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Função legislativa como modalidade de atividade estatal

No documento CENTRO UNIVERSITÁRIO DE BRASÍLIA UNICEUB (páginas 70-74)

2 A EXCEPCIONAL POSSIBILIDADE DE SUPRESSÃO E ALTERAÇÃO

2.3 Limites gerais ao poder de legislar

2.3.1 Função legislativa como modalidade de atividade estatal

O Estado manifesta sua vontade por meio do cumprimento de suas competências e atribuições. Tais competências e atribuições encontram-se distribuídas entre funções bem definidas e distintas. Entre outras,219 há as funções Executiva, Legislativa e Judiciária. Todas elas correspondem a atividades que lhes são próprias, as quais as caracterizam.

O sentido que nesta oportunidade se emprega ao vocábulo “função” não se refere ao agrupamento de atividades a serem executadas ou cumpridas pelo servidor público,220 mas à soma de atividades que o próprio Estado, via Poder Constituinte, entendeu necessário à sua conservação e à realização de seus fins, por meio da previsão de atribuições e competências.

Independentemente do sentido que se dê ao termo, na engrenagem estatal, função envolve dever-poder, sendo este poder instrumento de realização dos deveres, em geral indisponíveis e irrenunciáveis pelos Poderes Constituídos. Ou seja, a criação e manutenção de tais Poderes são justificadas pela existência regular das atividades que titularizam. Assim, os Poderes Constituídos encontram-se atrelados e, por conseguinte, limitados pelo conjunto de atividades finalisticamente discriminadas que necessariamente devem cumprir.

As atividades públicas, pois, podem ser conceituadas como o agrupamento de condutas (positivas e negativas), normativamente autorizadas, racionalmente distribuídas, a serem concretizadas por quem de direito, de interesse de toda a sociedade direta ou indiretamente, consistentes em meios ora para manter a própria organização estatal, ora para a realização de benefícios e utilidades sociais. Nesse

219 Tribunais e Conselhos de Contas e o Ministério Público.

220 Para Moreira Neto, função diz respeito à soma de atividades a serem desempenhadas pelo servidor público e explicitadas legalmente, de forma a operar concretamente a máquina estatal. Ver: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. Parte Introdutória, Geral e Especial. 16ª ed., revista e atualizada. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 565.

sentido, as atividades públicas são prestadas por todo o Estado através de todas as suas instâncias políticas e administrativas, direta e indiretamente.221

Ainda que o dever precípuo de qualquer agente estatal, a rigor, seja o de prestar “serviço” ao público em geral,222 para um número significativo de administrativistas brasileiros, serviço público é modalidade de atividade estatal somente promovida via função estatal executiva stricto sensu,223 ou seja, pelo Poder Executivo e por quem lhes faça as vezes.224 Para Justen Filho, serviço público corresponde à atividade pública pautada na satisfação concreta de necessidades, inclusive imateriais e transindividuais, fundadas em direitos fundamentais, insuscetíveis de realização pelos mecanismos finalísticos que dirigem a atividade privada, destinadas a pessoas indeterminadas, além de executadas sob o regime público de direito.225

Na realidade, compreendendo-se ou não que os poderes legislativo e judiciário prestam, a exemplo do poder executivo, serviço público, para fins de identificação do conceito deste, não parece tão útil,226 principalmente em razão da vigente adoção da responsabilidade possível de recair indiscriminadamente sobre qualquer agente no exercício de quaisquer atribuições e competências estatais. Nesse sentido, não se

221 Veja-se que, em geral, os serviços públicos podem, em certos casos previstos em lei, ser prestados mediante delegação (concessão e permissão) ao setor privado (art. 175 da CF/88).

222 Para Araújo, serviço público envolve toda e qualquer atividade exercida pelo Estado por meio de seus Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário) para que se realizem direta ou indiretamente as finalidades para as quais fora criado. Ver: ARAÚJO, Edmir Netto de. Curso de Direito

Administrativo. 8ª ed., atualizada até a EC n. 99, de 2017, São Paulo: Saraiva, 2018, p. 130.

