• Nenhum resultado encontrado

2. Constituição do campo de pesquisa sobre leitura no Brasil

3.3 Indústria cultural, cultura de massa e criação padronizada

A produção mecanizada de bens de consumo, em larga escala e em série, teve início na segunda metade do século XVIII, no Reino Unido. Desde então, gerou e passou por diversas transformações: afetou o mundo do trabalho, as relações sociais, o consumo, a ciência e a política. É reconhecidamente um dos principais acontecimentos de toda a história do ocidente, subdividida, pela historiografia, em três principais fases, cuja primeira vai, aproximadamente, de 1760 a 1860, marcada pelo pioneirismo inglês, pela abertura de novos mercados e pelo uso da energia a vapor. A segunda, de 1860 a 1900, caracterizada pelo surgimento de novas fontes energéticas, como a elétrica e os derivados de petróleo, bem como pela substituição do ferro pelo aço e pela expansão, em parte da Europa, América e Ásia, das técnicas industriais. E a terceira, cuja extensão temporal vai de 1900 aos dias atuais, caracteriza-se pela automação dos processos produtivos e pela formação de conglomerados empresariais. Surgem os trustes, os cartéis e os holdings, assim como se desenvolve a indústria eletrônica, a engenharia genética e, mais recentemente, a biotecnologia e nanotecnologia.

Todavia, em Cultura de massas no século XX, o filósofo francês Morin (1969) acrescentaria ainda mais uma etapa ao desenvolvimento histórico da Revolução Industrial, contudo, não voltada para a organização do universo exterior, mas para o interior, capaz de penetrar nos meandros da alma humana e de movimentar a reserva polissêmica dos sonhos. Seu nicho mercadológico seria a produção ou criação de mercadorias culturais, algo como um sistema nervoso, uma industrialização dos bens culturais, ou para falar como os filósofos de Frankfurt, uma Indústria Cultural, centrada na produção imagética, escrita e

sonora, de produtos fílmicos, televisivos, radiofônicos ou impressos - jornais, revistas e livros.

Para Morin (1969), o processo de transformação destes meios em mercadorias, iniciado pelos jornais e livros, teria levado a cultura e a vida privada à arena do comércio, e de um modo até então não experimentado. Nas palavras do autor francês, seria uma conversão dos “antigamente suspiros de fantasmas, cochichos de fadas, anões e duendes, palavras de gênios e de deuses, [...] em músicas, palavras, filmes levados através de ondas” (MORIN, 1969, p.16). Transformados, portanto, em mercadorias e comercialmente negociados, vendidos como ectoplasmas da sociedade, dos “amores e os medos romanceados, os fatos variados do coração e da alma” (MORIN, 1969, p.16).

Tal processo seria responsável pela constituição de uma terceira dimensão cultural ou de uma Terceira Cultura, a qual, ao lado das clássicas – humanista ou religiosa –, e concorrendo com elas, se voltaria para as massas ou encarnaria ela mesma uma feição de cultura de massa (mass culture). Projetada pela imprensa, rádio, televisão e cinema, desenvolveu-se segundo os padrões de fabricação industrial. Na explicação de Morin (1969), ela teria sido “propagada pelas técnicas de difusão maciça [...] destinando-se a uma massa social, isto é, um aglomerado gigantesco de indivíduos compreendidos aquém e além das estruturas internas da sociedade” (MORIN, 1969, p.16).

Os produtos culturais, sob essa perspectiva, passariam a se diferenciar em pouco ou nada dos demais bens de consumo. Os jornais, revistas, livros, programas televisivos e filmes, guardadas algumas exceções, seriam consumidos do mesmo modo como se consomem alimentos, produtos eletrônicos ou de vestuário, isto é, independente de qualquer crítica, como produto industrial de consumo diário e apartado de autonomia estética. Tal fato criaria uma oposição entre a manifestação da cultura, dita de massa, da cultura cultivada, da

intelligentsia e um distanciamento provocado pelo emprego das técnicas

industriais e da conversão da cultura num simples ramo do comércio.

