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2. Constituição do campo de pesquisa sobre leitura no Brasil

3.1 Função, Disfunção e Narcose

Segundo Bosi (2008), foi no campo da sociologia e da psicologia que surgiram os primeiros estudos ou teorias acerca das funções dos meios de comunicação de massa. A zona fértil para tal surgimento foi a América do Norte, notadamente, os EUA. Trata-se do primeiro país a cruzar a linha, nas primeiras décadas do século XX, rumo a uma organização social dita massiva. Fruto dessa passagem, conflitos raciais e intergrupais lá eclodiram, os quais, desde muito cedo, chamaram atenção de importantes mentes do pensamento social.

Ainda conforme Bosi (2008), após a crise de 1929, os processos psicossociais passaram a ocupar importante espaço nas preocupações dos pensadores sociais, sobretudo as questões relativas à opinião pública. Surgia a necessidade de compreensão, por exemplo, da dinâmica que envolvia um pleito eleitoral, afinal “se fazia mister prever (e, mesmo manipular) a opinião pública nos casos em que deveria manifestar-se maciçamente” (BOSI, 2008, p.39). Desde então, muita tinta seria gasta no intuito de análise e descrição dos efeitos do rádio, jornais e cinema.

A teoria funcionalista é uma fatia desse conjunto de estudos ou teorias. Ela é “basicamente contextual, embora seu eixo epistêmico seja não um conceito macroestrutural (classe, sociedade), mas psicossociológico” (BOSI, 2008, p.39). A este campo interessa a relação ou interação dos indivíduos com o tecido social em interface com os meios de comunicação. Entre seus mestres destacam-se Radcliffe-Brown e Bronislaw Malinowski, estes não preocupados com questões

midiáticas, mas com os nativos das Ilhas Andaman e das Ilhas Trobiand. Todavia, constituem a matriz do pensamento dos autores aqui mencionados.

Assim, sob esse prisma, os efeitos dos mass media sobre o público se dariam no âmbito de uma função e/ou disfunção. Tal efeito pode ser facilmente compreendido, quando pensamos, por exemplo, na campanha realizada por todos os veículos de informação acerca de doenças epidêmicas. Se por um lado, a população em geral é alertada sobre os modos de prevenção, sintomatologia e tratamento, por outro, a insistência em relação aos riscos causa pânico e obsessão em parte da população. Seria esta, então, a função pretendida, de alerta, de prevenção e tratamento, por outro lado, a disfunção, não pretendida, que gera medo e obsessão.

A análise aqui aventada, desse paradigma, baseia-se no artigo

Comunicação de massa, gosto popular e a organização da ação social, de autoria

de Robert K. Merton e Paul F. Lazarsfeld (1969). Nesse texto, os autores dedicam atenção, como já vem sendo dito, aos efeitos (em termos de função e disfunção) dos meios de comunicação de massa sobre o grande público. A argumentação tem como ponto de partida o diagnóstico nada animador existente até o período (o texto foi originalmente publicado em 1948) de que os mass media provocariam corrupção do gosto estético e dos padrões culturais populares, conformação em relação ao status quo social e econômico e a total deturpação do senso crítico.

Os sociólogos vão percorrer esse terreno, nada regular, em busca dos reais efeitos dos media. A indagação inicial proposta pelos autores é a seguinte: que papel social pode se atribuir aos meios em virtude de sua existência? A resposta, ainda que provisória, seria a de superestimação, porque as pesquisas do período forneciam “apenas cifras de oferta e consumo” (MERTON & LAZARSFELD, 1969, p.106), algo que “dista muito de seus efeitos totais sobre o comportamento, as atitudes e as perspectivas” (MERTON & LAZARSFELD, 1969, p.106).

Todavia, conforme afirmam os pesquisadores, mesmo antes de uma análise mais detida, é possível inferir que os meios de comunicação de massa eram (e ainda são) alvo de críticas recorrentes, algumas hostilizadoras, pois eles pareciam roubar o tempo livro dos cidadãos – tempo ocioso conquistado por meio de duras lutas -, que poderia ser despendido em atividades mais nobres como um curso

universitário ou verdadeiros bens culturais, como a música clássica e a literatura. Nesse sentido, ao ocupar o tempo livre, os meios de comunicação operariam sobre as mentes gerando efeitos em diversas instâncias, das quais elencamos três dentre as focalizadas por Merton e Lazarsfeld (1969):

a) Na atribuição de status: Os media atribuem, reforçam ou legitimam a

posição social, o status de indivíduos, organizações, movimentos e questões públicas. Qualquer ação pública, política – particular ou individual – passa a desfrutar de (maior) prestígio quando repercutem positivamente nos meios de comunicação. Segundo Merton e Lazarsfeld (1969), a opinião dos editoriais de periódicos, os autores citam a Times, representa para o público “o julgamento ponderado de um grupo de especialistas, exigindo, portanto, o respeito dos leigos” (MERTON & LAZARSFELD, 1969, p.109). Na propaganda, tal efeito é produzido quando algum indivíduo detentor de prestígio nos mass media endossa um produto qualquer. Em suma, a ação social é afetada pelo potencial de atribuição de status dos meios.