223 Meirelles, ao lecionar que serviço público é “todo aquele prestado pela Administração ou por seus delegados, sob normas e controles estatais, para satisfazer necessidades essenciais ou secundárias da coletividade, ou simples conveniências do Estado”, faz referência à Administração e não ao Estado como prestador de serviços públicos. Ver: MEIRELLES, José Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 42ª ed., atualizada até a Emenda Constitucional 90, de 15.9.2015. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 418.

Entre os que não compreendem serviço público em sentido amplo, tem-se: Marçal Justen Filho (ver adiante) e Celso Antônio Bandeira de Mello. Quanto ao último, conferir: MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 30ª ed., revista e atualizada. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 687.

224 Segundo Di Pietro, “não é tarefa fácil definir serviço público, pois a sua noção sofreu consideráveis transformações no decurso do tempo, quer no que diz respeito aos seus elementos constitutivos, quer no que concerne à sua abrangência. Além disso, alguns autores adotam conceito amplo, enquanto outros preferem um conceito restrito”. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 27ª ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 100.

225 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 10ª ed., 2ª tiragem, revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 727/730.

226 Para Mello, “se a expressão serviço público tivesse amplitude tão lata que abrangesse atividade material e jurídica assumida pelo Estado como pertinente a si próprio, a noção de serviço público perderia seu préstimo, pois abarcaria realidades muito distintas entre si, coincidindo, afinal, com o conjunto de atividades do Estado, sem estremá-las com base nas características de cada qual e nas particularidades dos respectivos regimes jurídicos [...]”. Ver: MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 30ª ed., revista e atualizada. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 691.

pode afirmar qual o conceito correto ou mais correto entre os mais amplos ou os mais restritos.227

Conquanto alguns agentes estatais respondam perante a sociedade via procedimentos e por razões distintas da regra geral,228 é comum “[...] as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviço público responderem pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, [...]”,229 o que significa que o Constituinte não admite a irresponsabilidade estatal. Independentemente da natureza da atividade que o agente estatal exerça, sobre ele recaem deveres que, ao serem descumpridos, podem levá-lo à efetiva responsabilidade.

Ao legislador ordinário, por exemplo, atribuem-se vários deveres,230 entre os quais o de obedecer e fazer cumprir formal e materialmente a CF/88.231 Em outras palavras, deve o legislador infraconstitucional, por meio da análise de obediência à CF/88 e aos valores que ela manifesta, realizar atividades ou serviços que, além de formal e materialmente válidos, perfaçam-se de maneira impessoal, ética, transparente, exteriorizando qualidade e eficiência.

227 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 27ª ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 107.

228 “[...] deve-se considerar as prerrogativas de foro que cada agente político possui, prerrogativas dispostas na CRFB justamente porque estes exercem uma parte da soberania do Estado, [...]”. Ver: OLIVO, Luís Carlos Cancellier de; ORSSATTO, João Henrique Carvalho. A responsabilidade dos agentes políticos pelos atos de improbidade administrativa. Espaço Jurídico. Joaçaba, v. 12, n. 2, p. 67-90, jul./dez. 2011.

229 Art. 37, § 6º, da CF/88.

230 Quanto aos deveres gerais dos Deputados e Senadores, há previsão nos arts. 54 e 55 da CF/88.

231 Quando da posse dos Deputados, segundo o § 3º do art. 4º do Regimento Interno da Câmara dos Deputados (Resolução nº 17, de 1989), devem eles comprometerem-se solenemente a manter, defender e cumprir a Constituição, além de observarem as leis e também promoverem o bem geral do povo brasileiro. Ver: BRASIL, Câmara dos Deputados. Resolução nº 17, de 1989. Aprova o

Regimento Interno da Câmara dos Deputados. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/atividade-

legislativa/legislacao/regimento-interno-da-camara-dos-deputados/arquivos-1/RICD%20atualizado%20ate%20RCD%2030-2018.pdf. Acesso em 23 dez. 2018.

