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Capítulo I: Contexto jornalístico e suas condicionantes históricas

2. Contexto histórico/jornalístico na Europa e nos EUA: do século XVII ao século XIX

2.1.2 O caso inglês

A imprensa europeia ficou marcada pelo surgimento de dois modelos de jornalismo distintos. O inglês, tendo por base uma relação equilibrada entre o monarca e o parlamento, defende a liberdade de imprensa e lança as bases do que é o jornalismo ocidental contemporâneo (modelo ocidental de jornalismo); o francês exige uma forma censorial de controlo estatal sobre as publicações periódicas, sendo, por isso, o mais eficaz num regime absolutista ou ditatorial (modelo autoritário de jornalismo). Este último foi o mais representativo no continente europeu.

Referimo-nos a estes dois países inicialmente porque serão eles que irão condicionar o panorama jornalístico seiscentista europeu.

No caso inglês, a luta política que marcou este país desde o século XVII até ao final do XVIII condicionou totalmente as características da imprensa inglesa que, devido à importância que adquire, leva Burke a apelidá-la de quarto poder, em 1787. Os conflitos políticos e militares que o país atravessava condicionam o uso dos jornais como arma política, levando ao surgimento de um jornalismo de cariz político- -noticioso, partidário.

No século XVII, sob os Tudor e os primeiros Stuart, as folhas autorizadas passaram por um período complicado, algumas com uma duração efémera. Numa época de grande tensão, provocada por mudanças políticas, religiosas e novas condições económicas e sociais, a imprensa apresentava um potencial subversivo e podia ser extremamente crítica com um regime. Tendo consciência deste seu papel, os governantes começaram a sentir necessidade de a controlar, o que fica claro pela publicação, por parte de Henrique VIII, da primeira lista de livros proibidos, em 1529. Um ano mais tarde, o estabelecimento do primeiro sistema de licenças constituiu um entrave às publicações, que tinham de ser aprovadas pela autoridade responsável, que era inicialmente eclesiástica. Em 1577, a rainha Maria Tudor criou uma instituição, a «Stationers‘ Company», constituída por editores, livreiros e impressores, que controlava o material publicado. A imprensa ainda iria sofrer com a ordenação de outra disposição legal, em 1586, por parte da rainha Isabel I, o Decreto da «Star Chamber», em que se estabelece a regulação da imprensa para os próximos cem anos.

A par do que aconteceu no resto da Europa, também em Inglaterra se adotavam políticas de controlo das publicações, através de um sistema de licenças ou privilégios.

19 Para além da censura que controlava os escritos, a imprensa era usada como uma forma de ―manipulação‖, para criar uma imagem positiva no povo e conseguir o seu apoio incondicional. Neste sentido, foram vários os casos em que o próprio governo teve um papel decisivo no desenvolvimento do jornalismo, que passou a ser encarado como uma ferramenta útil de controlo ideológico.

No início do século XVII, o marasmo em que se encontrava o panorama jornalístico britânico necessitava de um estímulo, conseguido através de um elevado fluxo de notícias decorrentes de um marco significativo que foi a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648). Durante este período começa a expansão das publicações informativas com A Current of General Newes (1622), primeiro semanário inglês, e

Mercurius Britannicus (1625), editados pelos livreiros Nathaniel Butter, Nicholas

Bourne e Thomas Archer, que dominaram o panorama do jornalismo inglês entre 1620 e 1640. Os dois primeiros19 foram pioneiros na criação de uma folha de notícias, ao editarem, em 1622, uma publicação de tamanho in-quarto e com uma extensão variável. Por volta de 1624, estas publicações, que já estavam numeradas de forma consecutiva, adquiriram um título fixo: Mercurius Britannicus (cf. Garrido Donaire 1996: 212).

As diferentes publicações de índole jornalística que começam a surgir têm como consequência a existência de algumas vozes discordantes que cedo começam a vislumbrar vários defeitos e problemas aliados a estes textos. A maior parte das críticas à imprensa prendia-se com a falta de precisão, correção e atualidade das informações (cf. Braojos Garrido 1999: 29). Deste modo, representou-se em Londres, em 1626, uma obra de Ben Jonson, The Staple of News, através da qual se critica a forma pouco rigorosa com que os escritores de notícias da época tratavam a informação.

