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Diante dos dados do Mapa da Violência (WAISELFISZ, 2016), das falas do estudante Bernardo Monteiro e do promotor Anderson Andrade, por que homens, jovens e negros são as maiores vítimas dos homicídios no Brasil? Para compreender esse fenômeno sociológico, o movimento negro brasileiro cunhou o termo genocídio da juventude negra. Nascimento (1978) escreve a obra O genocídio do negro brasileiro21 na qual conceitua o genocídio de duas formas, quais sejam:

21 Nessa obra, Abdias Nascimento denuncia no Colóquio do Segundo Festival Mundial de Artes e Cultura Negra,

ocorrido em Lagos, na Nigéria, no período de 15/01/77 a 12/02/77, a rejeição do artigo Racial Democracy in

Brazil: Mith or Reality, afirmando que as políticas do governo militar não queriam que ele dissesse no exterior

que não havia uma democracia racial no Brasil. Nesse livro, Abdias propõe-se a refutar a tese de Gilberto Freyre, na obra Casa Grande Senzala, discorrendo sobre a violência sofrida pelos negros no país.

1) Genocídio: o uso de medidas deliberadas e sistemáticas (como morte, injúria corporal e mental, impossíveis condições de vida, prevenção de nascimentos), calculadas para a exterminação de um grupo racial, político ou cultural, ou para destruir a língua, a religião ou a cultura de um grupo.

2) Genocídio: Recusa do direito de existência a grupos humanos inteiros, pela exterminação de seus indivíduos, desintegração de suas instituições políticas, sociais, culturais, linguísticas e de seus sentimentos nacionais e religiosos. Ex.: perseguição hitlerista aos judeus, segregação racial, etc.

Nascimento (1978) discorre, nessa obra, que o negro no Brasil passou por esses dois estágios de genocídio. A violência colonial, impetrada durante o processo de dominação portuguesa usou medidas deliberadas e sistemáticas para a exploração até a fadiga dos povos negros submetidos à escravidão. Estupros, castigos, açoites e assassinatos são ações cometidas para dominar o outro, no caso, os negros. Junta-se isso à dissolução das famílias e à solvência das línguas, culturas, organizações sociais, conhecimentos tecnológicos, de todos os povos negros que se estabeleceram na colônia.

Fanon (1961), por sua vez, influencia a obra de Nascimento (1978), quando fala que o processo da violência colonial desumaniza o colonizado, sendo este é tratado como animal.

Com o trabalho forçado, dá-se o contrário: nada de contrato; além disso, é preciso intimidar; patenteia-se portanto a opressão. Nossos soldados no ultramar rechaçam o universalismo metropolitano, aplicam ao gênero humano o numerus clausus; uma vez que ninguém pode sem crime espoliar seu semelhante, escravizá-Io ou matá-Io, eles dão por assente que o colonizado não é o semelhante do homem. Nossa tropa de choque recebeu a missão de transformar 'essa certeza abstrata. Em realidade: a ordem é rebaixar os habitantes do território anexado ao nível do macaco superior para justificar que o, colono os trate como bestas de carga. A violência colonial não tem somente o objetivo de garantir o respeito desses homens subjugados; procura desumanizá-Ios (SARTRE apud FANON, 1961, p. 9).

Nascimento (1978) mostra que esse processo de desumanização criou a ideia do português como um colonizador benevolente não problematizando a exploração sexual dos corpos das mulheres negras e a prática de embranquecimento como uma estratégia de genocídio dos povos negros no Brasil. Retomando, mais uma vez Fanon (2008), agora no livro Pele Negra, Máscaras Brancas, o que quer o homem negro? Ele quer ser branco, porque branco é o Homem. O processo de colonização extraiu a humanidade do negro.

Que quer o homem negro? Mesmo expondo-me ao ressentimento de meus irmãos de cor, direi que o negro não é um homem. Há uma zona de não-ser, uma região extraordinariamente estéril e árida, uma rampa essencialmente despojada, onde um autêntico ressurgimento pode acontecer. A maioria dos negros não desfruta do benefício de realizar esta descida aos verdadeiros Infernos. O homem não é apenas possibilidade de recomeço, de negação. Se é verdade que a consciência é atividade transcendental, devemos saber também que essa transcendência é assolada pelo problema do amor e da compreensão. O homem é um SIM vibrando com as harmonias cósmicas. Desenraizado, disperso, confuso, condenado a ver se dissolverem, uma após as outras, as verdades que elaborou (FANON, 2008, p. 26).

