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Ao tratar sobre as funções da literatura de tradição oral, Finnegan (2006) afirma que a maioria é considerada de ordem prática, porém varia de lugar para lugar, de época para época e de cultura para cultura. Mesmo numa determinada sociedade, esses objetivos ainda possuem uma grande variação. É notável a influência da tradição oral na concepção dos escritores indígenas, pois estes compreendem a literatura como uma letra viva que pode impulsionar ações extremamente importantes, por isso a ela se atribui um caráter funcional, uma vez que tem como propósito a criação de textos que venham a desempenhar papéis de reconexão com as ancestralidades, afirmação de identidades, resgate e fortalecimento cultural, difusão das diversidades étnicas, denúncia de situações de violência e revisão da história nacional.

No prefácio do seu livro Histórias que eu vivi e gosto de contar (2006), o escritor Munduruku declara seu desejo com a escritura daquela obra:

Este livro também é um desejo. É o desejo de acordar o povo brasileiro para suas raízes ancestrais. É o desejo de trazer para o coração das crianças e dos jovens a mágica da fé em seres invisíveis e encantados que habitam seus sonhos, seus jogos e suas brincadeiras. É o desejo de lhes dizer que tudo isso é verdadeiro. Que a verdade está principalmente em coisas que nossos olhos não veem (MUNDURUKU, 2006, p. 9).

Entendo esse desejo como um papel que o livro referido deve desempenhar para seus leitores. Por meio do livro, Munduruku dialoga com a sociedade brasileira, a fim de estimular uma reflexão sobre suas ancestralidades, buscar conhecer suas raízes e desenvolver o sentimento de valorização pela sua origem. Ademais, às crianças e aos jovens se dirige para reascender sua crença nos seres invisíveis, que fazem parte do seu mundo mágico, vivenciando suas subjetividades de modo a reconhecer uma verdade que está para além daquilo que se percebe como realidade objetiva. Logo, essa literatura tem um papel de fazer o leitor refletir sobre suas concepções de mundo e vivências das espiritualidades.

Ainda conforme salienta Munduruku, “O papel da literatura indígena é, portanto, ser portadora da boa notícia do (re)encontro. Ela não destrói a memória na medida em que a reforça e acrescenta ao repertório tradicional outros acontecimentos e fatos que atualizam o pensar ancestral” (2018a, p. 83). O autor destaca como função da literatura nativa promover o reencontro com as memórias ancestrais e atualizar o repertório cultural, levando-se em consideração o caráter dinâmico das culturas e da contemporaneidade das tradições indígenas,

e isso em oposição a uma visão que compreende a cultura indígena como manifestações estagnadas no século XVI.

Pensando numa função literária mais ligada à espiritualidade, o pesquisador Antônio Risério concebe a poesia dos povos araweté como uma forma de ligação direta com os deuses, conforme fragmento abaixo:

Levada pelos deuses e cultivada pelos humanos, a palavra-canto existe assim na terra como no céu. E como interveio no divórcio primordial, fraturando a crosta terrestre, é também a via de reconexão desses dois mundos. Pelo canto, deuses e mortos descem à terra, falando aos humanos. Pelo canto, os humanos se comunicam com o outro mundo. A palavra-canto é a via de acesso araweté às paragens sobrenaturais. Religa ou ressolidariza o que um dia se rompeu para gerar o cosmos como o conhecemos. Esta é a altíssima função da produção poético-musical na sociedade araweté (RISÉRIO, 2018, p. 122-126).

Nessa concepção, a poesia araweté, nomeada aqui como palavra-canto, tem uma função espiritual de religar dois mundos diferentes: o céu e a terra. Os deuses dialogam com os humanos por meio dessas poesias, e os humanos podem acessar o mundo sobrenatural por meio da palavra-canto. Por esse viés, é possível perceber a importância dos rituais de criação artística para os povos indígenas, o que vai muito além da elaboração de uma narrativa, de recontar uma história que se ouviu dos mais velhos. O poeta experimenta desenvolver a função de mediar a comunicação entre os humanos e os deuses e se permite ser a voz que transmite as palavras sagradas do outro mundo.

Na mesma perspectiva que concebe a poesia como canto, Charles Bicalho declara que

“quando, em ritual, os Maxakali recitam ou cantam seus yãmîys estão presentificando seus deuses, e com eles se relacionando, conversando, recebendo ensinamentos, aprendendo a tradição e também, por que não, a lidar com o novo” (BICALHO, 2018, p. 190). Recitar um poema ou cantar uma música é uma maneira de homenagear os deuses e fortalecer as tradições na cultura maxakali. Para esses povos, a poesia possui uma função que é de relação direta com os deuses, assim como os araweté.