A guerra civil inglesa constituiu-se como um período fértil em notícias, responsável pelo florescimento de várias publicações e marcado pela forte atividade propagandística, associada a situações de plágios e outros abusos. A abolição da «Star Chamber» em 1641 foi outro acontecimento marcante na história jornalística, enquanto responsável pela proliferação de várias publicações, entre as quais os panfletos e os libelos, usados como instrumentos críticos relativamente à atuação de cada fação política.

19 Butter e Bourne conseguiram uma autorização real para imprimir e publicar notícias do estrangeiro ou do reino durante 21 anos, em troca de 10 libras pagas anualmente à Igreja de St. Paul de Londres. Desta forma, estes primeiros jornalistas transformavam-se em funcionários do rei.

20 Como defensor da causa realista, é publicado, em 1643, em Oxford, o Mercurius

Aulicus ou Academicus, editado por John Berkenhead, que atacava energicamente os

seus rivais, os líderes do Parlamento. A reação a esta publicação aconteceu em Londres, com o Mercurius Britannicus, editado pelo capitão Audley com a colaboração de Marchamont Needham. Merece também destaque o Diurnall, de Samuel Pecke, considerado o primeiro grande periodista inglês (cf. Weill 2007: 30-35), que alcançou elevada tiragem.

O vazio legal ao nível da imprensa iria terminar com o restabelecimento da censura e controlo das publicações através das «Leis de Junho», de 1643. O Parlamento ganha força e passa a ser o responsável pelo controlo da imprensa, assumindo o papel que normalmente estava a cargo da Coroa. O novo sistema de licenças passa a estar sob a responsabilidade de determinadas pessoas e a «Stationers‘ Company» fiscaliza a edição de livros.

A censura e, neste caso específico, as «Leis de Junho» terão desagradado a algumas figuras que consideravam a liberdade como um direito necessário para o desenvolvimento das sociedades. Um exemplo emblemático das personalidades que se insurgiam contra estas restrições foi John Milton, que ficou conhecido pelo discurso que apresentou no Parlamento, em 1644, intitulado de Areopagitica,20 a favor da liberdade de expressão. Apoia-se na Petition of the Rights, aprovada em 1628 (relembrando as liberdades inglesas da Carta Magna de 1215), na supressão da censura de 1641-1643, que acabaria em 1649 com a execução do rei e a proclamação da república, para iniciar uma longa caminhada no sentido da institucionalização da liberdade de expressão. Este filósofo, poeta e jornalista parecia defender a liberdade de imprensa, no entanto percebe-se agora que ele reivindicava uma liberdade genérica de qualquer escritor, referindo-se mais aos livros do que propriamente aos jornais. Considera que a atividade do jornalista deve ser controlada e perceciona essa atividade, tal como outros seus coetâneos, de uma forma pejorativa, preconceituosa, entendida como ―[…] um

20 Alguns anos mais tarde, o próprio Milton alude à intenção que esteve na base da redação deste texto laudatário da liberdade de expressão:

Escribí mi Areopagítica siguiendo el verdadero estilo Ático, para librar a la imprenta de las restricciones que le afectaban; que el poder de determinar lo que era verdad, lo que debía ser publicado y lo que debía ser suprimido, no podía ser confiado durante más tiempo a unos pocos individuos iletrados y antiliberales, que negaban su aprobación a cualquier trabajo que contuviera opiniones o sentimientos superiores al nivel de la vulgar superstición. (Borderia Ortiz et al. 1998: 229).

21 instrumento de banalização dos comunicados, e que os níveis importantes de verdade só pertenciam aos géneros nobres.‖ (Garrido Donaire 1996: 218).

Apesar de todo o controlo e restrição, o fenómeno jornalístico continua a proliferar, assumindo-se como um instrumento vital de troca de informações, do qual muitos já não prescindem.

O ano de 1645 marca o fim do Mercurius Aulicus e acaba por afetar o destino do seu rival, Mercurius Britannicus, que tinha como razão de existência e da sua favorável posição a crítica à imprensa realista. Para compensar o vazio deixado pelo Aulicus, os defensores do rei apresentaram uma nova publicação, o Mercurius Civicus ou

Pragmaticus, editado por Needham, que se tornou, curiosamente, um defensor acérrimo

e propagandista desta fação política. No entanto, este ambiente de relativa discussão de ideias, protagonizado pelos jornais de diferentes fações, deixa de existir a partir do momento em que Oliver Cromwell toma o poder pela força, depois de Carlos I ter sido decapitado, em 1649. As restrições às diferentes publicações aumentam, sendo aprovada uma nova lei de imprensa no Parlamento a 20 de setembro do mesmo ano.

