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Capítulo I: Contexto jornalístico e suas condicionantes históricas

4 Gazeta de Lisboa

4.4 Notícias

Dando continuidade à estrutura presente nas suas congéneres europeias, verificámos que grande parte do corpo da Gazeta era ocupado com informações do estrangeiro,204 como mostra a carta de privilégio de 1715, notícias designadas de políticas, traduzidas e resumidas de gazetas europeias,205 trabalho que estaria a cargo do seu redator, José Freire Monterroio, que ocupa este lugar até 1760. O longo período em que este se responsabilizou pela redação da Gazeta conduziu a uma identificação muito próxima entre a conceção deste jornal e a própria personalidade e estilo do seu redator, o que explica a denominação com que terá ficado conhecida neste período,206 a Gazeta

de Monterroio.

O noticiário sobre a realidade internacional beneficiava de uma maior liberdade de difusão, mesmo quando estamos perante acontecimentos que não se coadunam com a nossa realidade e mentalidade. Permite-nos, por um lado, ficar com uma visão genérica do panorama europeu e, por outro lado, ajuda-nos a conhecer a posição portuguesa sobre determinados acontecimentos, pela forma como se enaltecem, subestimam ou omitem determinadas informações (cf. Vieira 2001: 17).

A parte final desta publicação, numa tendência de aproximação geográfica, era ocupada com o noticiário nacional, que se podia subdividir em metropolitano e ultramarino. Este movimento centrípeto, que dá origem à produção de um noticiário nacional, constituía uma parte reduzida do periódico, marcada por uma vigilância mais acentuada do que nas notícias de âmbito internacional, conforme é anunciado por Belo (2001: 114): ―Uma espécie de lei da circulação centrífuga das notícias parece estar

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[…] o noticiário europeu da Gazeta de Lisboa pôde exercer e exerceu, com certeza, um importantíssimo papel, ainda por estudar, na actualização dos conceitos político-sociais e económicos das camadas populacionais até aí privadas de uma informação regular e completa. Anteriormente, só uma medíocre percentagem de personalidades, ligadas à máquina administrativa ou diplomática da corte, poderia beneficiar de informações válidas sobre o desenrolar dos acontecimentos além-fronteiras. (Vieira 2001: 21).

205 No privilégio original, não há referências à redação de notícias sobre Portugal. Ainda assim, a Gazeta apresentou sempre notícias sobre o nosso país, ainda que reduzidas.

206 Este primeiro período de vida da Gazeta (1715-1760) foi trabalhado em teses académicas, de uma forma aprofundada, ultrapassando a vertente superficial com que este periódico tinha sido aflorado na historiografia jornalística. Referimo-nos às teses de mestrado e doutoramento de André Belo. A primeira intitulada de As Gazetas e os Livros. A Gazeta de Lisboa e a Vulgarização do Impresso em Portugal (1715-1760), apresentada no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa em 1997 e a segunda, intitulada de Nouvelles d’Ancien Régime. La Gazeta de Lisboa et l’information manuscrite au Portugal (1715-1760), apresentada na École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, em 2005. A tese de doutoramento de João Luís Lisboa é também uma referência nesta linha de investigação: Mots (dits) écrits. Formes et valeurs de la diffusion des idées au 18ème siècle au Portugal, apresentada no Instituto Universitário Europeu, Florença, em 1998.

143 presente no periódico: a informação é tanto mais rica e abundante quanto mais afastada está da redacção‖. Por outro lado, o reduzido espaço disponível para estas notícias estava limitado pela periodicidade semanal que se impunha. No caso das notícias sobre o estrangeiro, parte predominante deste e de outros periódicos do género, as notícias, essencialmente políticas e militares, eram preparadas com tempo, uma vez que não se impunha um nível de atualidade tão elevado.

As notícias sobre a Corte, na capital, preenchiam maioritariamente este espaço reduzido, ainda que por vezes surgissem informações sobre outras localidades, obtidas através de correspondência e com grande atraso. Relativamente aos temas abordados no noticiário nacional, podem resumir-se ao seguinte:

a) Saúde do rei e da família real;

b) Assistência do rei a conselhos, cerimónias religiosas, políticas e militares, ou simplesmente a passeios e viagens;

c) Notas pessoais sobre nobres e grandes dignitários - casamentos, mortes e nascimentos;

d) Notícias sobre religião: construção de igrejas e conventos, movimento eclesiástico, nomeações e investiduras, notas biográficas de religiosos notáveis pelos seus feitos ou conhecimentos, autos de fé, etc.;

e) Publicação de decretos;

f) Nomeações para lugares importantes na metrópole, ultramar e estrangeiro, ou simplesmente concessão de benesses do favor real a várias individualidades ou instituições;

g) Movimento de armadas e movimento portuário;

h) Cartas sobre territórios ultramarinos, especialmente do Brasil e da Índia; i) Relato anual da Misericórdia de Lisboa;

j) Resumo de sessões académicas; k) Notícias variadas. (Vieira 2001: 16).

Nesta secção reduzida dedicada ao reino, marcada pela ausência de uma reflexão crítica sobre os acontecimentos, o redator mais importante da Gazeta, Monterroio Mascarenhas, apresenta uma forma de escrita impessoal, em que é notória a ausência de um estilo personalizado, que contrasta com o estilo que assume na sua correspondência, local onde ele abertamente reflete e opina sobre os acontecimentos do reino (cf. Belo 2005 e 2001).

Apesar de Monterroio ser escritor e membro de várias academias, raramente usa uma prosa artística207 no seu jornal, optando por uma linguagem sóbria e objetiva, que se impõe também pela falta de tempo.

