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Profusão de telas, espetacularização do cotidiano e a transmissão de s

2. Constituição do campo de pesquisa sobre leitura no Brasil

3.7 Profusão de telas, espetacularização do cotidiano e a transmissão de s

Estamos prestes a encerrar mais uma etapa de nosso percurso. Nas

próximas páginas, percorreremos novas questões relacionadas ao universo midiático, notadamente, o momento reconhecido pela profusão das telas, especialmente aquelas relacionadas ao ciberespaço. Levantaremos problemas e dilemas relativos ao seu advento, bem como mudanças no cenário das comunicações, das sociabilidades e de formas de manifestação da cultura.

O sistema World Wide Web, ou simplesmente WWW, em razão de suas possibilidades de comunicação, acesso e troca de informações sem precedentes, transformou todo o desenvolvimento midiático. A rotina das redações de jornais e revistas, os processos editoriais, a indústria fonográfica, a produção cinematográfica, televisiva e a telefonia, sobretudo a móvel, não são e jamais serão as mesmas.

Com um crescimento anual de cerca de 50% durante a década de 90, transformou não só a agenda das mídias, mas, também, os processos de sociabilidade, de relacionamento, de educação e de constituição das subjetividades. A própria definição de meios de comunicação de massa poderia ser questionada diante dessa nova, ou nem tão nova, realidade. Dentre os desafios impostos por seu advento, além daqueles atinentes ao universo do ensino escolar, interessam-nos os que afetam a esfera da comunicação pessoal, principalmente, as contradições mais flagrantes dele oriundas.

Nesse contexto, surgem pertinentes temas como os da exibição da intimidade e da exaltação do banal, conforme aventados por Sibilia (2008) em O

show do eu. Segundo a autora, as telas que nos cercam em todos os lugares e por quase todos os lados, sejam elas as da televisão, do computador, do celular ou da

máquina fotográfica digital, expandem o campo de visibilidade e multiplicam as possibilidades de ser visto por outros olhos. Representativos dessa tendência aparecem os realities shows; gênero de não ficção, cujo surgimento remonta ao ano de 1973, e ao programa An American Family (Uma Família Americana). Desde então, a proliferação desse gênero tem sido grandiosa. A fórmula para o sucesso é simples: mostrar um grupo de pessoas reunido e trancafiado num determinado ambiente para se exibir e executar tarefas em busca de uma recompensa, seja ela em dinheiro, um emprego, a gravação de um disco, entre tantas outras (geralmente efemeridades).

Nesse campo, os campeões de audiência são os de confinamento numa bela casa, ou como diria Rolnik (2007) em uma casa/cela/cena, com piscina, academia e jardim, como é o caso do global Big Brother e A fazenda da Rede Record. Lembrando apenas que no segundo os participantes são confinados, como o próprio nome diz, em área rural. Todavia, independente do local, uma coisa é certa: a participação, como diz Sibilia (2008), depende do enfrentamento de uma concorrência maior do que a de qualquer vestibular do país. Nesses programas, as simples atividades cotidianas são convertidas em um espetáculo banal, performático, exagerado e caricaturesco. São pessoas reais, desenvolvendo ações da vida real, mas que acabam imbuídas de uma aura ficcionalizada, já habitual para os brasileiros. Assistimos, não raramente, à “espetacularização da intimidade cotidiana [...] com todo um arsenal de técnicas de estilização das experiências de vida e da própria personalidade para “ficar bem na foto” (SIBILIA, 2008, p.50).

Uma dosagem bastante razoável de apelo publicitário compõe a cartilha para o sucesso dos realities shows. No entanto, conforme alerta Rolnik (2007), essa seria uma faceta ingênua de sua composição, pois o encarecimento do valor da propaganda em seu horário de transmissão para expor e vender produtos utilizados pelos participantes seria menos grave que seu potencial gerador de identificação entre o público e os brothers, ou fazendeiros, ou como quiserem chamar os que passam para o lado de dentro de um reality. Mesmo distantes de nosso objeto de estudo, o tema dos realities shows é relevante, pois temos como fonte de dados um grupo de jovens que os assistem e para os quais a TV é importante fonte de informação, cultura e entretenimento. Além disso, é difícil desprezá-los sabendo que nele estavam ligados, em suas primeiras edições, no

“grand finale da disputa, 76 de cada 100 televisores existentes na cidade de São Paulo” (ROLNIK, 2007, p.1).

