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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS MESTRADO EM LETRAS ROSIVÂNIA DOS SANTOS

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS MESTRADO EM LETRAS

ROSIVÂNIA DOS SANTOS

OS “CANTOS” INDÍGENAS DE ELIANE POTIGUARA E DE GRAÇA GRAÚNA

São Cristóvão-SE 2020

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ROSIVÂNIA DOS SANTOS

OS “CANTOS” INDÍGENAS DE ELIANE POTIGUARA E DE GRAÇA GRAÚNA

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras, da Universidade Federal de Sergipe, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestra em Letras.

Área de concentração: Estudos Literários.

Linha de pesquisa: Literatura e Recepção.

Orientador: Prof. Dr. Alberto Roiphe Bruno.

São Cristóvão-SE 2020

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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

S237c

Santos, Rosivânia dos

Os “cantos” indígenas de Eliane Potiguara e de Graça Graúna / Rosivânia dos Santos; orientador Alberto Roiphe Bruno.– São Cristóvão, SE, 2020.

132 f.: il.

Dissertação (mestrado em Letras) – Universidade Federal de Sergipe, 2020.

1. Literatura indígena. 2. Escritores indígenas. 3. Índio na literatura. 4. Identidade. 5.

Potiguara, Eliane – Crítica e interpretação. 5. Graúna, Graça – Crítica e interpretação. I.

Bruno, Alberto Roiphe, orient. II. Título.

CDU 82.091

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ROSIVÂNIA DOS SANTOS

OS “CANTOS” INDÍGENAS DE ELIANE POTIGUARA E DE GRAÇA GRAÚNA

Aprovada em: ____/____/______.

Dissertação apresentada como exigência para Exame de Defesa no curso de Mestrado em Letras, na área de concentração Estudos Literários, à seguinte Banca Examinadora.

Banca Examinadora

_______________________________________________

Prof. Dr. Alberto Roiphe Bruno (UFS) Orientador

_______________________________________________

Profª. Drª. Christina Bielinski Ramalho (UFS) Avaliadora Interna

_______________________________________________

Profª. Dra. Alvanita Almeida Santos (UFBA) Avaliadora Externa

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AGRADECIMENTOS

Ao Grande Espírito que me guia, que me ilumina, que me abençoa, que me protege e me inspira.

À minha família, por ter me dado as bases suficientes para chegar até aqui, mesmo enfrentando tantas dificuldades, e por compreender as minhas ausências, mesmo estando presente fisicamente.

Ao meu companheiro, amor e amigo, que sempre me apoiou e incentivou a alçar voos mais longínquos.

Ao meu professor orientador, Dr. Alberto Roiphe, mais que um professor, mais que um orientador, um ser humano iluminado que me inspirou da gestação até a conclusão deste trabalho.

Aos meus colegas de curso, companheiros de caminhada, parceiros no compartilhamento de experiências e conhecimentos.

Aos meus professores, de forma carinhosa a Christina Ramalho, pelos ensinamentos, pelo exemplo de mulher aguerrida e pela oportunidade que me deu de atravessar fronteiras físicas e de conhecimento.

A cada amigo e amiga, fonte de inspiração e incentivo, destaco aqui o meu amigo e companheiro de trabalho José Valter Castro, que me mostrou o caminho.

De forma especial, agradeço aos escritores indígenas por presentearem a sociedade com o compartilhamento de suas sabedorias ancestrais tão importantes para a cura do mundo.

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Meu canto era bem diferente, Cantava na língua Tupi, Hoje, meu canto guerreiro Se une aos Kambeba, aos Tembé, aos Guarani.

[...]

Em convívio com a sociedade, Minha cara de “índia” não se transformou, Posso ser quem tu és, Sem perder a essência que sou,

Mantenho meu ser indígena, Na minha identidade, Falando da importância de meu povo, Mesmo vivendo na cidade.

Márcia Wayna Kambeba

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RESUMO

Este estudo busca analisar as etnopoéticas de Eliane Potiguara, em sua obra Metade cara, metade máscara (2004), e de Graça Graúna, em suas obras Canto Mestizo (1999) e Tear da Palavra (2007), avaliando de que forma os mecanismos da linguagem poética de ambas contribuem para a reafirmação das identidades indígenas e de que forma evidenciam alteridades. A investigação tem por objetivo também tecer um panorama sobre a literatura indígena brasileira contemporânea, examinando os conceitos, a função e o papel do escritor, além de somar-se a isso fazer um levantamento de autores e obras e, ainda, abordar sobre o ativismo das mulheres indígenas nas Letras. A opção pelos poemas de Potiguara e Graúna como objeto de estudo se deu por se perceber que há uma riqueza estética e particular preponderante em suas etnopoéticas, além de se acreditar que trazer as obras indígenas para o debate no espaço acadêmico seria uma maneira de contribuir para a visibilidade e a reverberação dessas vozes silenciadas, colaborando, assim, com a construção de um pensamento decolonial. Acerca da metodologia, trata-se de uma pesquisa ativista e intervencionista. Para tratar da literatura indígena, o trabalho fundamenta-se em estudos de Maria Inês de Almeida (2009), Janice Thiel (2012), Daniel Munduruku (2004, 2006, 2008, 2012a, 2012b, 2013, 2018a, 2018b, 2019), Graça Graúna (2013, 2014, 2015), Rita Olivieri- Godet (2017a, 2017b), Márcia Kambeba (2018a, 2018b), Cristino Wapichana (2012, 2018) e Julie Dorrico (2018). Contribuem para as abordagens referentes à identidade e à alteridade estudos de Zilá Bernd (1992) e Manuel Castells (1999). Como resultado desta investigação, percebe-se que os elementos que particularizam as etnopoéticas indígenas ainda não são reconhecidos da forma que deveriam ser por falta de estudos e divulgação; foi possível notar também que algumas pesquisas realizadas na área de literatura nativa ainda são concebidas partindo da percepção de uma poética ocidental, impossibilitando o acesso ao território cultural cosmogônico dos povos ancestrais.

Palavras-chave: Etnopoéticas indígenas. Eliane Potiguara. Graça Graúna. Identidade.

Alteridade.

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ABSTRACT

This study intends to analyze Eliane Potiguara’ s ethnopoetics, in her work Metade cara, metade máscara (2004), and Grace Graúna’s ethnopoetics, in her works Canto Mestizo (1999) and Tear da palavra (2007), evaluating how the poetic language mechanisms of both contribute to the reaffirmation of indigenous identities and how they show alterity. The research also aims to do an overview of contemporary Brazilian indigenous literature, examining the concepts, function and the writer’s role, adding to this it seeks to do a survey of authors and works and, also, to discuss about indigenous women activism in literature and languages. The choice for Potiguara and Graúna's poems as an object of study was realized because there is an aesthetic and particular richness preponderant in their ethnopoetics, besides believing that bringing indigenous works to debate in the academic space would be a way of contribute to the visibility and reverberation of these silenced voices, thus collaborating with the construction of a decolonial thought. About the methodology, this is an activist and interventionist research. To deal with indigenous literature, the work is based on Maria Inês de Almeida (2009), Janice Thiel (2012), Daniel Munduruku (2004, 2006, 2008, 2012a, 2012b, 2013, 2018a, 2018b, 2019), Graça Graúna (2013, 2014, 2015), Rita Olivieri- Godet (2017a, 2017b), Márcia Kambeba (2018a, 2018b), Cristino Wapichana (2012, 2018) and Julie Dorrico’s studies (2018). Zilá Bernd (1992) and Manuel Castells’ studies (1999) contribute to the approaches about identity and alterity. As this investigation results, it can be noticed the elements that particularize indigenous ethnopoetics are not yet recognized in the way they should be due to lack of studies and dissemination; it was also possible to note that some research, conducted in native literature area, are still conceived from the perception of a Western poetic, making it impossible to access the ancestral people’s cosmogonic cultural territory.

