• Nenhum resultado encontrado

SEÇÃO 3 AS SINGULARIDADES DO CANTO INDÍGENA:

3.6 O vestígio de fronteira entre a cultura indígena e a não-indígena

3.6 O vestígio de fronteira entre a cultura indígena e a não-indígena

Daqui posso ouvir o choro, a risada, o canto, o grito, ver as lágrimas de quem está aí.41

Ao refletir sobre a fronteira literária na poesia potiguara, é importante pensar também no conceito de território definido por Claude Rafestin ao afirmar que “Tessituras, nodosidades e redes criam vizinhanças, acessos, convergências, mas também disjunções, rupturas e distanciamentos que os indivíduos e os grupos devem assumir” (1993, p. 161). Deve-se lembrar que só existe fronteira dentro de um território, logo há uma inter-relação entre esses

41 Epígrafe da própria autora.

dois conceitos, tendo em vista que a fronteira é o lugar onde se entra em contato com os vizinhos, tem-se acesso a outras culturas, converge-se ou se diverge, rompe-se ou se assimila, distancia-se ou se aproxima, diferencia-se ou se identifica. De fato, é no espaço da fronteira que vejo, observo e analiso o “outro”, configurando-se, assim, como lugar de vivência e produção das alteridades.

Pensando nas construções e reconstruções de identidade no território da fronteira, compreendo a relação com o outro como um exercício de alteridade que permite refletir sobre de fato quem somos. De acordo com Zilá Bernd, “a questão da identidade nacional será encarada como um dos pólos de um processo dialético; portanto, como ‘meio’ indispensável para entrar em relação com o outro, e não como um ‘fim’ em si mesmo” (1992, p. 10). Nos espaços limítrofes, as populações indígenas experimentam esse processo dialético, como se pode vislumbrar nas leituras dos poemas de Graúna e Potiguara.

O aspecto fronteira se constitui nos poemas nativos pelos vestígios explícitos e implícitos de caráter estético e social, resultados do encontro – a saber, encontros forçados e violentos – da cultura indígena e não-indígena, e por demarcar o lugar de fala das escritoras.

Esteticamente, a fronteira é um espaço privilegiado de produção literária por permitir um alcance maior do olhar artístico, possibilitando diversas escolhas. Analisar os poemas por meio desse recurso permite deparar-se com marcas da cultura ocidental presente nos textos de poética extraocidental, ora num sentido de aproximação, ora com o objetivo de transgressão, como explicitarei a seguir.

As fronteiras nos poemas de Graúna aparecem sob as marcas da vizinhança linguística, religiosa e cultural. Dessa forma, o multiliguismo é um aspecto que se constrói num espaço de fronteira tanto quando se trata dos limites físicos territoriais, como por exemplo ao usar o castelhano, quanto quando se trata dos limites simbólicos e culturais, ao mesclar a língua portuguesa com vocábulos de origem indígena e língua inglesa.

Não é minha intenção fazer uma abordagem geográfica, histórica, sociológica ou linguística, apenas uma abordagem literária, a fim de perceber as tessituras que avizinham os aspectos culturais, étnicos e religiosos indígenas dos aspectos não-indígenas que constituem os escritos de Graúna. Sobre as caracterizações da fronteira, Campos e Rodrigues convergem com a concepção de território dada por Rafestin ao declarar que:

[...] podem se caracterizar como culturais, sociais, entre gêneros, econômicas e tecnológicas; podem ser divisão, faixa, limite e, paradoxalmente, podem ser oposição e aproximação, coalescência ou até mesmo concrescência;

assim, pode ser intersecção, traço que une, como podem ser uma marca de

limite físico ou simbólico; de um jeito ou de outro, fixam a identidade, determinam a alteridade (2011, p. 192-193).

A escrita de Graúna pode ser caracterizada como fronteiriça por ser produzida nesse espaço simbólico de intersecção, em que a identidade na poesia indígena se constitui pela presença do “outro”, e, nesse contexto, “o outro” está sendo utilizado no sentido de não ser indígena. Nota-se essa alteridade com mais precisão nos títulos dos poemas e nas dedicatórias: os títulos fazem referência a autores não indígenas, como T. S. Eliot, em

“Eliotiana”, e Rainer Maria Rilker, em “Rilkeana”. Chamam atenção, também, as dedicatórias que ela faz nas obras, em Canto Mestizo (1999):

a) o poema “Via-crucis” ao padre Zé Luiz, do Rio Grande do Norte, grande intelectual que foi exilado na ditadura militar;

b) o poema “Eliotina” à poeta de Recife Elizabeth Hazin;

c) o poema “Era uma vez” ao escritor paulista Luiz Galdino;

d) o poema “Escritura ferida” a Florbela Espanca, poeta portuguesa;

e) além de outros que não consegui identificar por não ser colocado o nome completo.

Em Tear da Palavra (2007), as dedicatórias também são marcas de alteridade pelo reconhecimento do “outro”:

a) o poema “Cantares” ao poeta espanhol José Camilo Cela;

b) o poema “Reverso do cárcere” ao escritor pernambucano Osman Lins;

c) o poema “Feitura de Tupã” ao poeta romântico Gonçalves Dias.

