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O jornalista e advogado Rodrigo Chia, ao ser questionado quanto à prática de jornalismo na cobertura sobre violência, respondeu: “Eu tenho que fabricar uma notícia por dia, ou duas ou três ou quatro. Como é que eu fabrico? Ah, senador fulano falou isso, (senador) falou aquilo, o deputado tal disse (um) negócio cabeludo e tal. Será que isso é verdade? Será que isso não tem uma lógica maior por trás” (CHIA, 2017, informação verbal31).

Essa lógica de fábrica reverbera em várias editorias. Quando Claudia afirma que, quando a Record chegou, o profissional de jornalismo só queria saber o porquê do assassinato e não se interessou em saber a história do Matheus, está relacionada diretamente a essa lógica fabril de construção de 2, 3 até mais de 4 notícias por dia.

Quando da cobertura sobre relações raciais, além do trabalho de análise de conteúdo da ANDI, há vários trabalhos que discutem a questão racial e o jornalismo. Para este corpus, será incorporado o livro Mídia e Racismo, organizado por Silvia Ramos (2007). Trata-se de uma obra que surgiu após o Seminário Mídia e Racismo, que ocorreu na Universidade Cândido Mendes, no Rio de Janeiro, em agosto de 2001.

Passados 15 anos do evento, ainda é pertinente trazer os textos e ensaios apresentados como panorama de como jornalistas, intelectuais e artistas entendem a relação mídia e racismo.

De acordo com o livro, a cobertura da imprensa sobre o racismo, de forma geral, é silenciosa, invisível e racista, tal qual é a sociedade brasileira. A esse respeito, Ramos diz:

Os meios de comunicação são um caso-modelo de reprodução das nossas relações raciais. Tanto quanto na sociedade, ou até mais intensamente, prevalecem nos meios de comunicação – ainda que combinados a outros mecanismos – os dispositivos da denegação, do recalque, do silêncio e da invisibilidade. O racismo não se reproduz na mídia (nem, via de regra, em outros âmbitos da sociedade brasileira) através da afirmação aberta da inferioridade e superioridade, através da marca da racialização, ou de mecanismos explícitos de segregação. O racismo tampouco se exerce por normas e regulamentos diferentes no tratamento de brancos e negros e no tratamento de problemas que afetam a população afrodescendente. As dinâmicas de exclusão, invisibilização e silenciamento são complexas, híbridas e sutis, ainda que sejam decididamente racistas (RAMOS, 2007, p. 8).

Quando a Record não problematiza que o corpo do Matheus é mais um corpo de um homem, negro, jovem e pobre que foi assassinado e que por trás dessa morte há toda uma negação de acesso a políticas públicas, de inferiorização e de desumanização do corpo negro, conforme foi discutido nesta seção, ocorre aí a reprodução do racismo pelo jornalismo como reprodução das relações sociais do país. Não é uma afirmação aberta, mas é uma lógica fabril que coloca esse jovem dentro de dados estatísticos, não narrando as suas histórias, seus sonhos, expectativas e desejos e não refletindo o porquê que isso acontece como fenômeno social no Brasil.

Na ocasião, mesmo em datas comemorativas em relação à questão racial, os jornais não faziam um agendamento com ampla visibilidade sobre a pauta racial. Segundo Leitão (2007), em 13 de maio de 2001, após consultar os grandes jornais brasileiros, constatou que apenas o Estado de São Paulo fez uma matéria de meia página interessante.

No dia 13 de maio deste ano, eu olhei todos os grandes jornais, e eles quase não trouxeram referência ao assunto. Apenas o Estado de São Paulo fez uma matéria de meia página, que eu achei decente. Ouviu a Sueli Carneiro, da ONG Geledés, e apresentou o que está realmente sendo discutido no país. Naquele 13 de maio só duas revistas que não pertencem à grande imprensa – a revista Rumos – dos bancos de desenvolvimento, e a revista da Federação do Comércio do Rio de Janeiro. Mas, fora isto, é como se não tivesse acontecido nada (LEITÃO, 2007, p. 43).

No dia 20 de novembro daquele ano, ocorreu o mesmo silenciamento. Segundo Leitão (2007), se essas pautas não estão sendo veiculadas nos jornais é porque os jornalistas estão errando.

Incomoda-me demais a falta de espaço para este debate, porque eu acho que a discussão do racismo tem que ser cotidiana. Ela não pode ser feita só em um evento: um dia, um negro que já chegou na classe média é barrado no elevador social de um prédio. Então sai a matéria com a foto, os amigos se solidarizam, mas o caso é

apresentado como um episódio exótico32 [...]. Não existe uma cobertura diária sobre

o fato de que 84 milhões de brasileiros são tratados de forma inferior, têm os piores empregos e os piores salários, são barrados ao longo da vida inteira por barreiras fortes, poderosas e invisíveis a olho nu. O Brasil precisa discutir o racismo se quiser ser grande, se quiser ser forte, se quiser ter uma economia viva (LEITÃO, 2007, p. 44).