Keywords: Indigenous ethnopoetics. Eliane Potiguara. Grace Grauna. Identity. Alterity.

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1: Escritores indígenas...34 Quadro 2: Vocábulos de origem indígena...113

Quadro 3: Características da poética de Potiguara e Graúna...118

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO...9

SEÇÃO 2 LITERATURA INDÍGENA: ENTRE O XAMANISMO E O ATO POLÍTICO...18

2.1 O que dizem os escritores indígenas sobre a literatura indígena?...20

2.2 Historicização da literatura indígena no Brasil...24

2.3 Funções da literatura indígena...27

2.4 Principais autores indígenas...32

2.5 A voz feminina nas Letras indígenas...39

SEÇÃO 3 AS SINGULARIDADES DO CANTO INDÍGENA: REPRESENTAÇÕES/FIGURAÇÕES DA IDENTIDADE E DA ALTERIDADE NA POESIA DE GRAÇA GRAÚNA E DE ELIANE POTIGUARA...54

3.1 O canto como poética...58

3.2 O texto como ruptura...66

3.3 As etnias nos poemas como marcas de identidade...72

3.4 O autorretrato...76

3.5 O vocativo como convocação, chamado e invocação...86

a) Convocação...86

b) Diálogo ou chamado...91

c) Invocação...94

3.6 O vestígio de fronteira entre a cultura indígena e a não-indígena...99

3.7 O multilinguismo...105

3.8 Semelhanças + distinções = diversidades...114

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS: CONSTRUINDO PONTES, CONECTANDO MUNDOS...120

REFERÊNCIAS...124

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1 INTRODUÇÃO

Era uma terça-feira, onze e trinta da manhã, a data não me lembro bem, o ano era 2018. Numa pequena sala da Universidade Federal de Sergipe, no Campus de São Cristóvão, aconteceu meu primeiro encontro com o Professor Dr. Alberto Roiphe, meu orientador.

A ideia de pesquisar a poesia indígena nasceu dessa primeira conversa. Embora eu já tivesse decidido pesquisar a poesia, quando o meu orientador me questionou sobre que aspecto da poesia eu pretendia trabalhar, fui pega de surpresa e não consegui responder de imediato. Foi então que ele começou a me apresentar alguns caminhos pelos quais eu poderia enveredar e, só no final de nossa conversa, sugeriu que a poesia indígena seria um objeto importante.

Meu Deus! Poesia indígena? Como assim? Não tive coragem de confessar, no momento, que nunca havia lido nada sobre literatura indígena. Então pedi para pensar um pouco e lhe dar a resposta depois.

Fui embora para casa pensativa. A distância entre Aracaju e Adustina, cidade da Bahia onde moro, é de160 quilômetros. Não é tão longe assim, mas, naquele dia, parecia que o carro não andava. Minha cabeça fervia, e o coração saltitava. Dentro de mim, havia apenas uma certeza: tratava-se de uma decisão muito importante, já que o objeto de pesquisa torna-se nosso companheiro de todas as horas durante dois anos de mestrado, e, quiçá, pelo resto da vida.

A curiosidade foi mais forte que qualquer coisa, não via a hora de chegar a casa e fazer uma busca pelo mundo virtual. Fome? Nada, nem lembrei que não havia almoçado. Chegando lá, corri direto para meu computador. Liguei: Google: Literatura indígena: Daniel Munduruku. Como? Que nome estranho! Surgiram vários resultados. Em apenas três segundos, a diversidade de vídeos publicados no Youtube chamou minha atenção. Segui direto para essa plataforma. Índio com canal no Youtube? Eu fazia parte do grupo de pessoas que acreditam que índio de verdade só existe na floresta. — Que vergonha! Pronto! Falei! É uma forma de trazer as cartas para a mesa. Dizer a verdade. Isso mesmo, como tudo aconteceu.

Entrei no canal de Daniel Munduruku e logo me transportei para esse mundo recém- descoberto. Por lá fiquei horas e horas, bebendo daquelas palavras, como se tivesse encontrado algo que eu buscava, todavia não sabia exatamente onde procurar.

Era engraçado como tudo que eu ouvia se encaixava no meu mundo, um tanto

“alienígena”: a relação de integridade com a natureza, o respeito com a mãe terra, a

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valorização da sabedoria dos anciãos, a busca pela compreensão dos conhecimentos ancestrais, a importância da meditação, da espiritualidade e de ouvir o silêncio. Tudo o que eu ouvia fazia muito sentido para mim, pois tinha relação com a minha concepção de mundo.

Então eu descobri: o meu objeto de pesquisa tinha acabado de me escolher. Não! Acho que não fui clara! Não é uma relação de pesquisadora e fonte de pesquisa. Vai além! Não estou sendo exagerada. Impregnou-se no meu modo de ver o mundo, de conceber as coisas, de ser, de sentir e de compreender.

As palavras de Daniel Munduruku me sensibilizaram e me tocaram profundamente.

Fizeram brotar em mim um sentimento de simpatia e identificação que foi determinante em minha decisão. Então resolvi enviar um e-mail ao próprio Munduruku, a fim de que ele me indicasse nomes de poetas para que eu pudesse realizar a pesquisa. Fiquei surpresa com a sua generosidade em me responder rapidamente. Foi assim que fiquei conhecendo duas poetas de etnia Potiguara: Eliane Potiguara e Graça Graúna.

Partindo da leitura dessas duas autoras, fui percebendo a existência da literatura indígena brasileira contemporânea e descobri que há indígenas fazendo da literatura um instrumento de existência, resistência e reexistência1. Foi assim que decidi pesquisar a poética dessas duas mulheres, que são consideradas as pioneiras da literatura indígena brasileira.

A opção por esses dois nomes se deu por perceber que há uma riqueza estética preponderante nos poemas de Potiguara e Graúna, capaz de envolver o leitor e levá-lo a enveredar pelas suas obras, como, por exemplo, a presença da metalinguagem, definindo os poemas como canções, a ruptura com as tipologias e os gêneros textuais, a intertextualidade, a variação entre forma livre e formas fixas, a escolha vocabular da cultura indígena, entre outros. Percebo que as poetas não estão ocupadas apenas em levar aos leitores uma temática étnica de denúncia e desconstrução de um pensamento colonial, mas também com a forma e a estética com que seus textos estão sendo construídos.

Além disso, noto que ainda há muita discriminação e desrespeito à mulher indígena na sociedade brasileira. Passei a acreditar que trazer as suas obras para o debate no espaço acadêmico seria uma maneira de contribuir para a visibilidade e a reverberação dessas vozes silenciadas, colaborando, assim, com a desconstrução de estereótipos.

1 Ao utilizar o termo reexistência, tomo por base teórica o conceito de letramento de reexistência desenvolvido pela pesquisadora Ana Lúcia Silva Souza, em sua tese Letramentos de reexistência: culturas e identidades no movimento HIP HOP (2009). Para a autora, “o histórico da população negra no Brasil, para além de resistir, há que reexistir também por meio da linguagem, impondo uma outra escrita, uma outra oralidade que é letrada e que possa caminhar na contramão [...]” (SOUZA, 2009, p. 186). Trazendo para o contexto histórico dos povos indígenas, compreendo que a literatura indígena é uma forma de afirmar a existência dos povos originários, mostrando para a sociedade que reexistem, por mais que o Estado intensifique ações de integração. A literatura, nesse contexto, é a materialização dessa reexistência.

