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2. Constituição do campo de pesquisa sobre leitura no Brasil

2.1 Primeiras pesquisas (1965 – 1979)

A leitura é uma prática sociocultural caracterizada pela multiplicidade de gestos, cenários, materiais, públicos e finalidades. Tal fato atrai uma gama extremamente variada de olhares investigativos interessados nestas diferentes manifestações. São mentes da Pedagogia, Psicologia, Letras, História, Sociologia, Filosofia, Antropologia, Comunicação, Biblioteconomia, Neurociências entre tantas outras. Enfim, uma série de pesquisadores de distintos ramos da ciência que se ocupam do mesmo objeto, porém pautados em referenciais teórico-metodológicos distintos.

Para compreendermos a formação do campo de pesquisa sobre leitura no Brasil será preciso levar em conta essa heterogeneidade. Conforme Ferreira (2007), é preciso pensar que a produção acadêmica brasileira a esse respeito “não se configura como acumulação de temas, olhares e vozes, não remetem a uma única ideia ou conceito do que seja leitura, não propõem uma única solução para resolver sua ausência” (FERREIRA, 2007, p.30).

A primeira pesquisa, stricto sensu, das 27 das quais se tem registro nesse período, é a de Maria José Aguirre. Trata-se de uma tese de livre-docência, apresentada em 1965, na USP, à cadeira de Psicologia Educacional. Significado de

alguns fatores psicológicos no rendimento em leitura nasceu do interesse da autora em estudar um tema fronteiriço a várias questões. A complexidade e amplitude do tema leitura traziam à tona, segundo a pesquisadora, questões de ordem social, educacional e implicações pedagógicas. Além disso, trazia possíveis relações entre problemas de leitura e os altos índices de reprovação registrados no período. A pesquisadora tomou o ato de ler em sua dimensão interna, em busca do processo desencadeado por trás dos olhos do leitor quando diante do escrito. Ela procurou compreender os mecanismos internos que influenciavam o aprendizado e o rendimento em leitura. Daí o amparo em estudos médicos, publicados na década de 1960, os quais “colaboram na sustentação da ideia apresentada por Aguirre de que a leitura pode ser isolada, estudada em sua especificidade, pois exige habilidades sitiadas em lugares diferenciados dos da escrita” (FERREIRA, p.33, 2007).

Trata-se de um conceito de leitura pautado na referência de que os problemas a ela relacionados seriam resultantes da ausência de certas habilidades. “E, que, a ausência ou o pouco desenvolvimento dessas habilidades são responsáveis pelo fraco rendimento na leitura, pelo fracasso na aprovação dos alunos, principalmente da escola primária” (FERREIRA, p.34, 2007).

Em termos metodológicos, o estudo de Aguirre merece alguns destaques. O número de sujeitos com os quais trabalhou foi expressivo, 623 alunos do primeiro ano do curso primário, divididos por sexo. Os níveis de leitura são avaliados a partir de um teste psicológico – Bender –, o qual, conforme Ferreira (2007), é apropriado para uma formulação de leitura como atividade que possa ser avaliada em “graus de dificuldade, possível de ser avaliada, controlada, estimulada, diferente em sua produtividade, em seu rendimento, de acordo com o gênero, com o nível escolar e com a idade cronológica dos sujeitos pesquisados” (FERREIRA, p.36, 2007).

O período que se estende desde a defesa de Aguirre, 1965, até 1979, é marcado pela predominância da Psicologia nos estudos sobre leitura. Dados apresentados por Ferreira (2007) demonstram que dos 27 trabalhos acadêmicos (dissertações e teses) defendidos no país durante o período, 13 são da Psicologia, 9 de Letras, 4 da Educação e 1 da Biblioteconomia. Expressões recorrentes nos títulos, como as a seguir citadas, também dão prova de tal predomínio, mesmo nas provenientes de áreas diversas: fatores psicológicos; rendimento em Leitura; fatores psicopedagógicos; efeito de posição e de nível cognitivo de perguntas adicionadas a textos; uma análise comportamental; contribuição para o estudo da Psicologia da Leitura; princípios psicológicos subjacentes à leitura; entre outros.