O genocídio do povo negro por meio dessa desumanização foi uma estratégia criada no processo de colonização. A esse respeito, Quijano (2005) aponta, que antes da colonização das Américas, os grupos não eram hierarquizados por raça, gênero e classe. A hipótese é que as diferenças fenotípicas entre conquistadores e conquistados tenham sido utilizadas para criar diferenciais entre os grupos. Dentro dessa perspectiva:

A formação de relações sociais fundadas nessa ideia, produziu na América identidades sociais historicamente novas: índios, negros e mestiços, e redefiniu outras. Assim, termos como espanhol e português, e mais tarde europeu, que até então indicavam apenas procedência geográfica ou país de origem, desde então adquiriram também, em relação às novas identidades, uma conotação racial. E na medida em que as relações sociais que se estavam configurando eram relações de dominação, tais identidades foram associadas às hierarquias, lugares e papéis sociais correspondentes, com constitutivas delas, e, consequentemente, ao padrão de dominação que se impunha. Em outras palavras, raça e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos de classificação social básica da população (QUIJANO, 2005, p. 202).

A expansão do colonialismo europeu no resto do mundo, a partir do século XIX, empreendeu a expansão do eurocentrismo e a naturalização das relações de colônias e de superioridade de uma raça em detrimento de outra, normatizando o modelo europeu. Nesse sentido, Quijano (2005) corrobora que:

Historicamente, isso significou uma nova maneira de legitimar as já antigas ideias e práticas de relações de superioridade/inferioridade entre dominantes e dominados. Desde então demonstrou ser o mais eficaz e durável instrumento de dominação social universal, pois dele passou a depender outro igualmente universal, no entanto mais antigo, o intersexual ou de gênero: os povos conquistados e dominados foram postos numa situação natural de inferioridade, e consequentemente também seus traços fenotípicos, bem como suas descobertas mentais e culturais. Desse modo, raça converteu-se no primeiro critério fundamental para a distribuição da população mundial nos níveis, lugares e papéis na estrutura de poder da nova sociedade. Em outras palavras, no modo básico de classificação social universal da população mundial (QUIJANO, 2005, p. 203).

A particularidade no processo de colonização lusotropical será a mestiçagem. A esse respeito, Boaventura de Souza Santos (2003) destaca que isso se deve à forma da cultura portuguesa ser fronteiriça, ou seja, há uma forte heterogeneidade interna porque os lusitanos historicamente tiveram contato com os mouros (por conta da ocupação árabe na Idade Média) e com o norte da África. O fato de eles não terem introjetado que o cruzamento entre raças era algo ruim explica a relação entre colonizador e colonizado tanto nas colônias portuguesas como no Brasil.

Para os críticos pós-coloniais anglo-saxões a cor da pele é um limite incontornável às práticas de imitação e assimilação porque, consoante os casos, ou nega por fora da

enunciação o que a enunciação afirma ou então afirma o que ela nega. No caso do pós-colonialismo de língua oficial portuguesa há que contar com a ambivalência e a hibridação na própria cor da pele, ou seja, o espaço-entre, a zona intelectual que o crítico pós-colonial reivindica para si, encarna no mulato e na mulata como corpo e zona corporal.

O desejo do outro em que Bhabha funda a ambivalência da representação do colonizador não é um artefato psicanalítico nem é duplicado pela linguagem: é físico, criador, multiplica-se em criaturas. A miscigenação não é a consequência da ausência de racismo, como pretende a razão lusocolonialista ou lusotropicalista, mas certamente é a causa de um racismo de tipo diferente. Por isso, também a existência da ambivalência ou hibridação é trivial no contexto do pós-colonialismo português (SANTOS, 2003, p. 27).

A hierarquização dos grupos, a opressão, a desumanização dos corpos negros, a violência colonial, o desejo do negro de ser branco, são ações que fazem com que, como diz Santos (2003), o racismo no Brasil seja de um tipo diferente. Se o racismo é diferente, o genocídio contemporâneo também.

Retomando a alcunha usada pelo movimento negro, ao denunciar a alta letalidade de jovens negros, de genocídio da juventude negra, Ramos (2014) faz um levantamento dos vários estudos que há na atualidade sobre essa temática.

Sendo basicamente um crime de Estado, o genocídio tem sido tema de estudo em todo o mundo. Além dos estudos sobre a Alemanha e a morte de mais de oito milhões de judeus (GALLE, 2011), existem outros fenômenos pesquisados mundo afora. Savelsberg (2007) debate as teorias concernentes aos desdobramentos que as respostas legais promovem sobre a memória coletiva de populações que passaram por violações maciças dos direitos humanos, tomando como exemplo a cobertura das Guerras do Vietnã e dos Bálcãs pelo The New York Times e como foram retratadas em livros de história dos Estados Unidos.