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Os poemas escritos por Potiguara e Graúna são constituídos por uma força poética eminente que me sensibilizou e inquietou desde o primeiro contato. Depois de fazer a leitura dos poemas dessas duas autoras, posso afirmar que não foi possível continuar indiferente à luta pelos direitos dos povos indígenas, à sua diversidade étnica e cultural e à valorização do conhecimento dos anciãos e das memórias ancestrais. Esse foi o principal motivo que me levou a escolher a poesia indígena como cerne da pesquisa. Soma-se a isso o perfil das escritoras: mulheres e indígenas, dois atributos que lhes empurram para a margem da sociedade. Todavia trato aqui de duas mulheres que não se deixam intimidar por aqueles que ameaçam a integridade dos povos indígenas. Além do que já citei, também fui impulsionada a compreender essa literatura como de suma importância para difundir a cultura plural desses povos, trazendo-a para as discussões na escola e fazendo propagar essa voz que foi silenciada, e tampouco é ouvida pelos demais.

Portanto, procurei realizar a leitura dos poemas que compõem a obra Metade cara, metade máscara (2004), de Potiguara, e Canto Mestizo (1999) e Tear da Palavra (2007), de Graúna.

No que se refere à obra Metade cara, metade máscara (2004), de Potiguara, ela é apresentada por Munduruku com o texto “Visões de ontem, hoje e amanhã: é hora de ler as palavras”; de forma poética, ele narra sucintamente o nascimento do movimento indígena no Brasil, que permitiu e encorajou a expressão dessas vozes silenciadas, além de preparar o leitor para ler as palavras de “denúncias”, de “tristezas” e de “realidades”. A introdução

“Identidade indígena: uma leitura das diferenças” é elaborada por Graúna, que faz uma breve explanação sobre o título da obra, o contexto em que foi criada, outrossim apresenta alguns comentários e interpretações sobre os poemas e o fazer poético da escritora. Metade cara, metade máscara (2004) possui uma estrutura híbrida, composta de mitos, poemas e relatos históricos. Potiguara vai tecendo a sua história e a história de sua aldeia, desconstruindo o que foi legitimado pela história oficial, numa perspectiva descolonial, isto é, “pensar a partir das línguas e das categorias de pensamento não incluídas nos fundamentos dos pensamentos ocidentais” (MIGNOLO, 2008, p. 305).

Por sua vez, quanto à obra de Graúna, Canto Mestizo (1999) é uma coletânea de poemas apresentada pela escritora e poeta Leila Miccolis com o texto “Viagem ao centro da terra”, em que aborda o estilo que caracteriza os textos poéticos presentes nesse pequeno livro e os caminhos por onde a autora optou percorrer: a crítica, o amor lúcido, o afago, a viagem para dentro da terra, a alusão à língua tupi, as denúncias e a revolta libertária. É dedicada ao escritor, ambientalista e conferencista indígena Kaká Werá Jecupé, de origem tapuia,

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importante liderança indígena e ativista no fortalecimento das culturas, das tradições e dos valores milenares sagrados, autor das obras A terra dos mil povos (1994), primeiro livro de autoria indígena publicado no Brasil pela editora Peiropólis; Oré awé: todas as vezes que dissemos adeus (2002); Tupã Tenondé (2007); As fabulosas fábulas de Iauretê (2007) e O trovão e o vento (2016). Graúna dividiu o livro em duas partes: a primeira, intitulada “hai- kais”, é constituída por doze haikais que captam cenas da natureza, porém não seguem à risca a composição dos haikais tradicionais, havendo uma variação de sílabas poéticas. A segunda parte do livro é denominada “Post-scriptum”, constituída por trinta e nove poemas que expressam cantos e lamentos de vozes desterritorializadas e marcadas por viver a diáspora ao longo desses 520 anos de colonização.

Em Tear da Palavra (2007), Graúna reuniu alguns poemas dos livros Canto Mestizo e Tessituras da terra, além de outros poemas inéditos, para comemorar os 18 anos da Editora Mulheres Emergentes, que tem por objetivo difundir as produções artísticas femininas. O livro versa sobre a reflexão do fazer poético, sobre a personificação da mistura étnica, sobre a situação das Margaridas e Marabás, entre outras temáticas. Está dividido em três partes: “Tear da palavra”, “Tessituras da terra” e “Canto mestizo”. A apresentação é feita pela própria Graúna, com o título “uma explicação necessária”, abordando a importância da solidariedade entre os povos. Para enfatizar esse argumento, cita o personagem Sancho Pança ao alegar que sonho que se sonha junto vira realidade. Cita também o poeta Carlos Drummond de Andrade ao expressar que não faz sentido sair por aí se não for de mãos dadas.

Nos poemas das duas autoras pesquisadas, notam-se o engajamento, a militância e o compromisso com a causa indígena. Dessa forma, podem ser classificados como uma escrita ativista e comprometida com a resistência cultural, a luta política e o fortalecimento das memórias e tradições dos povos originários.

As principais questões que me impulsionaram a pesquisar essa temática foram a curiosidade em conhecer as características dessa literatura, os autores, as obras e saber por que a literatura indígena ainda não é ensinada na escola. Assim, surgiram algumas inquietações: quais são os conceitos de literatura indígena construídos pelos próprios autores indígenas? Quem são os principais autores e quais as obras publicadas? Como é a atuação das mulheres indígenas frente às produções literárias? Quais as singularidades nos poemas escritos por Potiguara e Graúna? Como essas particularidades se constituem como elementos de fortalecimento da identidade e reconhecimento de alteridades?

Pelos autores que citei anteriormente, é possível verificar que existe uma literatura que pode ser denominada de literatura indígena, pois é escrita pelos próprios indígenas. Porém,

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essa literatura ainda não é ensinada nas escolas brasileiras, ou seja, continua sendo ignorada por alunos e professores da área de linguagens. Acredito que esse fato está atrelado à falta de difusão das obras literárias produzidas pelos indígenas, resultando no desconhecimento dessa literatura, e que a Lei 11.645⁄20082, que torna obrigatório o ensino da cultura indígena na sala de aula, não está sendo implementada nas escolas.

Potiguara e Graúna trazem particularidades em sua forma de criar, na linguagem empregada, nas temáticas abordadas, o que faz os seus textos serem constituídos de uma poética extraocidental. Assim, o lugar de fala ocupado por essas autoras é fundamental para singularizar a forma como expressam suas vozes. Foi por esse motivo que, quando selecionei as categorias – o texto como ruptura, o canto como poética, os nomes de etnia como marca de identidade, o autorretrato, o vocativo como convocação, chamado e invocação, o vestígio de fronteira entre a cultura indígena e a não-indígena e o multilinguismo – para leitura dos poemas, levei em consideração que, por trás daqueles versos, havia um sujeito político, objetivo, cultural, social e feminino.

A falta de espaço para a literatura indígena no mercado editorial, nas escolas, na mídia e na academia contribui para que não haja obras de crítica literária. Assim, a bibliografia referente à literatura indígena é muito reduzida – também por ser um fenômeno recente. O que se tem de mais significativo é a produção dos próprios intelectuais indígenas. A crítica literária mais citada é a indígena Graça Graúna, com sua obra Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil (2013). Maria Inês de Almeida (2009) e Janice Thiel (2012) são as duas pesquisadoras não-indígenas mais recorrentes nas pesquisas que analisei.

Somam-se a isso as produções publicadas em revistas acadêmicas.

Apesar de a poesia indígena ser uma temática pouco trabalhada no Brasil, há algumas pesquisas publicadas. Sobre a obra Metade cara, metade máscara (2004), da poeta Potiguara, encontrei quatro dissertações que fazem parte do Programa de Pós-Graduação em Letras, duas dissertações do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem e uma dissertação do Programa de Ciências da Linguagem, além de vários artigos publicados em revista. Graúna,

2 Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena.