Ainda nesta primeira fase, surgiram trabalhos relevantes para a composição do campo de estudo, alguns deles, hoje, considerados clássicos. Por exemplo, os estudos de Ecléa Bosi, de 1971, e de Paulo de Tarso de Oliveira, de 1972. Segundo Ferreira (2007), estes autores abordam a leitura de um ponto diferenciado do até então praticado; por exemplo, de Jacyra Calazans Campos, que desenvolveu uma pesquisa de mestrado sobre a atuação dos fatores psicopedagógicos no rendimento do aluno durante a leitura oral e silenciosa, numa vertente muito semelhante ao de sua orientadora, Maria José Aguirre.

O trabalho de Paulo de Tarso, conforme explica Ferreira (2007), seria um passo avante em relação aos estudos existentes, pois extrapola a premissa de leitura como algo passível de medição, controle e avaliação, ou mesmo de seu rendimento ser uma questão de existência ou ausência de determinadas habilidades. O autor foca o material que propõe os textos à leitura, bem como os interesses do leitor. Reproduziremos palavras do pesquisador, citadas por Ferreira (2007), que denotam o escopo de seu trabalho:

Estudar a natureza dos livros didáticos de leitura usados nas escolas primárias da cidade de Passos (MG) e cidades vizinhas, considerando tanto a forma como o conteúdo do mesmo; em segundo lugar, serão analisados atitudes e procedimentos de professores quanto aos livros de leitura e a utilização destes em sala de aula; e finalmente serão explorados alguns aspectos dos interesses das crianças quanto à leitura, em termos de sexo, idade, nível de escolaridade e classe social (OLIVEIRA apud FERREIRA, p.38, 2007).

Conforme Ferreira (2007), a tese do pesquisador ainda carrega traços da perspectiva psicológica, mas abre novos horizontes e modos de abordagem do ato de ler. Nessa linha, também pioneira, destaca-se o trabalho de Ecléa Bosi, Leituras de

operárias: estudo de um grupo de trabalhadoras em São Paulo. Trata-se de sua tese de doutoramento, defendida no Instituto de Psicologia da USP, na área de Psicologia Social.

O trabalho foi publicado e se tornou referência para os pesquisadores da leitura, bem como para os interessados nas questões da cultura de massa e da indústria cultural. Atualmente, possui mais de uma dezena de edições, porém com título modificado para Cultura de massa e cultura popular: leituras de operárias. Em relação ao conteúdo da obra, é possível dizer que Bosi estuda o referido objeto em lugar distinto ao da escola. Ela vai à fábrica, junto a operárias paulistanas, escorada em conhecimentos de áreas até então distantes dos olhares que se voltaram para o estudo da leitura. Vejamos algumas palavras da autora para compreendermos seu empreendimento:

[...] verificávamos a necessidade de ver com clareza toda uma problemática que rodeia o fenômeno “leitura” no meio operário, aproximando duas áreas que a ajudariam a elucidar melhor o

tratamento das respostas: 1) a área da comunicação de massa; 2) a área da cultura popular (BOSI apud FERREIRA, p.38, 2007).

Além disso, a pesquisadora emprega métodos investigativos pouco convencionais até aquele momento, em que se verifica o uso de entrevistas e questionários mais abertos. Acessar o objeto de pesquisa por meio de conversas, relatos e recordações era algo novo e permitiu a pesquisadora verificar as motivações de leitura daquelas trabalhadoras, em condições de vida desfavoráveis, que buscavam alento em romances de banca, no consultório amoroso de revistas femininas e em publicações instrutivas. O estudo traça o itinerário da subjetividade das entrevistadas ao acessar os hábitos, os interesses, os materiais e os conteúdos de suas leituras.

Nota-se, portanto, que esta fase inicial de pesquisas sobre leitura no Brasil é marcada pelo predomino de estudos de cunho psicológico. As primeiras teses e dissertações tinham suas preocupações voltadas para o rendimento escolar em sua relação com a leitura e para o rendimento em leitura escolar, cuja ênfase recaia sobre habilidades (inatas), ritmo e níveis. A partir dos anos de 1970, surgiram novos olhares e locais investigativos. Não somente a escola, mas, também, a fábrica. Surgiram novas orientações metodológicas, ao invés de situações experimentais com um grande número de sujeitos, o diálogo. Pesquisador e pesquisado passam a conversar, o entrevistador faz perguntas e é perguntado. Ademais, os materiais de leitura passam a compor o quadro de preocupações das pesquisas. A forma, o conteúdo, o encaminhamento, os interesses passaram a fazer parte dos questionamentos.