• Nenhum resultado encontrado

SEÇÃO 3 AS SINGULARIDADES DO CANTO INDÍGENA:

3.4 O autorretrato

Somos a seiva das matas! Pintamos nossos retratos com urucum, jenipapo e açafrão!36

O autorretrato é outro aspecto presente nos poemas de Potiguara e Graúna. Se, por um lado, constitui-se como um elemento estético de análise, na medida em que fotografa as identidades indígenas interseccionadas pelo cruzamento e pela sobreposição dos modernos aparatos coloniais discriminatórios, descontrói, por outro, a imagem de vítima ao retratar identidades de amantes guerreiros, de coragem e resistência. São retratos, poemas-imagens, poemas-paisagens, reflexos de uma realidade corporificada nos cantos, versos e reversos entoados pela voz indígena.

Esse recurso estético direciona para refletir sobre a imagem do indígena veiculada nos meios de comunicação e nos materiais pedagógicos. De onde vem essa ideia de que os indígenas são um atraso para o progresso do país? Que fazem parte do passado? Que são personagens folclóricos? Para pensar sobre essas questões, é necessário fazer um breve passeio histórico e por alguns conceitos referentes à identidade, a partir do embasamento em alguns teóricos que discutem tais aspectos.

Para iniciar, é fundamental lembrar de onde surgiu a palavra “índio”. Esse nome se originou de um equívoco, pois, ao aportarem aqui, os portugueses achavam que tinham chegado à Índia e, por isso, chamaram os povos que encontraram nessas terras de índios (BANIWA, 2006). Mas essa já é uma explicação muita repetida e em que não vale a pena se estender.

De acordo com a pesquisadora Manuela Carneiro da Cunha, “os índios se subdividem, no século XIX, em ‘bravos’ e ‘domésticos ou mansos’, terminologia que não deixa dúvida quanto a ideia subjacente de animalidade e errância” (2002, p. 61). Assim, os índios eram concebidos como animais, uns domésticos, outros selvagens. Essa concepção dos primeiros séculos de colonização teve forte influência na construção da identidade indígena, como se observa na declaração do escritor Munduruku: “Queria dizer a vocês, no entanto, que apesar de minha cara de ‘índio’, meu cabelo de ‘índio’, meus olhos puxados de ‘índio’, as maçãs do rosto salientes de ‘índio’, eu não sou ‘índio’” (2018b, p. 1). A afirmação parece estranha, mas não é, uma vez que o termo “índio” é pejorativo e genérico, não abrange a multiplicidade de etnias existentes no Brasil.

36 Epígrafe da própria autora.

Na sequência, o autor indígena acrescenta: “Pois, lhes digo, eu sou Munduruku. Não sou ‘índio’. Não sou um apelido, uma negação. Sou uma afirmação, sou parte de um povo que tem uma história linda para contar” (2018b, p. 2). Para Munduruku (2018b), o vocábulo

“índio” está atrelado a imagens exóticas, como, por exemplo, o bom selvagem que vive na floresta, caçando e pescando numa espécie de eterno domingo paradisíaco, o que não condiz com a identidade vivida. E, ainda pior do que isso, há outra imagem ideológica que se refere ao índio como: preguiçoso, selvagem, atrasado, sujo, incapaz, covarde e que só atrapalha o progresso do país.

Essa contestação feita por Munduruku em relação ao “ser índio” se dá dentro de uma conjuntura histórica em que a identidade indígena passou por fases diferentes. Para Castells (1999), as construções identitárias se dão em circunstâncias marcadas por relações de poder;

sendo assim, propõe três formas e origens de construção das identidades:

a) Identidade legitimadora: imposta pelas instituições dominantes; dá origem a uma sociedade civil;

b) Identidade de resistência: criada por pessoas que estão em posições de subalternidade, em condições desvalorizadas e estigmatizadas; origina a formação de comunidades;

c) Identidade de projeto: os atores sociais constroem uma nova identidade por meio dos materiais culturais que têm à sua disposição, redefinindo sua posição na sociedade e, como consequência, as estruturas sociais; origina a produção de sujeitos capazes de criar sua própria história (CASTELLS, 1999, p. 67).