§ 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.

§ 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007- 2010/2008/Lei/L11645.htm>. Acesso em: 03 dez. 2019.

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por seu turno, é muito citada pela sua obra teórica, e, diante do que percebi nas pesquisas que realizei, seus poemas ainda não são muito pesquisados na academia.

Logo, tive como compromisso e objetivo desta pesquisa conhecer e examinar ocorrências de literatura indígena, explicitando origens, conceitos, características e principais autores, de modo a oferecer um panorama geral do que se tem a esse respeito nas publicações brasileiras. Além disso, analisar as poéticas das autoras Potiguara e Graúna, realizando um levantamento de mecanismos recorrentes na linguagem poética de ambas, observando de que forma essas categorias podem contribuir para a reafirmação das identidades e alteridades indígenas, por meio do ponto de vista das temáticas abordadas e no que se refere à forma composicional dos poemas, levando-se em conta os aspectos linguísticos, estéticos, históricos, entre outros, para observar as particularidades referentes a seus poemas.

Somou-se a isso contribuir para a desconstrução de estereótipos e dar visibilidade às vozes indígenas, por meio de leituras das produções poéticas e de elementos culturais dos primeiros povos brasileiros, sobretudo na poesia de Potiguara e Graúna, evidenciando os aspectos textuais empregados como marcas de identidades e alteridades.

No que se refere à metodologia utilizada, optei por uma pesquisa ativista e engajada, por acreditar que a ausência da literatura e da poesia indígena na escola está relacionada às condições políticas, sociais e culturais construídas ao longo dos anos num contexto que envolve exclusão, exploração e silenciamento. Considerando os possíveis motivos mencionados sobre a inexistência da literatura indígena na sala de aula, a pesquisa exigiu de mim como pesquisadora uma postura comprometida com a luta pelas transformações sociais.

A indiana Radha D’Sousa, ao tratar da pesquisa ativista, assevera que:

É preciso que a qualidade do conhecimento produzido pela pesquisa seja avaliada em função de seu poder transformador – ou seja, de sua capacidade de transformar as relações injustas e desiguais existentes no mundo tal como ele é hoje, bem como de transformar radicalmente as estruturas geradoras da opressão, da desigualdade e da injustiça (2010, p. 146).

Nesse sentido, acredito que defender o ensino da literatura indígena na sala de aula é uma forma de contribuir para as transformações de uma realidade injusta e desigual. Por meio da difusão do conhecimento das culturas indígenas, de sua diversidade étnica e cosmovisão, é possível diminuir os preconceitos que ainda perduram na sociedade. Assim, assumo o meu lugar de fala: falo como professora de escola pública, atuante na rede municipal e estadual, na cidade de Adustina, na Bahia, onde parte dos estudantes desconhece a existência de indígenas no Brasil e outra parte possui uma visão colonizada, construída por meio de um olhar caricato.

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Entendo que, antes de se iniciar uma pesquisa, deve-se ter clareza em saber para que e para quem o conhecimento está sendo produzido, além de se refletir sobre os efeitos que poderão incidir sobre a realidade social. Deve-se levar em consideração que é muito importante compreender e interpretar o mundo, mas que só isso não basta, é preciso pensar acerca das transformações desse mundo em que o pesquisador precisa se sobrepor como sujeito agente. Isso não significa que todo pesquisador obrigatoriamente deve ter uma postura intervencionista, visto que é a natureza do objeto de estudo escolhido que direciona a essa postura de engajamento, militância, ativismo e compromisso. Tratando-se da literatura indígena brasileira contemporânea, os pesquisadores Leno Francisco Danner, Julie Dorrico e Fernando Danner asseguram que:

Aqui, o sujeito epistemológico-político – que não é apenas o indivíduo, mas sim o grupo, a comunidade, a etnia, o gênero – simplesmente não pode ser percebido e nem pode perceber-se e agir em termos imparciais, impessoais, neutros e formais, tal como estabelece o paradigma normativo como condição da objetividade, da validade e da justificação intersubjetivas (2018, p. 344).

À vista disso, justifico a minha opção por uma pesquisa ativista por tratar do acesso ao conhecimento da literatura dos povos indígenas, um conhecimento que é negado na maioria das salas de aula deste país. Nesse caso, o meu objeto exige uma atitude que não condiz com uma postura de neutralidade e imparcialidade. Preciso deixar transparecer as minhas convicções ético-políticas, justificando de que lado me coloco, pois tanto o objeto quanto o contexto político atual em que se encontra o Brasil requerem uma atitude proativa e de resistência. Esta pesquisa, portanto, é ativista à medida que os conhecimentos construídos contribuem para a valorização e divulgação da cultura e da literatura dos povos ancestrais, por meio de sua divulgação em sala de aula e na academia.

D’Sousa pontua que, “ao denunciar o fosso existente entre a realidade e os ideais socialmente aceites, a pesquisa ativista, não só pode, como consegue, proporcionar conhecimento que é útil à mobilização proativa” (2010, p. 163). Acredito que levar os poemas de duas autoras indígenas para a sala de aula propiciará aos alunos ter acesso a um universo cultural e artístico diferente daqueles a que estão acostumados, enriquecendo o repertório cultural e, mais do que isso, mobilizando-o para defender o respeito, a igualdade e a valorização desses povos.

Quanto ao aporte teórico, busquei uma linha entre os intelectuais, autores e pesquisadores indígenas. Essa escolha se deu por entender esse momento como de conquista

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de autonomia e protagonismo desses povos, contribuindo, assim, para a reverberação de suas vozes no escopo acadêmico, não por uma atitude de radicalidade, mas por entendê-la como coerente com o discurso que perpassa esta pesquisa. Além disso, justifica-se por compreender que a leitura dessas obras me leva até a fonte primeira de uma teoria que ainda está sendo gestada. A leitura dos textos desses intelectuais corrobora a ideia de que essa literatura é produzida por um sujeito carnal, ligado a uma coletividade e consciente dos mecanismos particulares utilizados em seus textos. Dessa forma, Daniel Munduruku (2004, 2006, 2008, 2012a, 2012b, 2013, 2018a, 2018b, 2019), Graça Graúna (2013, 2014, 2015), Cristino Wapichana (2012, 2018) e Márcia Kambeba (2018a, 2018b) foram indispensáveis para a fundamentação dos conceitos de literatura e poesia indígena.

Em outra via, alimentei-me de fontes teóricas das primeiras pesquisadoras de literatura indígena, a saber, Maria Inês de Almeida (2009) e Janice Thiel (2012), levando-se em consideração que suas pesquisas trazem informações e reflexões muito relevantes sobre a literatura indígena, indispensáveis para compreender o contexto de surgimento dessas escrituras, além de nortearem a construção de concepções que serão tratadas no percurso das outras leituras e das análises dos próprios poemas. Os pesquisadores mais recentes que trouxeram conceitos, os quais considero fundamentais para o desenrolar desta pesquisa, foram Rita Olivieri-Godet (2017a, 2017b), Leno Francisco Danner (2018), Julie Dorrico (2018) e Fernando Danner (2018). Por meio da leitura de seus estudos, foi possível ter mais clareza das especificidades dessa literatura.

Para tratar dos conceitos de identidade e alteridade, meu principal subsídio veio da pesquisadora Zilá Bernd (1992), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A escolha de Bernd foi motivada pela forma como são feitas as abordagens sobre a construção das identidades das minorias por meio da literatura, enfatizando-se a presença do outro como fundamental na experiência desse processo dialético. Outro teórico importante foi o sociólogo espanhol Manuel Castells (1999), ao abordar sobre as fases e origens de construções das identidades.

