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Função social da escola básica

No documento monicadiasmedeirospires (páginas 113-118)

2 A FORMAÇÃO SOCIAL E A NATUREZA DO CAPITALISMO NO BRASIL

3.2 SOBRE AS CATEGORIAS DE CONTEÚDO E ANÁLISE DO OBJETO: CONFORMISMO, FUNÇÃO SOCIAL DA ESCOLA BÁSICA E TRABALHO

3.2.2 Função social da escola básica

Essa categoria é central para nossa investigação, pois nos ajuda a interpretar a finalidade da educação básica apontada pelo MBNC. Enquanto a categoria conformismo é uma ferramenta para identificar e analisar o perfil e a inserção do cidadão-trabalhador nas práticas sociais gerais e no mundo do trabalho, em particular, que é projetado pela organização empresarial na BNCC, como desdobramento, a categoria função social da escola básica se destina a identificar e analisar as finalidades educativas da escola. Acreditamos que um projeto de educação se traduz na perspectiva de formação humana que se desenvolve no interior das instituições de ensino em busca de legitimar um determinado projeto de sociedade.

Deste modo, entendemos que toda política curricular trata do conhecimento escolar a ser sistematizado para a escola (como é o caso de um currículo nacional) e pela escola (nas práticas desenvolvidas no interior da instituição) e que tais conhecimentos nunca são neutros, desprovidos de intencionalidade.

Ao identificarmos, na fase exploratória de análise dos documentos, a interferência de organismos empresariais na formulação da BNCC, tornou-se necessário entender quais conhecimentos serão implementados nas escolas de educação básica brasileira e com qual objetivo. Por isso, concluímos que adotar a função social da escola básica como categoria de análise tornou-se uma exigência para compreendermos a essência do fenômeno educativo em curso.

A construção desta categoria se apoia no entendimento de que a escola tem uma função distinta em relação às demais instituições e organizações que compõem a sociedade. Assegurar que sua função social seja garantida a todos os cidadãos é o papel não só dos profissionais que nela atuam, como também dos formuladores de políticas públicas a ela direcionada. Conforme destacou Saviani (2011), convém então deixar claro sua função para que não seja obscurecida por tergiversações que proporcionam sua secundarização e prolongam as desigualdades:

[...] a escola tem uma função especificamente educativa, propriamente pedagógica, ligada à questão do conhecimento; é preciso, pois, resgatar a importância da escola e reorganizar o trabalho educativo, levando em conta o problema do saber sistematizado, a partir do qual se define a especificidade da educação escolar (SAVIANI, 2011, p. 84).

Com efeito, Saviani (2011) demonstra que as raízes históricas do surgimento da escola situam-se no momento em que o modo de produção e reprodução da vida deixa de ser do tipo comunal e passa basear-se na apropriação privada dos meios de produção da vida. A classe dos proprietários da terra (principal meio de produção das sociedades antigas) explorava aqueles homens que não tinham nenhuma propriedade e, assim, produziam sua existência através do trabalho desenvolvido por outros, o que lhe permitia formar uma classe ociosa. Para ocupar o tempo livre, esse restrito grupo de homens dirigia-se às escolas para adquirir uma formação complementar, secundária, derivada dos processos educativos mais gerais advindos trabalho.

O surgimento da modernidade altera as relações socais e cria um novo modo de produzir e reproduzir a vida, baseado nas relações capitalistas. A classe empresarial passa de classe ociosa à classe empreendedora com “necessidade de produzir continuamente, para reproduzir indefinidamente, de forma insaciável, o capital” (SAVIANI, 2011, p. 82). Como resultado dessas escolhas e das próprias necessidades humanas que produziram a industrialização e a urbanização, a burguesia reconhece que a escola precisa ser universalizada para que os trabalhadores tenham condições de participar, minimamente, da vida em sociedade. A escola vai transformando-se gradativamente e chega à nova etapa histórica (capitalismo) como a forma principal e dominante de educação.

Segundo Neves (1994) a educação escolar se materializa a partir das relações sociais e das relações de poder expressas na sociedade, por este motivo, é permeada pela contradição e disputa pela hegemonia. Neste sentido, Saviani (2011) afirma que atualmente a escola é atravessada por uma questão paradoxal. De um lado, ela é secundarizada na medida em que se proliferam ideias de que não é somente através dela que se educa, de que há múltiplas formas e instituições que podem assumir a função de educar, chegando à radicalidade de defender a proposta de desescolarização. Por outro lado, contraditoriamente, a instituição escolar assume centralidade na vida dos indivíduos. A defesa pela escolarização desde o nascimento (acesso à educação infantil a partir de zero ano de idade) e pela ampliação da jornada escolar (educação de tempo integral) demonstra que a educação desenvolvida nas escolas é a forma dominante de educação na sociedade moderna.