Vito, Gill e Short (2009), adotando uma perspectiva de gênero, analisam as implicações teóricas da tipificação do estupro como crime internacional de genocídio, argumentando sobre a necessidade de uma análise que dê suporte a criação de marcos mais claros para tratar da questão do estupro. Power (2004) explora o tema do genocídio como um ponto de tensão da política externa americana a partir de vários outros eventos pelo mundo, como o massacre dos armênios pelos turcos, o Holocausto, o Khmer Vermelho no Camboja, o extermínio dos curdos no Iraque e as guerras étnicas na ex-Iugoslávia e em Ruanda. Horn (2005) estuda o processo de reforma agrária e os direitos sobre a terra na Namíbia e o genocídio dos Hererós (no início do século XX), fazendo uma comparação com a luta do ativista Eddie Mabo pelos direitos dos nativos australianos, nas Ilhas Murray. 87 (RAMOS, 2014, p. 86).

Ramos (2014) defende que o uso do termo genocídio por parte do movimento negro é um ato político que difere do uso do Abdias do Nascimento e dos estudos sobre os vários genocídios que ocorreram no mundo.

De modo mais difuso, a eliminação física do povo negro foi tematizada no livro O

genocídio do negro brasileiro, de Abdias do Nascimento (1978), no qual o autor

destacava o processo de miscigenação como um processo de embranquecimento do país, de modo a eliminar completamente a população negra deste território. Nos últimos 12 anos, a abordagem do problema da violência contra a população negra ganhou uma faceta também geracional com campanhas nas quais os jovens negros

eram destacados como as principais vítimas. Há cerca de sete anos, movimentos juvenis e negros que dialogam com várias outras áreas das políticas no Brasil, como educação, saúde, segurança, trabalho etc., promovem campanhas contra o chamado “genocídio da juventude negra” (RAMOS, 2014, p. 14).

Quando do questionamento sobre se há um genocídio da juventude negra, os 9 entrevistados que concederam entrevista para esta pesquisa disseram que sim. Dois desses entrevistados possuem relação direta com a promoção de campanhas contra a alta letalidade da juventude negra e também atuaram no governo federal em projetos para a erradicação dos autos de resistência e a criação do programa juventude viva.

Gabriel Sampaio, advogado e ex-assessor do Ministério da Justiça sobre o projeto de lei acerca do fim dos autos de resistência, no período de 2011 a 2016, refere-se a esse fenômeno da seguinte forma:

Posso dizer que pelos dados concretos, não vou trabalhar a parte subjetiva, vou falar o que é o resultado hoje da nossa sociedade. Objetivamente está comprovado que os jovens negros são as maiores vítimas da violência, então isso é algo mais do que claro. Por muito tempo fui um jovem negro nesse espaço de direção, ocupei espaços de direção na administração pública, ainda jovem negro e enfim, com fenótipo que deixa claro, meu dread minha negritude e tudo mais, então isso em geral causava, muitas vezes causava uma estranheza nos interlocutores. Será que é mesmo um dirigente do Ministério da Justiça? Ou tem possibilidade de nos trazer uma posição no Ministério? Você tem um problema claro de representação ao passo que a sociedade foi ou vai reproduzindo os estereótipos, então é um estereótipo do negro traficante, é o estereótipo que foi trazido desde a nossa formação mais antiga, desde a escravatura, então a sociedade fixa esse estereótipo, reproduz esse estereótipo e que gera um problema ainda mais grave para nossa população (SAMPAIO, 2017, informação verbal22).

Outro entrevistado, Jefferson Lima, foi Secretário Nacional da Juventude no período de janeiro a abril de 2016, no final do segundo governo da presidenta Dilma Rousseff. Jefferson nasceu em Sergipe, o terceiro estado no ranking de letalidade de jovens e o oitavo estado em vitimização da juventude negra, conforme as figuras do Mapa da Violência 2016 apresentadas acima. Esse entrevistado corrobora a tese de Ramos (2014), que afirma terem sido os movimentos juvenis que começaram a denunciar a violência contra a juventude negra em espaços como as conferências de juventude e a exigir políticas públicas como forma de combater os índices apresentados nos dados estatísticos.

Eu acredito plenamente (o jovem negro é mais suscetível a violência) e os dados mostram isso e vivi isso na vida real, a violência contra a juventude negra. Eu comecei minha militância mais forte na juventude e com mais consciência política e social quando eu fui eleito secretário estadual da juventude do PT no ano de 2008. Os relatos das conferências é isso, que está morrendo, está morrendo jovem negro da periferia. Eram poucos casos isolados que tinham alguma outra cidade lá no meu estado que era

um jovem branco do campo por exemplo, se tinha conflitos agrários, mas 99% era juventude negra que está sendo assassinado. Então a gente passou a ter um olhar mais forte sobre isso (LIMA, 2017, informação verbal23).

Além do reconhecimento do genocídio, há uma prática de advocacy tendo como ator social os movimentos de juventude que reivindicam um protagonismo, são agentes de denúncia e reivindicam soluções. Mais adiante, essa temática será mais bem abordada.

2.6 GÊNERO, RAÇA E CLASSE: A INTERSECCIONALIDADE COMO CONSTRUÇÃO