No que tange aos Senadores, semelhante compromisso é previsto no § 2º do art. 4º do Regimento Interno do Senado Federal (Resolução do Senado Federal nº 93, de 1970). Ver: BRASIL, Senado Federal. Atividade Legislativa. Regimento Interno. Disponível em:

https://www25.senado.leg.br/documents/12427/45868/RISFCompilado.pdf/cd5769c8-46c5-4c8a-9af7-99be436b89c4. Acesso em 23 dez. 2018.

De acordo com a Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992),232 ela se aplica a agente estatal com mandato eletivo (art. 2º),233 o qual, à semelhança dos demais agentes públicos, é obrigado a velar e observar fielmente os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade no trato de todos os assuntos que lhe são afetos em razão do cargo (art. 4º), além de dever apenas praticar ato visando a fim permitido em suas regras de competência (art. 11, I).

Veja-se que quando o legislador edita normas que preveem casos de supressão e/ou alteração quantitativamente redutora das capacidades ecológicas dos ETEPs, faz-se necessário que seu intuito não só não seja o de violar princípios basilares da atividade pública (art. 37 da CF/88), mas, simultaneamente, esteja voltado ao fim último de cumprir e fazer cumprir inclusive tais princípios, sob pena de sua conduta configurar ato de improbidade.234 Se para “assegurar a efetividade” ao direito constante do caput do art. 225 da CF/88, o Constituinte determinou a preservação e restauração de processos ecológicos essenciais, inclusive por meio da definição de ETEPs, os casos de supressão e/ou alteração redutora das RLs devem ser excepcionais e sempre voltados a efetivar as demais dimensões da

232 BRASIL. Presidência da República. Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992. Dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8429.htm. Acesso em 23 dez. 2018.

233 O STF determinou que os agentes políticos que praticarem atos de improbidade administrativa, diferente dos demais agentes estatais, são responsáveis por sua conduta infratora na conformidade da Lei nº 1.079/1950 (Lei de Responsabilidade), e não à Lei de Improbidade Administrativa. Ver: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Rcl 2.138/DF. Tribunal Pleno. Reclamante: União. Reclamado: Juiz Federal substituto da 14ª vara da Seção Judiciária do Distrito Federal. Rel. Min. Nelson Jobim. Brasília, DJ 13 jun. 2007. Disponível em:

http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2044010. Acesso em 25 mar. 2017.

234 “Vale ressaltar que tanto os crimes relacionados na Lei de Improbidade Administrativa, quanto os descritos na Lei de Responsabilidade são originários de atos de improbidade administrativa e, portanto, caracterizam crimes de responsabilidade, delitos de ordem político-administrativa”. Ver: OLIVO, Luís Carlos Cancellier de; ORSSATTO, João Henrique Carvalho. A responsabilidade dos agentes políticos pelos atos de improbidade administrativa. Espaço Jurídico. Joaçaba, v. 12, n. 2, p. 67-90, jul./dez. 2011.

Lamentavelmente, “[...] por ser difícil identificar a presença do elemento subjetivo necessário à caracterização do ato de improbidade violador dos princípios da administração pública [...]”, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) não tem tido como condenar agentes estatais que cumprem normas de “[...] constitucionalidade duvidosa [...]”, as quais de fato tem comprometido bens jurídicos tutelados pela Constituição. Ver: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp 277.706/RS. Primeira Turma. Agravante: Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul. Agravado: Décio Antônio Colla. Rel. p/Acórd. Min. Napoleão Nunes Maia Filho. Brasília, DJ 31 set. 2017. Disponível em:

http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?processo=277706&b=ACOR&thesaurus=JURIDICO &p=true. Acesso em 15 jun. 2018.

sustentabilidade do desenvolvimento, sob pena de ofensa não só do caput do art. 225, mas inclusive dos princípios gerais da atividade pública como um todo.

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