de relevo que os impressores holandeses e editores de publicações não autorizadas desempenharam ao apresentarem outra visão do que se passava. A Holanda convertera-se ―[…] en el centro europeo del intercambio de ideas y de la conspiración de la nueva ciencia, la nueva estética y la

nueva política frente al orden burgués y absolutista.‖ (Borderia Ortiz et al. 1998: 220).

Este país torna-se uma verdadeira região cosmopolita, à qual afluíam pessoas de todos os lados do mundo em busca do sonho da liberdade. Assentes neste ideal, as gazetas holandesas iriam funcionar como modelo para as publicações inglesas e de antimodelo para as gazetas dos países absolutistas europeus. Nestes países, apesar das tentativas

29 infrutíferas de limitar a circulação das gazetas holandesas, tornava-se impossível deter o seu âmbito de influência. Em solo francês, perspetivou-se a publicação de panfletos ou de outras formas escritas como a melhor maneira de contra-atacar e diminuir o seu poder.