Sendo a forma predominante de educar os indivíduos, a escola assume, na perspectiva histórico-crítica, uma função específica e intrasferível ligada à questão do conhecimento sistematizado. De acordo com Saviani (2011, p. 66) “a escola tem o papel de possibilitar o acesso das novas gerações ao mundo do saber sistematizado, do saber metódico, científico. Ela necessita organizar processos, descobrir formas adequadas a essa finalidade”.

Entretanto, a existência de tendências que buscam secundarizar a escola, controlando o acesso ao saber e dificultando a realização de sua finalidade, traduz o caráter contraditório que atravessa a educação e que é expressão da própria sociedade capitalista. À medida que vivemos, ainda, numa sociedade cindida em classes com interesses opostos, a universalização das formas mais desenvolvidas do conhecimento científico, filosófico e artístico contraria os interesses da classe burguesa e, consequentemente, as tentativas de desvalorização da escola se subordinam ao objetivo de assegurar a apropriação privada dos conhecimentos sistematizados.

Segundo Saviani (2012), ao surgirem propostas de escolas comprometidas com a socialização dos conhecimentos, segundo os interesses populares, a burguesia lança mão de mecanismos de recomposição de hegemonia para esvaziar o conteúdo da educação destinada à classe trabalhadora e minimizar a importância da escola. Situando essa instituição no interior das contradições capitalista, o autor esclarece:

[...] o saber, que é o objeto específico do trabalho escolar, é um meio de produção, ele também é atravessado por essa contradição. Consequentemente, a expansão da oferta de escolas consistentes que atendam a toda a população significa que o saber deixa de ser propriedade privada para ser socializado. Tal fenômeno entra em contradição com os interesses atualmente dominantes. Daí a tendência a secundarizar a escola, esvaziando-a de sua função específica, que se liga à socialização do saber elaborado, convertendo-a numa agência de assistência social, destinada a atenuar as contradições da sociedade capitalista (SAVIANI, 2011, p. 85). Com isso, percebemos que a função social da escola está historicamente vinculada ao projeto de educação que se pretende veicular para o desenvolvimento de um determinado projeto de sociedade. A dicotomia entre a necessidade de expansão da escolarização às camadas populares e o concomitante interesse de sua secundarização já se expressava nos primórdios da sociedade burguesa, razão pela qual, uma fração da classe hegemônica (os economistas) defendia um ensino limitado à escola básica. Saviani (2011), afirma que, na verdade, o que se pretendia era materializar o pensamento liberal de Adam Smith, que

advogava pela instrução do povo, porém em doses homeopáticas. Aos trabalhadores, a instrução deveria ser a mínima necessária para a participação na sociedade.

Atualmente, Martins (2013) identifica duas concepções dominantes de educação escolar. A primeira ressalta o vínculo imediato entre economia e educação e compreende que a finalidade da escola é a elevação do “capital humano” e a promoção do “capital social” dos sujeitos. Para a classe empresarial, a escola proporcionaria o aumento da produtividade, contribuindo para a ascensão social dos indivíduos e, ao mesmo tempo, para o crescimento do país. Entretanto, referenciado na tese de “rejuvenescimento da teoria do capital humano” de Frigotto (2010) compreende que diante das mudanças do século XXI, essa teoria foi atualizada pela noção de empregabilidade, defendendo que o trabalhador deve adquirir competências e habilidades “eficientes” para que esteja disponível para as demandas do mercado de trabalho.

Associadamente, a teoria do “capital social” defende a concepção de que os indivíduos deveriam desenvolver estratégias coletivas, independente das ações desenvolvidas na esfera estatal, para resolver os problemas estruturais da sociedade, contribuindo para o alívio à pobreza e para a coesão social. Nesta linha, a classe empresarial se preocupa com a formação moral dos indivíduos buscando formar cidadãos participativos (MOTTA, 2008).

A segunda concepção hegemônica identificada por Martins (2013) corresponde ao desenvolvimento de uma educação voltada para a cidadania. Conforme identificamos, em que pese grupos vinculados às forças progressistas identificarem que a formação para o exercício da cidadania proporciona condições para a superação das injustiças e desigualdades, sua essência não está vinculada à superação da ordem capitalista. Uma escola comprometida com a formação de trabalhadores para serem cidadãos está, na verdade, a serviço da manutenção do projeto hegemônico.

