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Função identitária das línguas

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 72-75)

Capítulo 1. Ideologia e Discurso

1.2 Função identitária das línguas

Segundo Calvet (1999: 167), um dos domínios concernentes às representações seria a

função identitária das línguas, que caracteriza, por exemplo, uma comunidade, um povo, uma nação, uma instituição. Assim é que, para citar um exemplo, a União Européia, ao tentar definir uma língua que a identifique, esbarra em um problema de variedades lingüísticas, e, acima de tudo, na irrelevante questão da proporção de falantes de cada uma dessas línguas, uma vez que cada nação, cada Estado membro da Comunidade entende que sua língua é necessária e importante para a união dos povos em questão. Como bem se interroga Jacques Derrida, em janeiro de 2002, no Jornal Le Monde:

O que uma política responsável fará do plural e do singular, começando pelas diferenças entre as línguas na Europa de amanhã e, a exemplo da Europa, na mundialização em curso?23

Temos também os exemplos das línguas crioulas ou dos pidgins, que, basicamente, dependem de questões ideológicas, como o prestígio sócio-cultural de um povo, para serem consideradas língua. Ou ainda o caso do hebreu, língua já esquecida, mas resgatada pelo povo judeu quando da criação de Israel, acrescentando um importante aspecto na construção identitária desse novo Estado.

O entendimento de língua como mito identificatório parece ter começado com os gregos, povo que muito se interessou em conhecer a si mesmo a partir do conhecimento do

Outro, e ao qual damos os créditos para o uso do termo bárbaro, aquele que falava mal, ou, mais especificamente ainda, aquele que não falava grego (Hartog, 1999; Cassin, 1993). Entre outros, portanto, o fato de não falar grego definia a barbárie, já mesmo nos tempos homéricos, em que o par antônimo gregos/bárbaros ainda não se estabelecera, o que acontecerá entre o sexto e o quinto século a.C. Homero faz a diferença especificamente no falar, e, ao citar os cários, qualifica-os de barbarófonos, aqueles que têm um falar bárbaro, embora não sejam bárbaros, não tenham uma natureza bárbara (Hartog, 1999). Mas tudo indica que o presumido autor (ou autores) de a Odisséia, aparentemente, não conhecia uma língua que não a sua própria, e, ao narrar o que via em suas viagens, devia fazê-lo baseado em suas próprias interpretações, sem o testemunho dos habitantes dos locais por onde passava. Idéia de monolinguismo que pode ser criticada, uma vez que nem se sabe se Homero existiu. O fato é que,ao narrar o Outro, o mundo do Outro, um outro problema está justamente em como inscrever o mundo que se conta no mundo em que se conta. Normalmente, adota-se a sistemática da inversão: não temos mais a e b, mas a e o inverso de a, ou ainda, os gregos e o inverso dos gregos (Hartog, op.cit.). Normalmente, a narração se faz a partir do Eu, do Mesmo, incapaz de reconhecer esse Outro (Badiou, 1995).

Com a narração das Guerras Médicas, por Heródoto, o antônimo é dotado de um rosto, o do persa, e a clivagem passa a ser fundamentalmente política (Pólis x Reinado). O bárbaro – agora então identificado como o povo persa –, entretanto, não se afastava dos outros, mas se definia pelas maravilhas dos outros povos que adicionava a sua cultura. Façamos novamente referência, neste ponto, à peça “Os Persas” de Esquilo, onde adota-se o ponto de vista do Outro.

Mas, o que faz com que uma língua seja considerada como tal, e outra apenas uma maneira inferior de se expressar? A representação do Outro e do que seja a língua do Outro, e 23Qu'est-ce qu'une politique responsable fera du pluriel et du singulier, à commencer par les différences entre les langues dans l'Europe de demain et, à l'exemple de l'Europe, dans la mondialisation en cours LE MONDE DIPLOMATIQUE |

a representação da própria língua, de maneira análoga a como faziam os gregos antigos, pode ser então mais um fator arbitrário e com menos critérios lingüísticos de definição, cuja chave para compreensão está justamente na construção de um objeto, em sua representação (Cf. Guisan, 2004).

Muitas vezes, entretanto, nós nos confrontamos com verdadeiros mitos lingüísticos, com representações e julgamentos acerca de um fato da língua que não existem; mitos que, para Calvet, podem ser exatamente uma busca por legitimidade identitária. As pessoas querem sempre se identificar com alguns grupos sociais e, por outro lado, se dissociar de outros. Por esta razão, sabemos que, em grande número, a relação entre língua e identidade tem sido de grande interesse dos pesquisadores, justamente por essa revelação da vontade identitária de seus usuários, membros de uma nação ou uma comunidade. De um modo geral, os estudos da língua como medium de expressar uma identidade social tem se voltado para a dimensão fonológica da língua falada. Entendemos, entretanto, assim como Ivani (1998) que essa idéia se aplica a todos os aspectos do sistema de língua, inclusive o que diz respeito à escrita.

Ao mesmo tempo, e acima de tudo, para este presente trabalho, entenderemos que as diferenças lingüísticas estão associadas a etnia, aspectos geográficos, classe social ou sexo, mas também a atividades sociais e a ideologias, aspecto que irá perpassar as pesquisas e as possíveis conclusões a que esperamos chegar.

Cabe aqui citar o exemplo dos Diários de Klemperer, que, durante o nazismo, tratou do assunto língua-ideologia, em que, segundo ele, se podia reconhecer na língua alemã o autoritarismo da guerra, a partir vários vocábulos ou expressões típicas daquela época, muitas das quais ficaram estigmatizadas no pós-guerra (Kemperer, 1996).

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 72-75)