No que se refere à estrutura da dissertação, optei por dividir o trabalho em duas seções, além deste tópico introdutório e do tópico conclusivo. Na seção 2, “Literatura indígena: entre o xamanismo e o ato político”, apresento uma abordagem sobre o surgimento da literatura indígena, aliada ao cerne político-normativo do movimento indígena brasileiro, que se constituía no enfrentamento do paternalismo e na desconstrução dos estereótipos referentes à imagem dos povos indígenas. Além disso, exponho o importante papel

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desenvolvido pelo pioneirismo das mulheres indígenas e faço uma sistematização dos principais conceitos, características e autores dessa literatura.

Na seção 3, “As singularidades do canto indígena potiguara”, explano os principais aspectos da poesia de Potiguara e Graúna. Após leituras dos poemas, alguns elementos da linguagem tornaram-se perceptíveis em sua recorrência, como, por exemplo, o texto como ruptura, já que observei a presença do hibridismo entre a linguagem poética e a prosaica; o

“canto” como poética, assim nomeado pelas autoras – como ficou perceptível nos metapoemas; os nomes de etnia como marcação de identidade, pois foi possível notar a recorrência da nomeação das nações indígenas nos poemas; o autorretrato como estratégia de desconstruir estereótipos e fortalecer as identidades; o vocativo como convocação, chamado e invocação, na tentativa de trazer o leitor para o diálogo; o vestígio de fronteira entre a cultura indígena e a não-indígena, possibilitando a vivência das alteridades; e o multilinguismo, uma vez que há o emprego de diferentes idiomas no mesmo texto. Esses aspectos me levaram à tentativa de compreender e explicar a relação entre a linguagem poética de ambas as autoras e o fortalecimento das identidades e tradições culturais indígenas, além do respeito às alteridades.

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SEÇÃO 2

LITERATURA INDÍGENA: ENTRE O XAMANISMO E O ATO POLÍTICO

Posso ser como você, sem deixar de ser como sou.3

Esta seção tem como propósito traçar um panorama da literatura indígena brasileira contemporânea, examinando os conceitos e as funções elaborados por intelectuais indígenas, enumerando suas características, seus principais autores e as obras. Ademais, pretende identificar mulheres indígenas escritoras com obras publicadas ou não, inferindo sobre a importância da literatura em seu cotidiano.

Literatura indianista? Não. Literatura indigenista? Não. Literatura indígena? Sim. Este texto procura abordar uma literatura produzida por autores indígenas. Eles são sujeitos e protagonistas autoproclamados indígenas. Tematizam e são tematizados. Ouvem e fazem com que suas próprias vozes se propaguem por espaços cada vez mais longínquos. Constroem seu presente por meio da retomada de suas memórias ancestrais e de uma opção decolonial, afinal de contas, “hoje já há uma forte comunidade intelectual indígena que, entre muitos outros aspectos da vida e da política, tem algo como muito claro: seus direitos epistêmicos e não somente seus direitos a reivindicar econômica, política e culturalmente” (MIGNOLO, 2008, p. 314).

Há uma enorme diferença entre ser autor de um texto ou ser um porta-voz. Quando se lê um texto produzido por um intermediário dos povos indígenas, não se tem acesso direto à voz dos povos originários, pois essa criação perpassa as subjetividades de quem a colocou no papel. Corre-se o risco de estar diante de uma produção que não foi fiel à fonte original, e, muitas vezes, esse fator não é causado por má intenção, mas por dificuldade de expor textualmente as subjetividades do outro. Diferentemente de ter acesso a uma literatura assinada por um indígena, é a sua voz que está presente ali, exercendo, dessa forma, o seu direito à autoexpressão. Só falando por si mesmos, sem a mediação de um porta-voz, os povos originários poderão expressar suas pertenças ancestrais e desconstruir os estereótipos que foram criados e se conservam até hoje pelos primeiros cronistas que os descreveram por meio de uma visão eurocêntrica (DORRICO, 2018).

Ao mencionar a perspectiva eurocêntrica, trago como base teórica o estudioso Aníbal Quijano, tendo em vista que ele a compreende como um processo “que implicou no longo prazo uma colonização das perspectivas cognitivas, dos modos de produzir ou outorgar

3 Mote adotado pelas lideranças indígenas na década de 70 (MUNDURUKU, 2012a).

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sentido aos resultados da experiência material ou intersubjetiva, do imaginário, do universo de relações intersubjetivas do mundo; em suma, da cultura” (2006, p. 121). Portanto, deve-se levar em conta que a leitura do presente texto apresentará concepções distintas daquilo que é denominado pela perspectiva eurocêntrica, acreditando que outras formas de pensamento devem coexistir, serem compreendidas, valorizadas e levadas em consideração. Também devem conviver outras maneiras de perceber o mundo, porquanto a cosmovisão ocidental utiliza apenas o sentido da visão, olhos que enxergam indígenas, negros e negras como os Outros, ignorando o que realmente interessa: olhar as pessoas percebendo-as com todos os sentidos, considerando não a cor da pele, mas a sua humanidade (AKOTIRENE, 2019).

Ao investigar as temáticas culturais indígenas em alguns trabalhos desenvolvidos por pesquisadores, noto que foram pensadas numa perspectiva exógena, uma vez que os estudos partem de leituras que não acessam o conteúdo original, e sim a interpretação, as impressões de um sujeito que não vive a realidade do que escreve. Assim, verifica-se que há muitas pesquisas que enfatizam muito mais os autores indianistas e indigenistas, enquanto as obras indígenas aparecem apenas como ilustração.

Afinal, o que vem a ser literatura indígena? É sinal e ao mesmo tempo instrumento de existência, re-existência, resistência e persistência. É um modo de dizer à sociedade brasileira que os indígenas não são seres do passado, não vivem congelados no tempo e na história. É, acima de tudo, marcar sua presença e sua contemporaneidade por meio da voz-palavra. Essa literatura é a confirmação de que existem, sim, indígenas neste país e que eles devem ser ouvidos, vistos, lidos e respeitados.

Logo, é importante destacar que a poética que constitui a literatura indígena possui um caráter extraocidental, podendo ser chamada de etnopoética, conforme afirma a pesquisadora Thiel (2012), por possuir particularidades e especificidades próprias. É oriunda das memórias ancestrais dos povos originários e se corporifica em forma de canto, dança, grafismo, narrativas orais e em textos escritos. E, como elucida Rothenberg, trata-se de uma poética que inclui todas as formas:

[...] pictografias e hieróglifos, formas aborígenes de poesia visual e concreta, pinturas de areia e cartografia da terra, linguagem gestual e de sinais, sistemas numéricos e numerologia, sinais divinatórios feitos pelo homem ou lidos (como uma poética de formas naturais) nos rastros de animais ou de estrelas pelo céu noturno (2006, p. 115).

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Dessa forma, não possui nenhum compromisso com a rigidez das produções ocidentais. Levando-se em conta esse sobreaviso, farei uma ressignificação de conceitos, tendo como aporte teórico os próprios autores indígenas e pesquisadores dessa área.

2.1 O que dizem os escritores indígenas sobre a literatura indígena?

Neste tópico, farei uma abordagem sobre as concepções de literatura indígena pelos próprios indígenas, pois acredito que são eles as maiores autoridades epistêmicas para teorizar sobre essa literatura, evidenciando que têm o domínio do fazer literário.