A partir desta explicitação compreendemos que a função social da escola se articula ao projeto de formação humana que se pretende desenvolver em uma dada sociedade, por isso as propostas educacionais situam-se no âmbito da luta de classes. Ainda que, conforme desnudou os críticos-reprodutivistas, saibamos que a função da escola na ordem vigente é a manutenção do status quo, entendemos com Saviani (2012) que a escola não é passiva e que, na contradição, inerente a esta ordem, é possível a construção de um projeto educacional contra hegemônico, bem como o desenvolvimento de ações educativas atreladas aos interesses da classe trabalhadora.

Disto decorre que, diferente do projeto burguês, a função social da escola, baseada nos fundamentos da pedagogia histórica-crítica, está ancorada na transmissão dos conhecimentos sistematizados historicamente, pois somente através deste saber o homem poderá compreender a essência da realidade em que vive, das formas de produção e reprodução de sua existência e das possibilidades de transformação.

O conceito de escola unitária elaborado por Gramsci (2001) contribui para as formulações da pedagogia histórico-crítica e traz importantes subsídios para a construção de uma escola transformadora. Segundo o autor a escola única é comprometida com a cultura geral e com o equilíbrio no desenvolvimento das capacidades para o trabalho manual e intelectual, em que a produção da própria vida por meio de uma dessas esferas é, efetivamente, uma escolha de cada ser social. Deste modo, a finalidade desta escola é proporcionar a formação integral do sujeito. Sua preocupação é desenvolver todas as potencialidades humanas nos seus sentidos artísticos, científicos, filosóficos, culturais, éticos e afetivos. Rompendo com a divisão social do trabalho e advogando o trabalho como princípio educativo, essa escola visa à formação omnilateral do ser humano.

Disto decorre que a escola não poderá se furtar da responsabilidade de organizar o trabalho educativo em bases rígidas, o que pressupõe a construção de um currículo comprometido com a transmissão do saber sistematizado e que, as condições para a apropriação deste saber, sejam também objeto de sua preocupação. Portanto, para existência da escola não basta somente a seleção do conteúdo escolar, é necessário também viabilizar as condições de sua transmissão e assimilação para que a aprendizagem seja efetivada.

Para Gramsci (2001) e Saviani (2011) este processo depende de uma disciplina intelectual por parte dos educandos, que não é adquirida espontaneamente, mas sim por meio de um processo deliberado e sistemático. Segundo Saviani (2011, p. 19, acréscimos nosso) “no processo de aprendizagem, [...] atos, aparentemente simples, [exigem] razoável concentração e esforço até que [sejam] fixados e [passem] a ser exercidos, por assim dizer, automaticamente”. É neste sentido que Gramsci (2001, p. 46, acréscimo nosso) vai afirmar que, na escola de educação básica, “é preciso fazer com que [os alunos] adquiram certos hábitos de diligência, de exatidão, de compostura até mesmo física, de concentração psíquica em determinados assuntos, que só se podem adquirir mediante uma repetição mecânica de atos disciplinados e metódicos”.

Saviani (2011) afirma que a defesa dos aspectos mecânicos não assume o mesmo sentido do ensino puramente mecânico da escola tradicional. A defesa desse movimento

justifica-se pela necessidade de se fixar certos automatismos e incorporá-los de tal modo, que passem a ser operados no interior de nossa própria estrutura orgânica. Assim, a aprendizagem só acontece quando adquirimos um habitus, ou seja, “quando o objeto de aprendizagem se converte numa espécie de segunda natureza” (SAVIANI, 2011, p. 20). Passamos a realizar determinadas atitudes como se fosse algo natural, mas, na verdade, trata-se de uma habilidade adquirida.

É neste sentido que Saviani (2011) afirma que o currículo é uma escola em funcionamento, ou seja, desempenhando a função que lhe é própria: proporcionar a transmissão e a assimilação dos conteúdos clássicos produzidos pela humanidade.

Diante disso, é possível compreender que a categoria função social da escola é imprescindível para a interpretação do nosso problema. Através dela poderemos verificar qual o projeto de educação que subsidia a BNCC, e mais, quais as estratégias de ação são utilizadas por seus formuladores para a legitimação de tal projeto.

Neste sentido, a categoria trabalho educativo se configura como instrumento estratégico para a análise das concepções e estratégias difundidas pelo MBNC, uma vez que é através do exercício do magistério que função social da escola se materializa.

No documento monicadiasmedeirospires (páginas 113-118)