Nesse aspecto, a conquista para os que vencem a edição de um reality vai além da quantia monetária recebida, pois o troféu maior é simplesmente o de ser visto. Afinal, neste início de século, conforme lembra Sibilia (2008), “passar despercebido pode se converter no pior dos pesadelos” (SIBILIA, 2008, p. 74). Portanto, compor o quadro de participantes de um desses programas, além de representar distanciamento em relação a um pesadelo, como é o de não aparecer, consiste em sonhar mais um sonho, a saber: o de adentrar os portões do reino mágico das celebridades.

Contudo, como nem todos têm a grande sorte de entrar para o Big Brother, resta lançar mão dos instrumentos disponíveis. Para isso, em nome da exibição da intimidade e do fazer do cotidiano ordinário um espetáculo vale tudo. O vertiginoso aumento de blogs, fotoblogs ou microblogs está intimamente relacionado a tal fato, porque a Internet é uma tribuna aberta à prática da escrita, especialmente, à escrita de si; assim como à postagem de fotos e vídeos de mesma natureza. Para tanto, contribuem de modo confluente à expansão dos canais de comunicação, como as redes sociais, o sistema broadcast yourself - bandeira publicitária do gigante Youtube -, os telefones celulares e as máquinas fotográficas digitais.

Nesses ambientes, muitos dos quais de interface simples e de fácil manejo, indivíduos, anônimos ou não, ou em avatares criados, elaboram, por meio da linguagem escrita e imagética, espetáculos de si, de suas vivências diárias, no intuito de confessarem seus segredos e desejos, suas angústias e misérias, suas expectativas e frustrações, reais ou fictícios. Tais relatos remontam à história da escrita de memórias, de álbuns, cartas e diários. Os suportes se modificaram, mas as intenções parecem menos distintas. Com a diferença atual de amplo compartilhamento e diálogo com leitores, os novos gêneros digitais parecem possuir uma passado de longa duração.

A questão é expor, para falar como Sibilia (2008), o que está guardado nos locais mais recônditos da intimidade, divulgar os segredos mais inconfessáveis. O sucesso de vendas do livro O doce veneno do escorpião, de Bruna Surfistinha,

flui por esse “córrego discursivo” (SIBILIA, 2008, p.31). No livro, a ex-garota de programa relata, com certa riqueza de detalhes, suas experiências profissionais. Falta de pudor chocante para muitos, mas não o suficiente para que o livro não fosse lido. Para que se tenha uma ideia, mesmo que numérica, nos três meses iniciais de seu lançamento foram vendidas 100 mil cópias, quantia que se acrescida a de seu segundo livro, Na cama com Bruna Surfistinha, alcançam a soma de 300 mil exemplares. E ela não para por aí, o primeiro livro foi traduzido em trinta países e transpôs suas páginas impressas para ganhar vida nas telas. O filme contou, inclusive, com patrocínio do Ministério da Cultura. Não é de hoje que os espetáculos eróticos agradam ao grande público.

Ainda falando de Bruna Surfistinha, é interessante mencionar o fato de que

O doce veneno do escorpião é oriundo de publicações on-line. A ex-garota de

programa mantinha um blog cujo conteúdo foi transposto para o livro, fato não raro, pois muitos blogs têm transposto os limites do mundo virtual para ganhar vida no mundo do papel, alguns deles merecedores de registro, como é o caso de

Revolta no Banlieue: um livro para entender o incêndio, cujo conteúdo remonta aos atentados ocorridos na periferia de Paris em 2004.