Para começo de história, o termo literatura indígena é o mais utilizado, porém não é o único. Há outras formas de se denominar esse conjunto de textos, por exemplo: o escritor Olívio Jekupé utiliza literatura nativa, enquanto Yaguaré Yamã emprega a expressão literatura da floresta. Neste trabalho, o leitor observará que optei por utilizar literatura indígena e literatura nativa, sendo que são os mais recorrentes nas obras dos autores pesquisados.

Na obra Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil (2013), Graúna define a literatura como um elemento de sobrevivência indispensável para os povos indígenas, como é possível constatar neste fragmento:

A literatura indígena contemporânea é um lugar utópico (de sobrevivência), uma variante do épico tecido pela oralidade; um lugar de confluência de vozes silenciadas e exiladas (escritas) ao longo de mais de 500 anos de colonização. Enraizada nas origens, a literatura indígena contemporânea vem se preservando na auto-história de seus autores e autoras e na recepção de um público leitor diferenciado, isto é, uma minoria que semeia outras leituras possíveis no universo de poemas e prosas autóctones (GRAÚNA, 2013, p. 15).

Tal literatura é preservada desde os 500 anos de colonização nos rituais vivenciados por esses povos. Ou seja, a literatura indígena que começa a ser publicada na década de 1990 preexistia oralmente, desde tempos imemoriais, como também assegura Kambeba, quando afirma que “a literatura na vida dos povos sempre se fez presente, a primeira forma foi através das rodas de conversa ao pé de uma árvore e sempre ao cair da noite” (2018a, p. 41). E sua presença se manifesta de várias formas, não apenas por meio dos textos escritos – essa é uma forma mais recente –, como pensa a perspectiva ocidental, mas por meio das narrativas orais que se desenrolam ao redor da fogueira ou mesmo no caminho da roça, das pinturas corporais, dos cantos, das danças, da fabricação das cerâmicas, dos rituais tradicionais e até mesmo do

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modo como moldam o barro para construir suas habitações. Assim, a literatura indígena possui suas raízes fincadas nas memórias ancestrais de cada povo, nação ou etnia.

A pesquisadora irlandesa Ruth Finnegan (2016) alega que atribuir aos ancestrais a autoria daquilo que se produz é uma estratégia de distanciamento artístico presente na tradição oral. Para a autora, “a ênfase na autoria - ‘nós aprendemos isso por meio dos nossos ancestrais’ - pode ser tomada não tanto como uma atribuição literal de origem, mas como outra maneira de elevar a composição acima de um nível comum de composição”

(FINNEGAN, 2016, p. 76). Ou seja, trata-se de atribuir uma autoridade maior à voz poética ou narrativa.

Outro autor que concebe a literatura indígena a partir da relação com as memórias ancestrais é Munduruku, que explica, no prefácio da sua obra Um estranho sonho de futuro, que:

[...] o jeito de narrar esses acontecimentos é como memória buscando refletir os fatos. Algumas vezes preferi colocar ponto de vista ou opinião numa tentativa de comparar a sociedade indígena com a não-indígena, mostrando as qualidades e os defeitos de uma e de outra. Sei que algumas vezes fui parcial, favorável à sociedade indígena. Espero que entendam. Lembrem que quem narra os fatos é um indígena, portanto é a partir dessa ótica que deve ser lido esse pequeno livro (2006, p. 15).

O autor deixa explícito para o leitor o lugar de onde fala, justificando ao emitir uma opinião que é muitas vezes propícia à sociedade indígena. Ele faz questão de evidenciar, por meio de seu discurso, que não consegue manter uma postura de neutralidade quando a realidade cobra uma atitude de comprometimento com a sociedade indígena.

Munduruku (2013) afirma que a literatura indígena está para além dos enquadramentos da escrita e de conceitos ocidentais e se constitui como grito, choro, clamor, batidas ritmadas de pés no chão, sons da floresta, silêncio, meditação, adornos, cantigas e lembranças. É também a forma de esses povos atualizarem suas lutas, clamarem por solidariedade, agradecerem aos ancestrais e se comprometerem com o tempo presente, levando para a sociedade um ensinamento de que é preciso proteger a natureza da ambição dos gananciosos.

Na concepção de Jekupé, a literatura é um instrumento de luta a favor da causa indígena, como é possível notar quando ele afirma: “eu vejo a escrita como uma grande arma e nós indígenas devemos usar essa arma do branco em nosso favor” (2018, p. 47). Por esse ângulo, os povos indígenas podem, por meio da literatura, desenvolver várias ações, tais

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como: denunciar as violências cometidas contra eles, reivindicar os direitos garantidos pelas leis e negados na prática, difundir as suas culturas e narrativas, podendo, assim, desfazer os vários equívocos no que diz respeito a suas identidades e diversidades étnicas.

O pensamento do escritor indígena Ely Ribeiro de Souza, mais conhecido como Ely Macuxi, não se distancia da ideia de Jekupé, uma vez que, por meio da literatura, é possível se contrapor às políticas que violam os direitos dos povos originários e, também, reclamar políticas de reparação, como é possível notar neste excerto:

Essa produção constitui-se numa literatura – poesia-práxis – usada para confrontar e reagir às ações regionais: grileiros, mineradores, pecuaristas invasores de seus territórios. Uma literatura que tem possibilitado atualização de nossos códigos culturais, construindo novas compreensões e novos enredos, possibilitando a presença de muitos de nossos jovens nos três níveis de ensino, desenvolvendo pesquisas, dissertações e teses sobre nossas culturas, revelando a riqueza de nossas tradições, filosofias e ciências que orientam nosso estar no mundo; literatura essa que apresenta uma cultura indígena viva, perene, criadora, transformadora e impulsionadora para os novos desafios que o mundo hoje impõe aos povos indígenas (MACUXI, 2018, p. 51-52).

Nesse âmbito, Macuxi (2018) compreende a criação literária como uma atividade que está ligada às problemáticas sociais e às necessidades dos povos indígenas. Sendo assim, não se afasta das lutas presentes no cotidiano, pelo contrário, alimenta-se dessa sensação de que é necessário enfrentar determinadas situações com as ferramentas que estão à sua disposição. E, assim, troca-se o arco e a flecha pela caneta e pelo teclado dos computadores. Com isso, a palavra escrita e a voz indígena são potencializadas como suas principais armas.

Outro ponto importante levantado por esse autor é a atualização dos seus códigos culturais. Um dos mitos que permeiam o universo não-indígena é aquele que mantém o equívoco de que a cultura desses povos permanece congelada, e, se é modificada, é porque foram aculturados. Esse pensamento não leva em consideração o conhecimento antropológico, ao afirmar que nenhuma cultura permanece estática por todo o tempo, sempre há transformações.

Por essa mesma via segue o escritor Edson Kayapó, assinalando o seguinte: “Nossa literatura é um instrumento de defesa e de justiça junto aos nossos povos, é também uma produção que colabora de forma efetiva para o fortalecimento e valorização de nosso jeito de ser, além de ser lição de encantamento para o mundo em crise” (2013, p. 30). Como se pode notar pelas palavras desse autor, a literatura que encoraja a luta pela defesa dos direitos é a mesma que revigora as identidades por meio da valorização das culturas e tradições. Percebe-

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se que o indígena concebe suas produções literárias como uma contribuição para que a sociedade possa aproveitar ensinamentos e para ter uma existência melhor, vivendo com simplicidade e em harmonia com a natureza. A leitura desses textos traz uma concepção cosmológica que se contrapõe a esse universo de ganância, consumo, competição e exploração, o que torna as pessoas “doentes”, cada vez mais infelizes e insatisfeitas com o que possuem, com o seu trabalho e com a sua vida de um modo geral.