Nesse sentido, a produção dos bens culturais se daria sob os postulados da burocracia mercantil. O conteúdo de um jornal, por exemplo, passaria pelo filtro de rentabilidade da publicação, ou por filtros políticos e institucionais. O cerne da

questão seria a robustez exercida pela concentração técnico-burocrática sobre a produção cultural de massa. Segundo Morin (1969), esta tendência conflita com a exigência de consumo de produtos individualizados e sempre novos. Daí, conforme o estudioso, a indústria cultural viver uma contradição “entre suas estruturas burocratizadas-padronizadas e a originalidade (individualidade e novidade) do produto que ela deve fornecer” (MORIN, 1969, p.28).

Em termos práticos, citemos a produção de um filme, a qual segue critérios de receitas-padrão, mas que deve garantir unicidade e originalidade à obra. As receitas-padrão se estruturariam na ordem de arquétipos. Convenções, situações- tipo e personagens-tipo, nos termos de Morin (1969), seriam as estruturas externas à obra que forneceriam seu padrão interior. Os temas romanescos se destacariam entre os de maior apreço público, em que o coração é colocado em conserva e “fabricam-se romances sentimentais em cadeia, a partir de certos moldes” (MORIN, 1969, p.29). Além deste, temas não raras vezes miscigenados, relacionados ao universo do humor, da ação e do erotismo também agradariam ao grande público.

Ainda nas palavras do autor:

O cinema, depois do reinado da longa metragem, tende ao sincretismo. A maioria dos filmes sincretiza temas múltiplos no seio dos grandes gêneros: assim, num filme de aventura, haverá amor e comicidade, num filme de amor haverá aventura e comicidade e num filme cômico haverá amor e aventura (MORIN, 1969, p.38).

Daí entende-se que as produções deveriam atingir, sempre, uma síntese do padrão com o original, além de alcançar o público. Numa lógica em que o “padrão se beneficia do sucesso passado e o original é a garantia do novo sucesso” (MORIN, 1969, p.31). Dito de outra forma, se “estabelece uma relação específica entre a lógica industrial-burocrática-monopolística-centralizadora-padronizadora e contra-lógica individualista-inventiva-concorrencial-autonomista-inovadora” (MORIN, 1969, p.31).

Em suma, por se tratar de uma produção em moldura industrial seus processos não poderiam ser outros se não os da racionalidade, pois a

padronização é justamente o reflexo espelhado da racionalização. Assim, o tempo de duração das películas, as dimensões de artigos jornalísticos, ou ainda, as emissões cronometradas do rádio nada mais seriam do que elementos constitutivos de padrões produtivos, os quais, em razão do próprio processo, acabam convertidos em estereótipos.

Na linha de frente, responsabilizada pela imposição de padrões, estaria à lógica do consumo máximo. Trata-se de um regimento mercantil, cujo princípio norteador é a busca por público amplo e variado, que se pauta na criação ou encontro de um máximo multiplicador comum: a variedade homogeneizada.

Com mensagens claras, simples e diretas, os conteúdos devem garantir inteligibilidade imediata. Afinal, a “homogeneização visa a tornar euforicamente assimiláveis a um homem médio ideal os mais diferentes conteúdos” (MORIN, 1969, p.38). Por isso, existe demanda por nivelamento das diferenças sociais em relação à gostos e interesses. Para Morin (1969), essa tendência não se restringiria a públicos localizados, mas em constante ampliação, podendo receber a qualificação de cosmopolita, já que tende enfraquecer diferenças culturais nacionais ao criar uma cultura de abrangência transnacional. As produções de Hollywood, nessa perspectiva, são emblemáticas, uma vez que, além de satisfazer o gosto local, alcançam abrangência transnacional. Nessa linha de raciocínio, cabe mencionar o apreço público pelo chamado happy end. Identificação com o herói, triunfo da felicidade e otimismo, os finais não podem se dirigir por outras vias que não as citadas. Afinal, o espectador estabelece uma ligação sentimental, por vezes pessoal, com o sujeito da tela. Espera-se, deseja-se o “sucesso, o êxito, a prova de que a felicidade é possível” (MORIN, 1969, p.97).