A primeira publicação a surgir neste novo ciclo da história da imprensa inglesa, em 1649, era o paradigma do que devia ser e conter uma publicação autorizada, com poucas notícias sobre o panorama nacional e intitulada de A Brief Relation of Some

Affaires and Transactions, Civil and Military, both Foreign and Domestick. Os jornais

tinham de ser cautelosos e evitar assuntos que poderiam causar polémica, por exemplo a nível político e religioso, como já se tornou notório, se estivermos a falar do caso nacional. Neste contexto, facilmente se percebe o nascimento de algumas publicações que usavam o humor21 como forma de descontração e entretenimento.

A resposta realista aparece no mesmo ano, em março de 1649, com o The Royal

Diurnall, insurgindo-se contra os líderes republicanos, ainda que tenham tido pouco

tempo para defender a sua causa, uma vez sujeitos a fortes perseguições.

Por seu lado, o governo rapidamente se apercebe das vantagens que lhe poderá trazer uma utilização estratégica do jornal, usando-o como instrumento propagandístico,

21 Destacamos, nesta linha, John Crouch, que em 1652 lançou um novo jornal, Mercurius Democritus, que, devido ao seu êxito, acaba por inspirar outras publicações: Laughing Mercury, Mercurius Infernus, Mercurius Jocosus, Mercurius Cinicus e Mercurius Fumigosus.

22 o que explica a publicação de um novo jornal, em 1650, o Mercurius Politicus, editado por Needham e autorizado por Milton.22

Em agosto de 1655, Cromwell sente necessidade de controlar ainda mais a imprensa, através da criação de uma lei de repressão da mesma, o que se repercute num cenário jornalístico muito reduzido, onde figuram apenas o Mercurius Politicus, de Needham, e uma edição de segunda-feira intitulada The Public Intelligencer. Não obstante, durante esta tentativa de criação de um monopólio informativo, lembrando o modelo absolutista de informação, marcado por momentos de forte restrição, ―[…] continuaron saliendo de las prensas multitud de folletos, opúsculos y libelos.‖ (Borderia Ortiz et al. 1998: 230). Ademais, o cenário jornalístico inglês autorizado, que, a partir de 1655, era apenas constituído por dois títulos, vê agora o seu número aumentar para três, com a publicação e autorização do Public Advertiser, de Needham, que é um jornal exclusivamente dedicado aos anúncios publicitários, inaugurando, desta forma, a imprensa publicitária:

De esta manera, aquella Inglaterra, de amplia experiencia en las técnicas del debate y de la propaganda por conducto de la prensa política e incluso que había ensayado com la humorística y com la de temas escabrosos, inauguraba igualmente la publicitaria. (Braojos Garrido 1999: 31).

A restauração da monarquia, em 1660, com a chegada de Carlos II, iria constituir-se como mais um momento de severo controlo da imprensa. Destacam-se dois marcos importantes nesta linha: se, por um lado, foi proibida, dois anos mais tarde, a publicação das atas das sessões do Parlamento, por outro lado, o Licensing Act23 (1662) terá reforçado o sistema de autorização prévia e censura, que só deixa de vigorar em 1695. A supressão desta lei faz com que este seja um momento de referência24 na história da imprensa inglesa, uma vez que marca o fim definitivo do sistema medieval de controlo da imprensa mediante a concessão de licenças a priori e a abolição da censura prévia. O cumprimento desta lei estava a ser controlado pelo novo inspetor da

22

Causa alguma estranheza o facto de ter sido este mesmo Milton a produzir um discurso, a Areopagitica, que foi considerado a defesa moderna da liberdade de expressão e agora ser responsável pela concessão de licenças para publicação, cargo proposto por Cromwell.

23 ―Esta era uma norma rigorosa, através da qual se restringia o uso da impressão aos mestres da «Stationers‘ Company», às duas universidades e ao arcebispado de York, como também se controlava rigidamente o grémio de impressores (não se criou uma única oficina de impressão nesta fase) e protegia- -se a censura prévia.‖ (Garrido Donaire 1996: 222).