Wapichana chama atenção para outros elementos presentes nos textos de autoria indígena, como a espiritualidade e a autoestima:

Então, a literatura indígena ela marca um tipo de literatura, de fato, porque ela tem uma linguagem própria, tem muita espiritualidade presente, você reconhece uma literatura que é escrita por um indígena e uma literatura que não é escrita por um indígena. Ela traz de dentro das sociedades indígenas esse conhecimento, aquela visão daquele povo. É para conhecimento da sociedade brasileira e quem sabe uma aproximação de fato de respeito com essas nações primárias. Para a gente, eu como autor, meu povo, que reflete o que eu faço lá, é primeiro autoestima, isso aumenta nossa autoestima, depois a gente tira aquela coisa do outro escrever pela gente, então é nosso próprio olhar, a nossa própria vivência, é nossa própria espiritualidade, nosso jeito de ser no mundo, de viver no mundo (2018, p. 77).

A espiritualidade é compreendida como um traço que diferencia uma literatura indígena da literatura não-indígena. Essa marca se destaca principalmente quando são evocadas nos textos as entidades sagradas que fazem parte da cosmogonia dessas nações, mas não é apenas isso. Às vezes, ao declamar um poema nativo ou ouvir alguém declamando, tem- se a nítida impressão de se estar diante de uma prece, visto que a voz poética deixa explícita a sua súplica por mais respeito à vida das outras pessoas e da natureza, por mais solidariedade, por mais humanidade, por mais resistência à brutalidade e à imposição de um sistema que fere e mata, por mais amor entre os seres, pela mãe terra e pela mãe natureza.

Nessas circunstâncias, a literatura é utilizada pelos indígenas como uma via de aproximação para com a sociedade não-indígena, guiados pelo desejo de difundir o pensamento e o conhecimento da cosmologia dos povos originários. Para uma parcela da sociedade que tem a curiosidade de conhecer de verdade essas culturas silenciadas e invisibilizadas, existe a oportunidade de se promover essa aproximação por meio dos textos literários, enquanto os indígenas podem trazer seus recados e ensinamentos, fortalecendo o sentimento de autoestima por poderem falar de si e por si mesmos.

Há um pensamento importante da poeta Rosi Waikhon, do povo Pirá-tapuya: “[...] a nossa literatura é um pouco diferente do que é a literatura no Brasil, ou no mundo, porque a

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gente considera literatura pintura, conto, oralidade, poesia, performance, dança, adereço, tudo está na nossa literatura, tudo isso faz parte [...]” (WAIKHON, 2012, p. 72). Nesse trecho, verifica-se que o conceito de literatura para os povos indígenas possui uma dimensão bem mais ampla da concepção de literatura numa perspectiva ocidental, indo muito mais além da ideia do texto impresso numa folha de papel, com características comuns a uma corrente de pensamentos que possibilita ser enquadrada em uma escola literária. Levando-se em conta esse aspecto de diferenciação, é comum que haja um estranhamento por parte do leitor ao se deparar com os textos que compõem a literatura dos povos originários. Não me refiro a um estranhamento no sentido de repulsão, mas no sentido do espanto diante de algo novo, podendo produzir uma certa curiosidade.

A poeta Kambeba entende a literatura indígena como “um instrumento de crítica e de compreensão de uma cultura que é receptiva e a utilizam para dar visibilidade à sua luta e resistência [...]” (2018a, p. 40). Mas não é apenas uma ferramenta política, é também de práxis pedagógica que visa transformar as narrativas orais, contadas pelos sábios anciãos, em livros impressos que devem ser utilizados nas escolas indígenas, passando esses conhecimentos tradicionais da cosmogonia indígena para as gerações mais novas e evitando que se percam com a partida desses parentes guardiões das memórias ancestrais.

Em suma, a literatura nativa é um mecanismo de crítica social, resistência cultural e luta política, sendo também dispositivo de enfrentamento, descatequização, autoafirmação, autoestima, difusão e atualização da cultura comprometido com as causas indígenas (DANNER; DORRICO; DANNER, 2018).

Percebo a literatura indígena, portanto, como um caminho que possibilita ao leitor o (re)encontro de sua humanidade por meio do fortalecimento das espiritualidades, a compreender o seu pertencimento à natureza em oposição à concepção que vê os elementos naturais subordinados aos seres humanos, de modo a levá-lo a ouvir, enxergar, valorizar, respeitar e compreender as alteridades.

2.2 Historicização da literatura indígena no Brasil

As manifestações artísticas entre os povos indígenas é algo que sempre fez parte do cotidiano, estão plantadas no chão da aldeia, assim também a literatura no sentido mais amplo se manifesta por meio dos seus rituais tradicionais, por meio do canto, da dança, dos grafismos, das orações, das narrativas pela tradição oral e escrita.Desde que existem povos indígenas existe literatura, como assevera Munduruku: “a literatura indígena [...] nasceu

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juntamente com o primeiro sopro vital e criador” (2012a, p. 22). No entanto, a literatura indígena brasileira contemporânea escrita começa a ter visibilidade e divulgação na década de 90 com as primeiras publicações de obras de autoria indígena, como afirma Thiel (2012).

A importância de historicizar a literatura nativa brasileira se dá para que a sociedade compreenda que suas origens são, desde tempos imemoriais, ligadas a uma tradição oral.

Mesmo antes de a escrita ser inserida nas comunidades tradicionais, já existiam diversas manifestações literárias, como é possível compreender pela explicação de Finnegan de que

“as comunidades não-letradas têm, por exemplo, o que tem sido descrito como lírica, panegírico poético, canções de amor, narrativas em prosa ou drama” (2016, p. 70).

Outro motivo que considero pertinente para essa historicização é perceber a literatura como um elemento inerente às culturas desses povos, o que de certa forma acaba lhes concedendo autoridade nesse campo artístico. Não dá para pensar a literatura nativa como um movimento recente, ignorando sua existência oral, a qual data de muitos séculos atrás. Cabe aqui registrar que essa literatura indígena contemporânea trata do seu formato físico ocidental, de livro impresso, surgido nas duas últimas décadas do século XX, após a ocorrência do fenômeno da escrita propriamente alfabética, como resultado dos direitos adquiridos na Constituição de 1988.

Todavia, não dá para ignorar o que está subjacente ao conceito de literaturas de tradição oral para que seja possível entender o motivo dessa falta de reconhecimento por parte do discurso oficial. Ria Lemaire, ao abordar a tentativa de silenciamento das mulheres e da voz masculina da oralidade na literatura medieval, declara que:

À política da opressão e perseguição concretas, fatuais dos povos das pequenas nações, estará associada, no século XX, uma política intelectual e educacional sistemática, uma “política do espírito” que desde o ensino primário educa as crianças para elas admirarem e aceitarem respeitosamente a cultura escrita e livresca alheia que lhes traz o ensino formal, para desprezarem a cultura dita ¨popular¨ dos pais, dos avós e vizinhos da sua comunidade de origem, para ter vergonha da língua, das tradições, da cultura e literatura deles: uma violência simbólica, aliada e cúmplice da violência política (LEMAIRE, 2015, p. 13).

É, pois, a tentativa de asfixiar as vozes que representam uma tradição múltipla, resultado das experiências vividas, das sabedorias e dos conhecimentos oriundos das comunidades tradicionais que são desconsiderados pelo mundo acadêmico oficial. A história das literaturas de tradição oral está atrelada a uma realidade marginal, opressora e de desvalorização. É com a revisão da historiografia medieval realizada por alguns pesquisadores

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corajosos que se torna possível reabilitar a voz humana de mulheres e homens pertencentes à

“cultura popular”.