b) Reforço das normas sociais: Tal função seria percebida quando se ouve

falar, por exemplo, em poder da mídia, poder da imprensa ou poder da propaganda. As normas sociais podem ser explicitas ou implícitas, por isso, tal efeito seria algo como uma reafirmação ou aplicação das normas. Nesse sentido, conforme Merton e Lazarsfeld (1969), a publicidade “elimina o hiato existente entre as atitudes particulares e a moralidade pública” (MERTON & LAZARSFELD, 1969, p.111). Grandes temas como o tabagismo, drogadição e alcoolismo são alvo deste efeito, em torno deles são travadas verdadeiras cruzadas. A corrupção política pode, também, ser transformada numa cruzada, obviamente dependendo dos interesses das agências midiáticas. Sendo bem sucedida tal batalha, o poder dos meios é realçado (tanto naquela como para as próximas cruzadas). Em última análise, o efeito de reforço das normas sociais demonstra a relação dos mass media com os problemas da sociedade, periféricos ou centrais, servindo “notadamente

para reafirmar as normas sociais, expondo os desvios destas normas ao público” (MERTON & LAZARSFELD, 1969, p.112).

c) Disfunção narcotizante: A avalanche de informações, em relação a

qual se encontram expostos os cidadãos, geraria apenas uma preocupação superficial com questões sociais. O grande e contínuo fluxo de informações ao invés de suscitar interesse desembocaria numa narcotização das mentes. Os indivíduos tomam uma espécie de contato secundário com o universo de problemas políticos, econômicos e sociais, estabelecendo por meio de suas leituras, audições e visualizações, uma relação indireta com tais problemas. “O indivíduo lê descrições de questões e problemas, inclusive até discute linhas de ação alternativa. Mas esta ligação remota com a ação social organizada, de certa forma intelectualizada, não é ativada” (MERTON & LAZARSFELD, 1969, p.113).

Contudo, os efeitos dos mass media não parariam por aí. Suas consequências se estenderiam ainda por outros meandros: conformariam o público em relação à ordem estabelecida e impactariam sobre o gosto popular. No que diz respeito ao primeiro, conforme Merton e Lazarsfeld (1969), tal efeito ressoa no público não só pelo que lhes é dito, mas, também, pelo que não lhes é dito. Pesaria sobre esse silêncio, a pressão de grupos econômicos, notadamente, os patrocinadores comerciais.

Já sobre o segundo campo, os sociólogos americanos, afirmam que boa parte dos produtos, sejam eles do rádio, cinema, jornais e livros, se dedicam ao entretenimento, o que influenciaria o gosto estético. A abordagem dos autores a esse respeito é significativa, pois, para eles, enfatizar simplesmente o declínio do gosto popular pode ser enganoso. É preciso, antes de qualquer coisa, atentar para a mudança histórica pela qual passou a plateia das artes. Se anteriormente era restrita e de padrões estéticos refinados, a partir do desenvolvimento tecnológico, da expansão dos meios de comunicação de massa e da alfabetização popular, o público das artes alargou-se substancialmente.

Os poucos privilegiados que detinham meios de comprar livros e assistir peças de teatro foram substituídos por uma grande massa que vê circular diante de si vários dos bens culturais antes restritos. No entanto, o aumento da circulação não acarretaria em refinamento do gosto. Para Merton e Lazarsfeld (1969), o correto seria dizer que provavelmente uma proporção maior de indivíduos com padrões estéticos refinados passaram a fazer parte do público dos media, porém eles são tragados “pela grande massa que constitui a nova e inculta platéia de arte” (MERTON & LAZARSFELD, 1969, p.117)

Esta é, portanto, em linhas gerais, a teoria funcionalista americana de Robert K. Merton e Paul F. Lazarsfeld (1969) acerca da inserção dos meios de comunicação de massa na sociedade, com ênfase sobre a dimensão psicológica. Os efeitos por eles problematizados, tratados em termos de função e/ou disfunção, depreendem-se justamente dessa instância. A crítica a este paradigma recairia sobre a abordagem em nível microssociológico, próprio da linhagem funcionalista, a qual não contribuiria com uma teorização ampla. Segundo Bosi (2008), Merton defendia a renúncia por parte do cientista social às teorias globais do social, voltando-se para campos mais circunscritos.

Além disso, conforme Bosi (2008), o critério de distinção dos efeitos de função e disfunção parece arbitrário, pois o que é funcional num determinado contexto pode ser disfuncional noutro. Em suma, trata-se de um enfoque que “tende a privilegiar o nexo emissor-destinatário, perguntando que tipo de influência (Funcional? Disfuncional?) ocorre a partir da comunicação de massa” (BOSI, 2008, p.48).