207 Esta prosa artística surge apenas em determinadas notícias nacionais, ―[…] quando descreve solenidades cortesãs e religiosas, ou quando faz a apologia de personagem ilustre ou louva o mérito de alguns livros. Temos, então, uma prosa longa, entumecida de superlativos.‖ (Vieira 2001: 24).

144 Tal como refere Vieira, Monterroio Mascarenhas

[…] é o grande pioneiro do jornalismo português, improvisando ou criando uma nova linguagem adequada ao discurso da imprensa periódica, assimilando e traduzindo para o Português o que de melhor se escrevia e publicava na comunicação social europeia da sua época. Longe de ser simples tradutor, seleccionava das diferentes fontes ao seu dispor, quadros expressivos das cenas políticas, diplomáticas e militares de toda a Europa que expõe ao leitor da Gazeta. (Vieira 2001: 58).

A seleção destas notícias era característica dos periódicos dos séculos XVII e XVIII, inseridos naquilo a que Habermas (1986) chama de ―esfera pública estruturada pela representação‖, denominação que remete para a relação que se estabelecia entre estas notícias e a corte, assumindo que elas seriam uma espécie de representação do que sucedia na corte. Os periódicos reproduziam o seu ambiente, apresentando um discurso que estaria, de certa forma, condicionado por esta relação estreita. Não nos podemos esquecer de que se vivia num regime absolutista, marcado pela censura, onde a margem de liberdade do redator é diminuta, principalmente quando nos referimos a acontecimentos internos.

Neste reinado Joanino, a censura era constituída por três entidades: a inquisição, o bispado e o Desembargo do Paço, no entanto, devido à sua periodicidade, a Gazeta poderá ter escapado a este procedimento,208 principalmente quando saía duas vezes por semana, momento em que seria ainda mais complicado proceder a uma revisão tripla. Belo baseia-se nas fontes manuscritas para mostrar que, na generalidade, são feitas referências apenas à censura real, através da leitura do próprio rei ou de alguém delegado por ele para ocupar o cargo de censor da Gazeta (cf. Belo 2005: 82-85).

O crescimento da Gazeta motivou uma atenção redobrada por parte do rei, que chama a atenção para a omissão ou inserção de determinadas notícias, o que condiciona o trabalho de Monterroio e os seus critérios de seleção de notícias. Uma das suas preocupações passava pelos intervenientes que figuravam nas notícias, que ele pretendia ver restringidos a um grupo social mais elevado, o da aristocracia cortesã, que se torna numa obsessão para Monterroio e marca do reinado Joanino. Este monarca queria ver representados no periódico ―oficial‖ da corte o seu ambiente, a ordem, as cerimónias e as hierarquias, numa obsessão pela ordem social que não podia ser desestabilizada:

208 Considerava-se a hipótese ―[…] de que a Gazeta era revista apenas uma vez, no Desembargo do Paço, e que, diferentemente dos livros, ela não regressava àquele tribunal da coroa para comparação do exemplar impresso com o manuscrito original.‖ (Belo 2001: 58).

145 A importância da questão da nomeação das diferentes hierarquias sociais (leis

dos «tratamentos») e das questões de precedência no reinado de D. João V encontra uma tradução muito visível no periódico. Concebido como a encenação de um desfile de personagens públicas, o trabalho de redacção parece viver obcecado com a hierarquia e com a correcta nomeação das personagens. (Belo 2001: 111).

Apesar de respeitar e partilhar a estrutura e hierarquia social que provém da corte, reprimindo todas as informações e personagens populares, pontualmente, e denotando uma relativa autonomia, Monterroio insere algumas notícias sobre personalidades de estratos sociais inferiores, desde que o acontecimento por eles protagonizado o justifique, como era o caso de situações que invertiam a ordem natural, ou de personalidades que, pela sua conduta, eram dignas de memória e, por isso, possuíam requisitos para integrar o periódico. Exemplo disto foi a inserção de uma notícia sobre um homem de baixo extrato social, o cego José de Sousa, que se distinguiu pelo seu trabalho enquanto autor de obras em prosa e verso e membro da Academia dos Anónimos. Neste sentido, considerando o seu percurso, Monterroio considerou justo honrá-lo e noticiou a sua morte na Gazeta (cf. Belo 2001: 61).

Estes casos de pessoas de extratos sociais considerados inferiores são muito pontuais, uma vez que o próprio Monterroio partilha dos critérios de seleção social da coroa, sendo muito rigoroso nos títulos e hierarquias apresentados:

―La définition dês critères d‘accès aux pages du périodique n‘était donc pas une préoccupation exclusive de la censure du roi: elle était accompagnée d‘une clé de sélection généalogique dans la rédaction – et dans la lecture – des récits de la gazette.‖ (Belo 2005: 94).

Para além da censura, o periódico estava sujeito a pressões de diversa ordem, como aconteceu, por exemplo, num caso concreto em que um dos intervenientes de um episódio, desagradado com o que se dizia na Gazeta, questionou o impressor e Monterroio sobre o seu conteúdo (cf. Belo 2004: 6).

Concluindo, podemos apresentar como características das notícias da corte a preocupação com a hierarquia social e a seleção de notícias tendo por base o estatuto social dos seus intervenientes, para além de ter como objetivo a regularização de situações conflituosas, evitando as referências aos conflitos político-diplomáticos. Nestes casos, é de registar o silêncio perante os momentos de tensão, num periódico que lida mal com o imprevisível, preferindo a ordem linear, a continuidade, num tempo sem novidades.

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