O movimento indígena que se fortaleceu na década de 70 foi indispensável para que, no ano de 1990, fosse possível o surgimento das primeiras publicações de autores indígenas, como assegura Munduruku: “o momento histórico da literatura nativa brasileira se confunde com o surgimento do movimento político que mobilizou mentes e corações em torno da sobrevivência física e espiritual de nossa gente” (2012a, p. 22).

Para que houvesse reconhecimento dessas produções literárias, foi necessário dominar e adotar as ferramentas utilizadas pelos brancos: a escrita. Essas publicações são marca da dinâmica cultural indígena, assim como todas as culturas, para sobreviverem, precisam se atualizar. Com a cultura indígena não é diferente, pois, “na sua dinâmica, a cultura precisa se atualizar para manter-se permanentemente nova, útil e renovada” (MUNDURUKU, 2012a, p.

20). A organização dos intelectuais em torno da causa indígena os encorajou a se assumirem como autores, fazendo da literatura um poderoso instrumento de autoexpressão identitária.

De acordo com a crítica literária Graúna (2013), a produção literária indígena está situada em dois momentos distintos: o primeiro momento é denominado “período clássico”, que se refere à tradição oral e coletiva, desde tempos imemoriais até 1970; e o segundo momento é chamado de “período contemporâneo”, referente à tradição escrita, individual e coletiva, sendo gestado na década de 70 e surgindo na forma impressa com os primeiros livros publicados de 1990 até os dias atuais.

A literatura indígena contemporânea no Brasil foi inaugurada em 1975 com o poema

“Identidade Indígena”, da poeta Potiguara. Foi influenciada pela poesia marginal de 1970, e ainda mais pelo movimento indígena que surgiu na mesma época, incentivando e dando suporte aos povos originários para quebrarem o silêncio e a invisibilidade.

Sendo assim, é na década de 90 que a literatura nativa escrita surge com mais fôlego, gestada e amadurecida no seio desse movimento: em 1994, Kaká Werá publica seu livro Todas as vezes que dissemos adeus, tornando-se a primeira obra impressa de produção individual constituinte da Literatura indígena contemporânea no Brasil; em 1996, Munduruku publica seu livro Histórias de índio; em 1999, a potiguara Graúna publica seu primeiro livro de poemas, Canto Mestizo.

Vale ressaltar que não compreendo a divisão da literatura nativa em períodos pelos estudiosos como uma forma de engessá-la em moldes ocidentais, mas como uma estratégia de historicizar a produção literária, levando em consideração as diferentes fases vividas em momentos distintos, a fim de, com isso, facilitar a compreensão de sua historicidade.

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2.3 Funções da literatura indígena

Ao tratar sobre as funções da literatura de tradição oral, Finnegan (2006) afirma que a maioria é considerada de ordem prática, porém varia de lugar para lugar, de época para época e de cultura para cultura. Mesmo numa determinada sociedade, esses objetivos ainda possuem uma grande variação. É notável a influência da tradição oral na concepção dos escritores indígenas, pois estes compreendem a literatura como uma letra viva que pode impulsionar ações extremamente importantes, por isso a ela se atribui um caráter funcional, uma vez que tem como propósito a criação de textos que venham a desempenhar papéis de reconexão com as ancestralidades, afirmação de identidades, resgate e fortalecimento cultural, difusão das diversidades étnicas, denúncia de situações de violência e revisão da história nacional.

No prefácio do seu livro Histórias que eu vivi e gosto de contar (2006), o escritor Munduruku declara seu desejo com a escritura daquela obra:

Este livro também é um desejo. É o desejo de acordar o povo brasileiro para suas raízes ancestrais. É o desejo de trazer para o coração das crianças e dos jovens a mágica da fé em seres invisíveis e encantados que habitam seus sonhos, seus jogos e suas brincadeiras. É o desejo de lhes dizer que tudo isso é verdadeiro. Que a verdade está principalmente em coisas que nossos olhos não veem (MUNDURUKU, 2006, p. 9).

Entendo esse desejo como um papel que o livro referido deve desempenhar para seus leitores. Por meio do livro, Munduruku dialoga com a sociedade brasileira, a fim de estimular uma reflexão sobre suas ancestralidades, buscar conhecer suas raízes e desenvolver o sentimento de valorização pela sua origem. Ademais, às crianças e aos jovens se dirige para reascender sua crença nos seres invisíveis, que fazem parte do seu mundo mágico, vivenciando suas subjetividades de modo a reconhecer uma verdade que está para além daquilo que se percebe como realidade objetiva. Logo, essa literatura tem um papel de fazer o leitor refletir sobre suas concepções de mundo e vivências das espiritualidades.

Ainda conforme salienta Munduruku, “O papel da literatura indígena é, portanto, ser portadora da boa notícia do (re)encontro. Ela não destrói a memória na medida em que a reforça e acrescenta ao repertório tradicional outros acontecimentos e fatos que atualizam o pensar ancestral” (2018a, p. 83). O autor destaca como função da literatura nativa promover o reencontro com as memórias ancestrais e atualizar o repertório cultural, levando-se em consideração o caráter dinâmico das culturas e da contemporaneidade das tradições indígenas,

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e isso em oposição a uma visão que compreende a cultura indígena como manifestações estagnadas no século XVI.

Pensando numa função literária mais ligada à espiritualidade, o pesquisador Antônio Risério concebe a poesia dos povos araweté como uma forma de ligação direta com os deuses, conforme fragmento abaixo:

Levada pelos deuses e cultivada pelos humanos, a palavra-canto existe assim na terra como no céu. E como interveio no divórcio primordial, fraturando a crosta terrestre, é também a via de reconexão desses dois mundos. Pelo canto, deuses e mortos descem à terra, falando aos humanos. Pelo canto, os humanos se comunicam com o outro mundo. A palavra-canto é a via de acesso araweté às paragens sobrenaturais. Religa ou ressolidariza o que um dia se rompeu para gerar o cosmos como o conhecemos. Esta é a altíssima função da produção poético-musical na sociedade araweté (RISÉRIO, 2018, p. 122-126).

Nessa concepção, a poesia araweté, nomeada aqui como palavra-canto, tem uma função espiritual de religar dois mundos diferentes: o céu e a terra. Os deuses dialogam com os humanos por meio dessas poesias, e os humanos podem acessar o mundo sobrenatural por meio da palavra-canto. Por esse viés, é possível perceber a importância dos rituais de criação artística para os povos indígenas, o que vai muito além da elaboração de uma narrativa, de recontar uma história que se ouviu dos mais velhos. O poeta experimenta desenvolver a função de mediar a comunicação entre os humanos e os deuses e se permite ser a voz que transmite as palavras sagradas do outro mundo.

Na mesma perspectiva que concebe a poesia como canto, Charles Bicalho declara que

“quando, em ritual, os Maxakali recitam ou cantam seus yãmîys estão presentificando seus deuses, e com eles se relacionando, conversando, recebendo ensinamentos, aprendendo a tradição e também, por que não, a lidar com o novo” (BICALHO, 2018, p. 190). Recitar um poema ou cantar uma música é uma maneira de homenagear os deuses e fortalecer as tradições na cultura maxakali. Para esses povos, a poesia possui uma função que é de relação direta com os deuses, assim como os araweté.

Ainda sobre a produção poética dos povos maxakali, Almeida alega que:

Ao escrever poemas, eles chegam a captar uma porção de sabedoria, e do espírito, dos antigos, porém, pelo fato de fazerem por um meio alienígena — a escrita — resulta na criação de uma nova linguagem e de saberes inusitados. Pode-se chamar tal fenômeno de criação poética, pela qual as comunidades têm entrado em relação e conseguido sobreviver enquanto signos, partes de uma galáxia (2009, p. 100).

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