Ainda sobre a produção poética dos povos maxakali, Almeida alega que:

Ao escrever poemas, eles chegam a captar uma porção de sabedoria, e do espírito, dos antigos, porém, pelo fato de fazerem por um meio alienígena — a escrita — resulta na criação de uma nova linguagem e de saberes inusitados. Pode-se chamar tal fenômeno de criação poética, pela qual as comunidades têm entrado em relação e conseguido sobreviver enquanto signos, partes de uma galáxia (2009, p. 100).

A criação literária se dá por meio desse contato com os espíritos ancestrais, e o processo de criação poética se dá por intermédio de um ritual. Nesse caso, a presença do xamã é de extrema importância, e quase sempre é ele o responsável por fazer esse contato com os espíritos dos antigos e captar os cantos.

Por uma outra via, há os autores que entendem a função da literatura indígena mais atrelada às questões políticas e sociais, o que não significa que eles negam o elemento espiritual e ancestral; no entanto, acreditam que a literatura é um instrumento que pode proporcionar mudanças significativas em suas realidades objetivas, sociais, políticas e históricas.

Wapichana compreende que “a literatura indígena associada a esse formato atual ocidental se presta a mostrar a riqueza das diversas culturas indígenas do Brasil e é utilizada como uma importante aliada no auxílio da afirmação, bem como ferramenta para denúncias”

(2012, p. 28). Assim, apropriar-se do código escrito alfabético foi determinante para criar essa possibilidade de via de comunicação entre a sociedade indígena e a não-indígena; partindo dessa visão, entende-se que essa literatura desempenha o papel de difundir as diversidades étnicas e culturais, afirmar as identidades e denunciar as situações que violam os direitos dos povos indígenas deste país.

Em consonância com esse papel mais político desenvolvido pela literatura nativa, o escritor Jaime Diakara Dessana afirma que, “através da literatura, posso exercitar plenamente, o direito de defender a minha cultura, o meu pensamento indígena da etnia dessana do grupo Wahari Dihputiro Porã” (2012, p. 37). Ao assumir sua voz e conquistar o direito à autoexpressão, os indígenas expõem para a sociedade brasileira as cosmogonias deles e, assim, garantem a defesa e a difusão das próprias culturas. A função da literatura para Dessana é defender suas expressões culturais.

A poeta Potiguara aponta que “a literatura indígena cumpre o papel de resgate, preservação cultural, fortalecimento das cosmovisões étnicas” (2014, p. 20). O verbo

“resgatar” é, aliás, muito recorrente no discurso da autora, demonstrando que há uma forte preocupação em “recuperar” ou “salvar” os costumes que foram se perdendo ao longo desse processo de contato. É uma ação de oposição à tentativa de imposição cultural exercida pelos dominadores. Ao recuperar um ritual que já não era praticado por determinado povo, caminha-se para a preservação daquela prática cultural, e, consequentemente, ocorre o fortalecimento das cosmovisões étnicas. Como exemplo desses rituais, posso citar a cultura da

cerâmica e a recuperação de alguns cantos sagrados. Logo, a função da literatura é resgatar4, preservar e fortalecer as identidades culturais.

Kayapó acrescenta que “tal literatura é uma maneira de revisar a história nacional e afirmar a diversidade dos nossos povos” (2013, p. 31). Com a garantia do direito a se expressar por meio dos textos literários, o indígena tem a possibilidade de reescrever a história deste país, apresentando à sociedade brasileira a sua versão dos fatos mediante uma visão descolonizada, que não reconhece a Europa como o centro de produção histórica e cultural. Conforme assegura Mignolo, “a opção descolonial é epistêmica, ou seja, ela se desvincula dos fundamentos genuínos dos conceitos ocidentais e da acumulação de conhecimento” (2008, p. 290). Compreendo, portanto, que a história revisada pela perspectiva indígena afasta-se totalmente dos fundamentos epistemológicos do ocidente, pois se trata de

“aprender a desaprender já que nossos cérebros tinham sido programados pela razão imperial-colonial” (MIGNOLO, 2008, p. 290, grifos do autor). Com essa opção epistêmica, a literatura nativa tem a possibilidade de desconstruir essa imagem caricata e exótica criada numa perspectiva exógena, tornando-se instrumento de autonomia para esses povos fazerem reverberar as suas vozes – até então forçosamente emudecidas.

Sobre a produção literária de Potiguara e Graúna, a pesquisadora Rita Olivier-Godet opina que, “para essas escritoras, a escrita é, prioritariamente, um instrumento de luta a favor dos povos ameríndios, mas elas também pensam na precariedade material e simbólica global que condena igualmente os ameríndios e os afrodescendentes, os pobres da periferia, os sem-terra e as mulheres” (2017a, p. 11). Ou seja, tais produções literárias têm a finalidade de permitir às minorias expressarem seus pensamentos e fazerem suas reivindicações. Nesse caso, o autor assume uma postura ativista, militante e comprometida com as causas sociais, como acontece com as duas autoras citadas.