Afirmar-se, portanto, como Munduruku é uma forma de mostrar à sociedade o seu pertencimento a um povo que possui suas particularidades e sua própria identidade. Por esse viés, os indígenas não aceitam mais a identidade imposta pelos colonizadores e, por extensão, pela classe dominante atual. Acredito que, pensando a identidade indígena pelo processo histórico, é possível situá-la numa fase em que foi legitimadora, a exemplo de quando os livros didáticos produziam essas imagens deturpadas do “índio”; pela fase da resistência, assim que formaram organizações e movimentos de resistência indígena, conseguindo avanços na garantia de direitos assegurados na Constituição de 1988; e, por fim, na fase de projeto, no momento em que ocupam espaços importantes na sociedade, por exemplo na literatura, na música, no teatro, na televisão, no cinema, nas artes plásticas, na política, nas universidades, entre outros espaços.

Essas ocupações são determinantes nas construções das identidades, conforme se percebe em Ricoeur (1985, p. 432 apud BERND, 1992, p. 17):

[...] a identidade não poderia ter outra forma do que a narrativa, pois definir-se é, em última análidefinir-se, narrar. Uma coletividade ou um indivíduo definir-se definiria, portanto, através de histórias que ela narra a si mesma sobre si mesma e, destas narrativas, poder-se-ia extrair a própria essência da definição implícita na qual esta coletividade se encontra.

Partindo desse pressuposto, produzir suas próprias narrativas por meio da literatura é um dos fatores definitivos para que os indígenas construam uma identidade de projeto e se constituam como sujeitos autônomos que falam de si e por si mesmos. Essas narrativas remetem a uma memória ancestral coletiva e, assim, tornam-se instrumentos vivificadores de tradições e costumes.

A pesquisadora Bernd (1992) considera a construção da identidade como um fator indissociável da narrativa e, consequentemente, da literatura. Por essa via, pode-se afirmar que os textos literários de Graúna e Potiguara são instrumentos de reconstrução, reafirmação e valorização das identidades indígenas, como é possível verificar por intermédio do autorretrato impresso nos textos que serão analisados a seguir.

Para compreender como se dá essa construção do autorretrato indígena, é possível verificar o poema “Retratos”, de Graúna, que faz parte da obra Tear da Palavra (2007). Pelo título, percebe-se que a poeta fará uma fotografia por meio de elementos descritivos, como nota-se pela recorrência de adjetivos e locuções adjetivas, apresentado na sequência:

Retratos

Saúdo as minhas irmãs de suor, papel e tinta fiandeiras

guardiãs

tecendo o embalo da rede rubra ou lilás

no mar da palavra escrita voraz

Saúdo as minhas irmãs fiandeiras

tecelãs

cantando a uma só voz o que nós sonhamos o que nós plantamos no tempo em que nossa voz era silêncio

(GRAÚNA, 2007, p. 24).

O poema está dividido em duas estrofes, cada estrofe contém oito versos livres que apresentam rimas mistas: “irmãs”, “guardiãs” e “tecelãs” são expressões que fazem parte do mesmo campo semântico, pois remetem à imagem das mulheres indígenas; “lilás” e “voraz”

caracterizam, respectivamente, rede e escrita, pois ambas embalam as pessoas; “sonhamos” e

“plantamos” são ações desenvolvidas por essas mulheres que apresentam interdependência entre si.

O texto poético não apresenta pontuação, denotando um ritmo contínuo que se relaciona com a rotina. As pausas se dão apenas nos finais de cada verso. Entendo que essa falta de pontuação indica que não há pausa na construção desse retrato, ele se faz e se refaz cotidianamente por meio das ações corriqueiras que preenchem o tempo das mulheres. Os primeiros versos das estrofes se repetem, chamando atenção para a figura da mulher indígena:

“Saúdo as minhas irmãs”.

A primeira estrofe descreve as mulheres que a poeta denomina suas irmãs. A partir de locuções adjetivas, “de suor”, “papel e tinta”, e de adjetivos, “fiandeiras” (aquelas que fiam) e

“guardiãs” (aquelas que guardam), as retrata de acordo com suas ocupações. O verbo no gerúndio “tecendo” indica que tecer, nesse contexto, é uma ação prolongada e contínua que ainda pode estar em desenvolvimento. O vocábulo “rede” possui um sentido polissêmico, podendo significar rede de dormir, ou rede de pescar, levando-se em conta a alusão à palavra

“embalo” (rede de dormir) e também “mar” (rede de pescar), porém esse “mar” está metaforizado: é o mar da palavra e da escrita.