O livro é composto por artigos publicados na Internet por um grupo de jornalistas suíços que se instalaram numa das regiões em que ocorriam os incêndios. Os jornalistas selecionaram alguns jovens que residiam no local para participarem do empreendimento. O trabalho colaborativo, em que jovens e jornalistas publicavam no blog, deu origem ao livro, no qual ficaram evidenciadas as contradições da vida no país da liberdade, igualdade e fraternidade. Se para alguns a capital francesa é a cidade luz, para outros, que sobrevivem à sua sombra, ela é cidade de racismo, exclusão e desemprego, longe dos ideais de 1789.

Em outros planos, como no cinematográfico, percebe-se, também, o apreço por retratos do cotidiano. Não foram poucas as películas que se dedicaram à exposição do ordinário da vida de grandes personalidades. De Beethoven à Eva Perón, tais filmes, conforme explica Sibilia (2008), nada mais fazem do que mostrar “problemas íntimos, que de certa forma são sempre comuns, para além de qualquer circunstância extraordinária” (SIBILIA, 2008, p. 183). “Qualquer que seja o drama pessoal do artista retratado na tela, sua obra remanesce sempre

oculta, desalojada para um discreto segundo plano” (Idem, p. 184). Interessa o que há de comum na vida desses grandes vultos em relação à dos restantes mortais. Nota-se uma tendência à desmistificação, um interesse pelo que há de verdadeiramente real na vida desses indivíduos, mas não só na deles, mas na de quem quer que seja. A realidade nua e crua chama a atenção como poucas vezes se viu. Filmes nacionais como Cidade de Deus, Tropa de Elite e Cidade dos

Homens, bateram recordes de bilheteria não só aqui, mas também em outros

países.

A exibição da realidade e a espetacularização do cotidiano encontram sua expressão máxima no sistema broadcast yourself, em que se destaca o Youtube. Seus criadores, como tantos outros do universo da informática, como que na velocidade de um meteoro inscreveram seus nomes no hall histórico das grandes criações e na lista dos milionários do Vale do Silício. Vale lembrar que a revista norte-america Time, em sua edição de novembro de 2006, elegeu o Youtube como a criação do ano.

Sob o lema do transmita-se a si mesmo, o Youtube alcança cifras colossais em termos de acesso e quantidade de vídeos postados, números quase sempre na casa dos milhões. É importante registrar que as produções postadas não podem ultrapassar dez minutos de duração. Considerado por alguns o maior concorrente da televisão, nele pode-se assistir desde episódios de novelas, seriados ou trechos de telejornais até cenas banais do cotidiano de quem quer que seja. Bastam alguns cliques para conhecermos sobre a vida diária de um jovem americano melhor do que algumas obras de sociologia ou antropologia a retratariam.

Para Sibilia (2008), no momento atual, algumas pessoas se comportam como se estivessem:

[...] emolduradas pelo halo luminoso de uma tela de cinema ou de televisão, como se vivessem dentro de um reality show ou nas páginas multicoloridas de uma revista de celebridades, ou como se a vida transcorresse sob a lente incansável de uma webcam. É assim como se encena, todos os dias, o show do eu. Fazendo da própria personalidade um espetáculo; isto é, uma criatura orientada aos olhares dos outros como se estes constituíssem a audiência de um espetáculo (SIBILIA, 2008, p. 258).

Assim, se o escritor francês Maurice Blanchot (1907–2003), conforme relata Sibilia (2008), conseguiu a proeza de viver durante quase todo o século XX sem nunca ter sido fotografado, sem jamais sentir reluzir o flash de uma Polaroid sobre sua face, após tudo o que foi dito neste capítulo, será possível que um jovem ocidental do século XXI consiga passar toda a sua vida sem expor ao menos um pixel de sua vida na Internet?

No próximo capítulo, trataremos de aspectos pré-históricos e históricos da televisão, assim como de características do cenário telejornalístico brasileiro, especialmente, da Record News, dados importantes para compreendermos a relação desse meio com a sociedade e com escola.