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John Locke teve um papel importante na anulação do Licensing Act, através da sua ―[…] arguição que incide sobre aspectos económicos e materiais, ou seja, o teorizador, entre outros, do liberalismo demonstra que a censura prévia prejudica as impressoras inglesas em favor das tipografias holandesas.‖ (Alves 2005b: 56).

23 imprensa, sir Roger l‘Estrange, que temia a influência dos jornais principalmente nas classes sociais desfavorecidas. Considerava-os prejudiciais para o país, uma vez que permitiam ao povo um acesso a assuntos do governo, o que conduzia a uma reflexão crítica sobre os mesmos que não era tida como conveniente. A censura era precisamente uma importante ferramenta que tinha como objetivo evitar a livre crítica dos temas sociais, religiosos e políticos.

Em 1666, surge um novo jornal de caráter oficial, editado por Muddiman, o

Oxford Gazette,25 que passados uns meses se transformou em London Gazette. Esta publicação apresenta como inovações, em relação ao seu antecessor, algumas cartas manuscritas dirigidas a cada assinante de forma particular, nas quais havia informação de índole privada, e a sua edição internacional, que resultava da consciência da influente posição da Inglaterra no Mundo (cf. Garrido Donaire 1996: 223).

Nesta centúria, há que destacar, para além das publicações já mencionadas, o papel das «coffee-houses»,26 especialmente na capital, que se assumiram como verdadeiros locais de troca de informações e de debate político. Circulam aqui as «news-letters», que se assumem como contrárias à governação, o que acabou por influenciar o estabelecimento de um decreto-lei, em 1676,no qual se instituiu a abolição de todas as «coffee-houses», que viriam a alcançar o seu auge em finais do século.

Neste período, não podemos deixar de nos referir à primeira biblioteca pública e gratuita da Europa, a Chetham’s Library em Manchester, que escapava ao controlo religioso. Construíam-se novas e eficazes formas de difusão de informação, cada vez mais críticas e independentes dos poderes instituídos, numa pré-configuração da opinião pública que vai animar os debates públicos do século XIX.

Depois de um longo período de profundos conflitos políticos, a Inglaterra vivia, em 1688, a Revolução Gloriosa. A substituição de Jaime II por Guilherme de Orange, bem como a proclamação da Declaração de Direitos, no ano seguinte, conduziram o Reino Unido a um regime democrático parlamentar, ao qual está associado o direito de todos os cidadãos à liberdade de expressão e de pensamento, e também de imprensa. A

25 Este título deriva da mudança da corte para Oxford, motivada pela peste.

26 É interessante perceber a rapidez com que se criaram cafés em Londres, o que é indicador do seu sucesso, locais que se afirmavam enquanto centros de reunião e verdadeiros mercados de notícias, onde se conversava e debatia assuntos de diversa ordem, temas públicos que lhes interessavam: ―El primer café londinense se había fundado en 1651 y cincuenta años después había unos quinientos establecimientos de esa índole.‖ (Borderia Ortiz et al. 1998: 232).

24 partir deste marco significativo, proliferam todo o tipo de jornais: noticiosos, políticos, humorísticos, especializados em cultura, economia, ciência, literatura.

Apesar da satisfação provocada pela revolução de 1688, não podemos deixar de mencionar a lei fiscal de 1697, que regulava as publicações periódicas, e deixa perceber a sua restrição aos grupos influentes e endinheirados de Londres. A liberdade de expressão era um bem precioso e reconhecido, não obstante estivesse agora limitado às classes sociais mais elevadas.

As lutas constantes entre imprensa e poder político marcam a imprensa inglesa, muito tumultuosa, em contraste com a relativa estabilidade que condiciona o resto da imprensa europeia. Estas características explicam a dificuldade que se sente em nomear algumas das suas efémeras publicações. O primeiro grande jornal que conseguiu durar foi a London Gazette, já mencionada, de 1666.

O modelo inglês de imprensa, que lança as bases para o Modelo Ocidental de Jornalismo, adotado pela maior parte dos estados democráticos de direito, nasceu no século XVII e caracteriza-se por ter sido o primeiro a garantir a liberdade de pensamento e expressão e, por conseguinte, a liberdade de imprensa e por ter construído um sistema jornalístico que tem por base diferentes tipos de jornais (cf. Sousa 2008a: 37).