A segunda estrofe possui a mesma estrutura da primeira, as mulheres são caracterizadas a partir dos adjetivos “fiandeiras” (repete-se uma característica presente na primeira estrofe) e “tecelãs” (aquelas que tecem). Assim como o verbo “tecendo”, na primeira estrofe, o verbo “cantando”, na segunda, revela uma peculiaridade muito importante de culturas indígenas, a saber, a presença do canto no seu dia a dia. Esse canto representa os sonhos e vem se contrapor ao silêncio imposto às mulheres indígenas pelos dominadores. A presença do verbo “ser” no pretérito imperfeito leva-me a supor que esse silenciamento imposto a essas mulheres ocorreu no passado, mas ainda perdura no presente. É por intermédio da escrita que elas conseguem se fazer ouvidas.

Ademais, perpassa pelo poema a sonoridade /s/, trazendo ao texto um caráter sinestésico, além de contribuir para a construção da musicalidade que representa o canto coletivo. A repetição do som /s/ por meio das letras “s”, “c” e “z” desperta no leitor, ao fazer a leitura em voz alta, a sensação de estar ouvindo um assovio, contribuindo para se configurar a ideia do canto.

Logo, o poema se constitui como um retrato, ou retratos, que possibilita ao não-indígena captar uma imagem do ser não-indígena criada por eles próprios, sendo possível, assim, contrapor a concepção caricata do indígena construído ao longo dos anos pela cultura ocidental e etnocêntrica.

O retrato vai se formando nos textos à medida que as autoras denunciam a marginalidade social que envolve o contexto desses povos. No poema “Tocantins de sangue (Período da colonização)”, Potiguara destaca como subtítulo o período histórico explorado no texto, abordando as lutas dos guerreiros indígenas e seus sangues derramados gota a gota, banhando o suor do mundo. Dessa realidade de luta e sofrimento, tem-se como consequência uma situação de penúria:

Tocantins de sangue (Período da colonização) [...]

Nossa gente pobre Nossa vida amarga Nós – decadentes!

Indígenas, não...

Indigentes.

(POTIGUARA, 2004, p. 59-60)

O indígena se confunde com o indigente, pois vive precariamente, na miserabilidade, sem condições de suprir suas necessidades. A descrição feita pelos adjetivos “pobre”,

“amarga”, “decadentes” e “indigentes” remete a uma realidade de espoliação territorial, assim como também é evidenciado no poema “Pankararu”:

Pankararu

Sabe, meus filhos...

Nós somos marginais das famílias Somos marginais das cidades Marginais das palhoças...

E da história? [...]

(POTIGUARA, 2004, p. 60).

A voz poética se autorretrata como marginal, aquele que está à margem das famílias, das cidades, das palhoças, da história e da sociedade. Esse cenário representa uma situação de exclusão social em diversos âmbitos. Apresenta-se nesse texto um sentimento de deslocamento, de não estar no seu lugar, no seu território, onde está gravada a memória dos ancestrais.

No poema “Terra à vi$ta”, na obra Canto Mestizo, de Graúna, é pela repetição da preposição “sem” (equivalente à ausência, privação, falta) que a poeta define a imagem do indígena, como se pode notar a partir da estrofe a seguir:

Terra à vi$ta Perdidos no perdido Os filhos da terra sem barco sem arco sem lança sem onça [...]

(GRAÚNA, 2007, p. 50).

O título do poema remete ao “descobrimento” e, assim como no poema de Potiguara,

“Tocantins de sangue”, deixa marcas explícitas de um período histórico. O símbolo monetário

“$” substituindo a letra “s” traz um sentido polissêmico para a expressão “à vista”: pode, assim, significar a capacidade de enxergar algo, ou, em seu sentido figurado, contrapõe-se ao termo “a prazo”, inferindo-se a ideia de compra, riqueza, mercado e cobiça.

Partindo do sentido figurado, essa concepção exploradora dos colonizadores, que os levou a extrair as riquezas destas terras às custas de qualquer coisa, levou os indígenas a uma situação de privação, deixando-os sem condições básicas de sobrevivência digna: “sem barco/

sem arco/ sem lanças/ sem onça”. Dessa forma, tiram-lhes os meios de subsistência: o seu

“trabalho”, a sua defesa, os seus territórios. Tornam-se, com efeito, índios perdidos, sem Norte, sem direção.

No poema “O criador, a identidade e o guerreiro”, de Potiguara, ocorre a mescla de dois elementos composicionais: a narração e a descrição, a fim de constituir a imagem dos povos indígenas. Tendo como base os conceitos do narrar e descrever desenvolvidos por Lukács (1965), pode-se compreender que o narrar que se apresenta nos poemas dessa autora se faz pela sua postura combativa, e o descrever, por sua vez, por tratar da reconstituição das identidades.