Na concepção de Danner, Dorrico e Danner (2018), a literatura indígena desenvolve o papel de proporcionar aos escritores assumirem uma atitude própria que determine sua autonomia epistêmica enquanto produtores de conhecimento, como se percebe neste trecho:

[...] a literatura indígena que se desenvolve e se consolida a partir da década de 1990 teve por meta a fundação de uma posição estética, epistemológica e política autoral dos escritores indígenas acerca dos próprios indígenas, a partir da constatação, por eles, de que o imaginário, o simbolismo em torno aos indígenas era basicamente construído de modo caricato, folclórico, teatralizado e extemporâneo, fundamentalmente como uma herança de nossa

4 Usei o verbo resgatar com a intenção de ser fiel ao discurso da poeta Eliane Potiguara, já que aparece com muita frequência em seus textos escritos e orais.

colonização eurocêntrica continuada por nossa modernização conservadora (DANNER; DORRICO; DANNER, 2018, p. 316).

Assumir-se enquanto sujeito de sua própria história, de sua própria arte e de sua própria poética é romper com a relação de tutela que impediu os indígenas de falarem por si mesmos, além de desconstruir esse imaginário que permeia a cabeça de grande parte dos brasileiros, que concebem os povos indígenas como seres que fazem parte do folclore e devem ser homenageados todos os anos, no dia 19 de abril.

Outra função perceptível na literatura nativa e que merece destaque é a de descolonizar o pensamento, o que vai de encontro à concepção eurocêntrica. Para Quijano, o eurocentrismo é:

O nome de uma perspectiva de conhecimento cuja elaboração sistemática começou na Europa Ocidental antes de mediados do século XVII, ainda que algumas de suas raízes são sem dúvidas mais velhas, ou mesmo antigas, e nos séculos seguintes se tornou mundialmente hegemônica percorrendo o mesmo fluxo do domínio da Europa burguesa. Sua constituição ocorreu associada a específica secularização burguesa do pensamento europeu e às experiências e as necessidades do padrão mundial de poder capitalista, colonial ⁄ moderno, eurocentrado, estabelecido a partir da América (2005, p.

126).

O eurocentrismo é um elemento de colonialidade do poder que perdura até os dias atuais, sendo mais duradouro do que o próprio colonialismo de onde se originou. A Europa colocou-se no centro do poder mundial, assim o mundo passa a ser dividido em dois polos: o centro (a Europa Ocidental) e a periferia (as demais partes do mundo). Por meio dessa perspectiva, toda a produção material, artística, cultural e intelectual desenvolvida na Europa é considerada superior e deve servir de padrão para as outras partes do mundo. A colonialidade do pensamento consiste em fazer a sociedade acreditar que existe um modelo universal a ser seguido e que esse modelo é o correto, o verdadeiro, o bonito, o melhor, enfim o superior. Enquanto isso, o pensamento descolonial é uma nova forma de resistência à imposição hegemônica, uma nova alternativa para se pensar a história e se produzir cultura.

A literatura nativa é uma reação à colonialidade do pensamento na medida em que apresenta uma outra concepção de mundo e de ser humano, mostrando que há alternativas de sociedades diferentes daquelas impostas pelo capitalismo mundial por meio de uma perspectiva eurocentrada e hegemônica, tendo em vista que “o pensamento descolonial vive na mente e corpos de indígenas bem como nas de afrodescendentes” (MIGNOLO, 2008, p.

291). Dessa forma, a literatura indígena desmonta a versão oficial da história escrita pelos colonizadores e que até pouco tempo era a única que circulava pela sociedade.

Essa literatura, portanto, possui uma função de registrar conhecimentos tradicionais que antes ficavam restritos às aldeias e se perdiam com a morte dos mais velhos e dos pajés;

divulgar a diversidade étnica e cultural e sua realidade para os povos não indígenas; permitir o diálogo intercultural e a troca de saberes e valores; reescrever a história deste país descontruindo uma imagem estereotipada criada pelos primeiros cronistas; ser portadora da boa notícia e do (re)encontro com as origens; fortalecer as memórias ancestrais e atualizar o seu pensar; denunciar a violência praticada contra os povos indígenas; reivindicar o seu protagonismo e exercer o seu direito à fala sem mediações alheias; exprimir suas pertenças ancestrais, descontruindo noções equivocadas e preconceituosas sobre o ser indígena e apresentar uma outra proposta de mundo e de sociedade.