O estudo de Bosi (2008), citado no capitulo anterior, revela o caráter de autorrealização imputado pelas trabalhadoras nas leituras por elas realizadas. Ao estudar as leituras de operárias, a autora acaba por refazer os trajetos de apropriação do escrito, se defrontando com os itinerários cotidianos da subjetividade dessas mulheres. Os livros de literatura são pouco lidos; apesar de fazerem parte da lista de interesses de algumas delas, o custo elevado e a aura de complexidade que os envolvem são os fatores de distanciamento. Por outro lado, revistas, em especial, as femininas sentimentais e as fotonovelas, destacam-se como os materiais mais lidos.

Na fala das leitoras de Bosi (2008), o interesse por essas revistas se daria por tratarem de assuntos próximos aos acontecimentos de suas vidas. O horóscopo, o correio do coração, o consultório sentimental, as dicas de como criar filhos, entre tantos outros assuntos, seriam canais que permitiam a elas estabelecer diálogo com as revistas. Já a despeito das fotonovelas, as estórias, quase sempre de mulheres batalhadoras, geravam identificação em relação à dura realidade, também, por elas enfrentada. Todavia, é fundamental mencionar que essas histórias possuem final feliz, por exemplo, a heroína sofrida encontra um homem bom com quem se casa. Desfechos sonhados, desfechos desejados, eles trazem satisfação pessoal. “Não é a busca de uma compensação qualquer que move e comove a leitora da fotonovela, mas a de um correlato imaginário de sua posição específica no imaginário social” (BOSI, 2008, p.168).

Para finalizar este item, é imprescindível situar as incontornáveis contribuições dos pensadores da chamada Escola de Frankfurt. Dentre as várias mentes que se destacam nesta linhagem, vamos trabalhar com comentários de Horkheimer & Adorno (1969). Para eles, os produtos da indústria cultural seriam capazes de atrofiar a imaginação e a espontaneidade do público. Filmes e programas radiofônicos desfrutariam de capacidade de neutralizar as faculdades de critica e reflexão de seus espectadores. A rapidez de transmissão e o desejo de não perder nada figurariam entre os responsáveis por tal feito. Constantemente pressionado, seja no trabalho, no lar ou no lazer, o público enfrentaria uma espécie de disfunção narcotizante, conforme definida por Merton & Lazarsfesd (1969), pois o efeito seria o de um bloqueio mental. Nesse sentido, conforme entendem Horkheimer & Adorno (1969), os produtos da indústria cultural serviriam apenas ao divertimento manipulado, mistificado e ligado a clichês ideológicos: um prazer totalmente corrompido, cujo significado, para eles, é o de complacência; enfim, “que não devemos pensar, que devemos esquecer a dor, mesmo onde ela se mostra” (HORKHEIMER & ADORNO, 1969, p.180).

Nessas condições, a indústria cultural, conforme analisa Marrach (2006), se associaria ao anti-iluminismo, porque, se por um lado, a razão iluminista visava à emancipação do espírito (do mito, da magia e do misticismo), por meio do pensamento, do esclarecimento; por outro, a comunicação de massa serviria à sedução e contenção das consciências, porque, apoiada numa participação

ilusória, os indivíduos se reduziriam a meros consumidores. Contudo, como se sabe, é possível distinguir a definição de público da definição de massa. Conforme Eco (1976), a massa, heterogênea e desorganizada, à mercê da publicidade, não seria responsável por suas escolhas culturais, nem se reconheceria como grupo; já o público, homogêneo e organizado, consciente de sua condição grupal, seria exigente e seletivo em relação à cultura que recebe. Todavia, para manter a média de gosto, os mass media emoldurariam seus produtos. Nada pode escapar à forma industrial, à transmissão sempre em pequenas e superficiais doses. Portanto, apesar de certa distinção, Eco (1976) ainda se aproxima dos frankfurtianos. No próximo item veremos de maneira um pouco mais detalhada suas considerações acerca do problema.