A primeira estrofe do poema possui descrição, sendo perceptível mediante o uso dos adjetivos “doentes”, “quentes”, “daninhas”, mas prevalece a composição narrativa:

O criador, a identidade e o guerreiro Escorria-me das veias doentes Um sangue ainda quente

Como percorre as águas do norte

Levando pra bem longe As ervas daninhas.

(POTIGUARA, 2004, p. 63-64)

Há uma interdependência entre essas duas formas. A descrição é fundamental para demonstrar como a identidade desses povos praticamente se diluiu durante todos esses anos de colonialismo e neocolonialismo, assim como a narração dos fatos é relevante para se entender o que aconteceu com esses povos, como resistiram e resistem até hoje. De acordo com o pensamento de Bernd:

As literaturas dos grupos discriminados – negros, mulheres, homossexuais – funcionam como o elemento que vem preencher os vazios da memória coletiva e fornecer os pontos de ancoramento do sentimento de identidade, essencial ao ato de auto-afirmação das comunidades ameaçadas pelo rolo compressor da assimilação (1992, p. 13).

Pode-se perceber, nos poemas de Potiguara, a retomada da memória coletiva dos grupos indígenas com a finalidade de reascender esse sentimento de autoafirmação mediante a autoexpressão, e isso por meio do reencontro com a identidade. Sua poesia é um chamado, às vezes em forma de grito, outras vezes de sussurro, a fazer essa trajetória de reencontro com esse lugar primeiro.

Na segunda estrofe do poema, prevalece a descrição dessa identidade que

“desapareceu”. A poeta questiona a própria identidade que é personificada. Ela está adormecida e anestesiada, é sofrida e ensanguentada. O descrever é fundamental para que se tenha uma noção do estado em que se encontra a identidade indígena e, assim, construir essa imagem de uma identidade personificada que busca se fortalecer.

Onde estavas identidade adormecida?

Sofrida nas noites ensanguentadas Anestesiada ou morta

Ou apenas me contemplando Ao pé da porta?

(POTIGUARA, 2004, p. 63-64)

Observa-se a presença de rimas internas, pois a última palavra do verso rima com a primeira do verso seguinte: “adormecida” e “sofrida”, “ensanguentada” e “anestesiada”. Além disso, os questionamentos presentes podem ser entendidos como sendo direcionados para a própria identidade ou para o leitor do poema.

Na terceira estrofe, também prevalece a descrição, como se percebe pela utilização de adjetivos e locuções adjetivas em “calada”, “amiga”, “do criador”, “das atenções das lutas”,

“solares”, “ternos” e “puros” (POTIGUARA, 2004, p. 63-64):

Mirava-me calada, identidade amiga Mas vieste a mim, pelas mãos do criador Fruto das atenções da luta

De suas mãos solares

De olhares ternos e carinhos puros

O eu poético dirige-se à identidade, como se verifica no uso do vocativo “identidade amiga”, trazendo para o texto a característica de um monólogo, tendo em vista que não há respostas para as perguntas levantadas. Ou, numa outra perspectiva, pode se tratar até mesmo de um diálogo, e essa ausência de resposta exprime o silenciamento da identidade indígena e a repressão de sua cultura. A importância do diálogo na reconstituição da identidade se dá devido ao “emaranhado de falas que se interseccionam no tecido narrativo”, o que permite

“concluir que a identidade do povo brasileiro, como a dos povos caribenhos e latino-americanos, será forjada a partir da reconciliação das diferentes formações culturais que estão na sua origem” (BERND, 1992, p. 71).

A quarta estrofe não se enquadra numa composição descritiva, muito menos narrativa.

Se houvesse a necessidade de uma classificação tipológica, se aproximaria mais da sequência dissertativa.

Quem tu és identidade?

Que secretos poderes tens, Que me matas ou me revives Que me faz sofrer ou me faz calar Quão mistérios tu trazes na alma?

(POTIGUARA, 2004, p. 63-64)

Na quinta estrofe, surge a imagem do guerreiro configurando as resistências dos povos indígenas. É visível que a sua identidade também esteja adormecida. Há uma mescla entre o narrar e o descrever. O guerreiro é um doce amante que luta pela defesa do seu povo.

E quem é você doce guerreiro salvador das vidas?

Por quantos sangues lutou para estancar?

Quantos curumins fez brotar

Doce amante de mil formas a me encantar (POTIGUARA, 2004, p. 63-64).