Pode-se classificar esses exemplos como fronteira cultural ou mesmo literária, na medida em que o diálogo com essas pessoas representa uma convergência com a cultura não-indígena. Esse aspecto deve ser valorizado na literatura nativa levando-se em conta que os “pensamentos de fronteira ou epistemologia de fronteira é uma das consequências e a saída para evitar tanto o fundamentalismo ocidental quanto o não-ocidental” (MIGNOLO, 2008, p.

297). As atitudes radicais não contribuem para a construção de um diálogo e, consequentemente, para um entendimento, pelo contrário, só aumentam ainda mais o fosso existente entre uma cultura e outra. Essa fronteira cultural poderia ser denominada também como marcas intertextuais, já que está tratando da referência explícita a outros textos, e também como marcas de alteridade.

Outro fator merecedor de atenção é que a autora deixa em evidência suas experiências como leitora, levando-se em consideração que “a biblioteca cultural serve tanto para escrever quanto para ler” (GOULEMOT, 1996, p. 114). Para o leitor que não conhece os autores e

textos citados por Graúna, poderá haver certa dificuldade na leitura desses poemas. A menção a nomes de poetas reconhecidos pela literatura canônica é uma maneira de constituir uma identidade pela visibilidade do outro, como se pode compreender pelo conceito de fronteira da professora Maria Geralda de Almeida, da Universidade Federal de Goiás:

Espaço de alteridade do Eu e do Outro, no qual se observam, se comparam, identificam suas diferenças, criam opiniões sobre si mesmo e sobre o Outro como, conscientemente cada um pode adotar ou não traços do Outro; porém, cada um também pode afirmar a sua própria identidade (2005, p. 111).

Essa abordagem auxilia a compreender melhor esses espaços de fronteira como de suma importância na constituição das identidades e como a representação desse “outro” nos textos poéticos, tornando-se fundamentais para demonstrar o respeito às alteridades.

Em outros poemas, Graúna também menciona mais indivíduos e personagens consagrados, como se pode encontrar no livro Canto Mestizo, por exemplo: em “Inventário amoroso” (1999, p. 31), ela cita Hesse, Rilke, Janis Joplin, Hilda Hilst e Dom Quixote; em

“Uns cavaleiros” (1999, p. 45), cita Dulcineia, de Cervantes; no poema “Macunaíma” (1999, p. 53), como o próprio título já adverte, dialoga com a rapsódia de Mário de Andrade; no poema “Colóquio” (1999, p. 54), menciona Abromowiscz e Borges e faz referência a Manuel Bandeira (Pasárgada), menciona ainda José Régio e Fernando Pessoa; em “Inundação” (1999, p. 58), cita o pintor francês Henri Matisse e sua obra “La Gerbe”; no “Poema torto”, faz alusão ao “Poema de Sete Faces”, de Carlos Drummond de Andrade, e se reporta a Mário Quintana, já na primeira estrofe.

Os poemas da obra Tear da Palavra também são exemplo de produções literárias criadas no espaço simbólico de fronteira cultural, como se vê no poema “Outras histórias”

(2007, p. 7), em que são citados o poeta português Camões e o músico baiano Caetano Velosos; e, “Sempre-viva” (1999, p. 17), remete à poeta Cora Coralina, citada duas vezes no texto, e, além disso, há um intertexto com outros dois poemas dessa autora: “Velhos sobrados” e “Todas as vidas”; “Feituras de Tupã” é um diálogo com o poeta Gonçalves Dias pelo seu poema “Marabá”. É notório que, ao escrever, Graúna faz emergir sua biblioteca vivida e experienciada, ou seja, traz à tona a memória de leituras anteriores (GOULEMOT, 1996), como fica evidenciado pelas frequentes intertextualidades em seus “cantares”.

Entende-se que a produção literária na fronteira cultural não deixa de ser uma escrita intertextual. Entretanto, não tratarei do conceito de intertextualidade pelo fato de não se tratar de objetivo específico neste trabalho, e sim das relações de identidade e de alteridade

presentes nesses diálogos. Sendo assim, é possível observar, nessa relação entre as duas autoras estudadas e os autores não-indígenas, as citações diretas e indiretas de textos da literatura canônica como reflexo da ideia de vizinhança e convergência cultural.

As fronteiras religiosas também são aproximadas por Graúna, como é possível perceber a partir do poema “Genesis”, fazendo-se referência ao primeiro livro da Bíblia:

Genesis

Faça-se a flora!

Nas sofrentes raízes de Liliths e Evas o destino se fez.

Faça-se a fauna!

No sôfrego farejar entre liamas e ninfas o homem se fez.

Faça-se a luz!

Ao sabor da cinza um ser renascido:

ave palavra se fez.