Traçando um paralelo com a personagem do poema, “o doce guerreiro”, e com a concepção de Lukács ao definir a poesia como sendo “dos homens que lutam, a poesia das relações inter-humanas, das experiências e ações reais dos homens” (1965, p. 60), nota-se uma certa relação. Isso se considerar que tal concepção de poesia pode ser visualizada no texto analisado, pois representa a luta pela sobrevivência de uma etnia, resistindo à violência de apagamento de sua cultura e persistindo no fortalecimento das tradições dos povos indígenas.

A sexta estrofe, trazida abaixo, é narrativa, e essa voz mítica expõe uma possível solução. Assim, apresenta três personagens – eu, tu e a identidade –, retomando o título do poema, “O criador, a identidade e o guerreiro”, e faz um convite para irem embora em busca dessa identidade.

Vamo-nos embora – nós três – agora Tu, eu e a identidade caminhante Só que cada um pro seu lado

Porque minha identidade pra renascer A qualquer instante

Basta um fio de luz

(POTIGUARA, 2004, p. 63-64).

A concepção de mundo presente no poema é oriunda da vivência desses povos, sendo um fator que permite uma composição múltipla, como se pode ler nessa assertiva de Lukács:

“Na verdade, quanto mais uma concepção de mundo é profunda, diferenciada, nutrida de experiências concretas, tanto mais plurifacetada pode se tornar a sua expressão compositiva”

(1965, p. 78).

A última estrofe apresenta um modelo de pensamento inerente aos povos indígenas: o pensamento circular, enquanto os europeus possuem um pensamento quadrado, como afirma Munduruku na obra Crônicas de São Paulo (2004). É a volta ao útero dos avós que torna possível o despertar dessa identidade que está adormecida.

Uma gota mínima de tolerância Ou uma esperança em seu semblante.

Porque só um fogo eterno O útero de meus avós

Pra tornar minha cidadania decente (POTIGUARA, 2004, p. 63-64).

A descrição que prevalece nessa estrofe propõe representar o que é necessário para que essa identidade possa renascer do “útero de meus avós”. Nesse caso, objetiva-se

visualizar as possibilidades necessárias aos povos indígenas para reencontrarem ou fazerem renascer aquilo que está “adormecida”, “sofrida”, “ensanguentada”, “anestesiada”, “morta”,

“calada”: sua identidade. Para isso, os indígenas recorrem a suas origens, buscando reencontrar suas raízes ancestrais por intermédio da memória dos seus povos, por meio das narrativas contadas pelos parentes mais velhos, dado que “A memória coletiva deve necessariamente estar vinculada a um grupo social determinado. E o grupo que celebra sua revificação, e o mecanismo de conservação do grupo está estreitamente associado à preservação da memória” (ORTIZ, 2012, p. 15). Nesse contexto, a vivência dessas memórias pela literatura indígena consiste num mecanismo importante para manter viva a cultura dessas nações.

No que diz respeito à última estrofe, além do que já foi mencionado, outro ponto merece destaque: quando a poeta alude à volta ao útero dos seus avós, está fazendo uma referência “ao caminho de volta” traçado por diversos indígenas que nasceram no meio urbano e, em algum momento de suas vidas, tiveram a possibilidade de retornar e viver as tradições de seu povo, como aconteceu com a própria Potiguara. No tocante a esse processo de perfazer o caminho de volta, Tahiane Pinheiro Costa, em sua pesquisa de mestrado, desenvolvida na Universidade Federal da Bahia (UFBA), sobre “As narrativas do povo Kiriri”, alega que:

Voltar pode ter sentido de regressar, reavivar, ressurgir, restituir, retomar.

Regressar para os territórios originários, para ‘a casa’, enquanto lugar de origem; reavivar uma cosmovisão adormecida na boca ancestral e gravada na mão, como um mapa tatuado; ressurgir enquanto etnicidade indígena, que apesar de desvanecida, estava enterrada no próprio umbigo, tinha uma pulsão viva; retomar modos de pensar, existir e organizar-se coletivamente; e restituir os direitos constitucionais individuais e sociopolíticos. Esses têm sido os caminhos/processos da viagem da volta percorridos pelo povo Kiriri nas últimas décadas (2017, p. 21).

Apesar de a autora se referir a uma outra etnia, os povos kiriri, é possível estabelecer

Apesar de a autora se referir a uma outra etnia, os povos kiriri, é possível estabelecer