(1999, p. 34)

Pela leitura do poema, percebe-se que há a presença de elementos que compõem o universo cristão – gênesis, Evas, cinza, renascido. O paralelismo utilizado nos primeiros versos das estrofes “Faça-se a flora!”, “Faça-se a fauna!”, “Faça-se a luz!” faz parte do texto bíblico da criação e representa a fala de Deus. Porém, há uma intriga nesse poema: essa é a voz de Deus ou a voz da poeta? Há uma subversão nessa escritura através da presença de Lilith? A fronteira é também um espaço conflituoso e de ruptura. Nesse caso, percebem-se o conflito e a ruptura pela postura da poeta ao se comparar com Deus quando ela escreve os poemas. Soma-se a isso, ainda, a presença de Lilith, uma personagem banida da Bíblia e sobre quem versam alguns mitos, os quais explicam essa expulsão pelo motivo de essa mulher não aceitar ser submissa a Adão.

Assim como a palavra tem imenso poder nas escrituras sagradas cristãs – e o verbo se fez carne e habitou entre nós –, a palavra também possui um imenso poder para a poeta.

Afinal, poesia é criação, e, sendo assim, a poeta é o criador. Essas duas figuras se fundem em uma única, o que seria inaceitável pela perspectiva do Cristianismo. Nesse ínterim, uma das principais constatações a que posso chegar acerca do poema “Genesis” é de que Graúna reformula a ideia da criação do mundo no espaço fronteiriço que nem pode ser classificado

como o espaço que representa a concepção cristã e nem o da cosmogonia indígena, haja vista existir uma postura de subversão importante na construção das distinções identitárias, pois, como versa Bhabha, “a fronteira, é também espaço liminar e processo de interação simbólica, o tecido de ligação que constrói a diferença” (2003 apud ALMEIDA, 2005, p. 111).

A fronteira entre a cosmogonia indígena e o Cristianismo também está presente nos poemas “Via-crucis” (1999, p. 41), “Dessemelhantes” (1999, p. 46) e “Ofertório” (2007, p.

22). Escrever nesse espaço de interação simbólica e trazer essas marcas de aproximação e distanciamento para os textos torna-se uma estratégia de fortalecimento das identidades e reconhecimento das alteridades, como escreve a própria Graúna: “ouvir/intuir a voz do outro é reconhecer-se no processo de identidade alteridade [...]” (2013, p. 70).

O lugar de fala de Graúna é, nesse contexto, o espaço da fronteira, de onde ela pode exercer relações com outras línguas, outros costumes, outras culturas e outras literaturas. Essa convivência com o “outro” permite que haja um intercâmbio, resultando no processo de transculturação e trocas de influências identitárias, nos dizeres de Bernd:

A Poética da Relação concebe, pois, o resgate da identidade cultural, portanto o resgate das raízes culturais, o conhecimento dos elementos fundadores da cultura a que se pertence, como fundamental na medida em que permitirá o comércio, o intercâmbio, a relação com a cultura do outro (1992, p. 83, grifos da autora).

Os negros e os indígenas tiveram suas alteridades negadas pelos colonizadores, sendo excluídos de diversos âmbitos sociais, como noto pela falta de reconhecimento de suas produções literárias; no entanto, Graúna não ignora a alteridade daqueles que são considerados cânones literários, pois, para ela, estar na fronteira propicia uma criação poética pautada nas relações e no reconhecimento da presença do “outro”.

Vale ressaltar que, diferentemente de Graúna, as referências de Potiguara são feitas a personagens históricos que tiveram uma postura de enfrentamento em relação à luta pela conquista dos direitos relacionados à terra: Sepé Tiaraju (guerreiro indígena brasileiro), Marçal Tupã (líder da etnia guarani-nhadevá), Angelo Kretã (cacique Kaingang), Manoel da Conceição (camponês), Elisabete Teixeira (militante nas ligas camponesas), Santo Dias (operário metalúrgico e membro da pastoral operária de São Paulo). Esse espaço de fronteira presente nas escritas de Potiguara se constrói de um modo distinto do que se observa em Graúna, percebendo-se que está mais perceptível uma delimitação dos limites simbólicos.

Dessa maneira, fica evidente na obra de Potiguara que “A história, aceitemos ou não, orienta mais nossas leituras do que nossas opções políticas” (GOULEMOT, 1996, p. 110).

O primeiro capítulo de Metade cara, metade máscara é dedicado a Marina, esposa de Sepé Tiaraju. O sexto capítulo traz no início uma citação do escritor Olívio Jecupé, sem contar todas as referências que faz na obra escrita em prosa. A apresentação e a introdução são feitas por seus “parentes” Daniel Munduruku e Graça Graúna. Percebe-se um diálogo maior com personagens indígenas e se acredita que o propósito é destacar os grandes feitos desses povos guerreiros que foram e ainda são massacrados por parte de muitos que os enxergam como um atraso para o progresso do país.

Pode-se verificar que, nos cantos de Potiguara, as fronteiras simbólicas estão bem delimitadas como consequência das disjunções causadas por interesses distintos que se opõem. Já em Graúna, ao mesmo tempo que subverte no campo religioso, se aproxima no campo literário.