O intelectual Carlos Moura ratifica a opinião de Miriam Leitão e acrescenta que a mídia deveria se unir ao movimento negro, aos brancos e indígenas, em momentos de denúncia do racismo e também como forma de apresentação concreta de ações para superação das injustiças que o povo negro sofre no Brasil (LEITÃO, 2007, p. 20).

A deputada federal Benedita da Silva, ao discorrer sobre a invisibilidade, critica que enquanto os meios de comunicação não discutirem a diversidade, não será possível ultrapassar a barreira do racismo.

A invisibilidade é uma das grandes crueldades do racismo. É lamentável que tenhamos que levantar bandeiras dessa natureza em uma sociedade que compreende e reconhece que negros, indígenas e brancos formaram a nossa civilização brasileira, mas que nos considera invisíveis e pensa que somos pouco contáveis, identificáveis aqui e acolá, perdidos neste país, no Parlamento Brasileiro, em uma Assembléia Legislativa, numa Câmera de Vereadores ou numa Fundação Palmares. A identidade brasileira, que é essa que nós queremos verdadeiramente constituir, precisa tornar-se totalmente isenta da necessidade, que ora aqui colocamos, de chamar a atenção para a sua diversidade étnica e de lutar ainda pela igualdade de direitos entre seus componentes (SILVA, 2007, p. 22).

Outro trabalho que enfoca a questão do racismo no campo do jornalismo é a dissertação de mestrado de Isabel Clavelin (2011), que analisou o jornal Folha de S. Paulo, no período de 2000 a 2010. É uma pesquisa que dialoga mais com a pesquisa de Imprensa e Racismo, da ANDI (2012), do que o livro Mídia e Racismo (2007), que consiste em um trabalho mais qualitativo e opinativo a respeito da cobertura sobre racismo no Brasil.

A pesquisadora usou a metodologia de Análise de Conteúdo e avaliou as edições on- line da Folha de S. Paulo usando as efemérides do Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial (21/03), Dia da Abolição da Escravatura (13/05) e Dia da Consciência Negra (20/11). As principais conclusões a que Clavelin (2011) chegou estão listadas abaixo:

 A partir da análise de conteúdo dos dados coletados, constatou-se que a temática racial negra está presente na Folha de S. Paulo – FSP, que vem desde 1988 dedicando atenção à problemática do racismo e inclusive redirecionando a sua cobertura e entendimento interno

32 Um exemplo são os casos no futebol que ocorreram no ano de 2014, com jogadores como Daniel Alves, em um

jogo do Barcelona; o goleiro Aranha, na Copa do Brasil, na Arena do Grêmio; e Neymar, ainda como jogador do Barcelona. Nesses episódios, os principais jornais se manifestaram veemente contrários àquelas manifestações racistas das torcidas.

sobre isso, tendo em vista o uso de expressões “racismo cordial” e sua progressiva substituição por “racismo confrontado”.

 Apesar de a pesquisa se valer de três amostras, verificou-se, nas unidades, uma ampla cobertura e variedade de temas no jornal FSP. Para tal, partiu-se de referenciais já absorvidos pela rotina produtiva do jornalismo por basearem-se em efemérides, isto é, com disposição e potencial de cobertura de fatos e acontecimentos no âmbito da temática racial negra.

 Segundo a pesquisadora, o que se pode chamar “calcanhar de Aquiles” da FSP tem sido a efetivação do princípio da pluralidade, pois a aferição da pluralidade de vozes entrevistadas, a classificação das fontes e o recorte de gênero das fontes entrevistadas exibem a participação de setores específicos da sociedade e o alijamento de outros, também estratégicos e fundamentais para a oxigenação da esfera pública e do espaço público. Dito de outro modo, é evidente a redução da polissemia, isto é, a limitação da multiplicidade de sentidos, que pode se dar pela seleção de fatos, vozes e temas; priorização de fontes autorizadas; padrão aparente de objetividade, entre outros.

 Tratando-se de grupos em desvantagem nas relações poder – a população negra e as mulheres –, é possível dizer que, por vezes, inexiste a pluralidade e, nessas ocasiões, a FSP corrobora para a assimetria de raça e gênero na sociedade brasileira.

 Outro dado relevante foi que, apesar das tentativas de aproximação com a temática racial nos anos 1988, 1995, 2002 e 2008, as 266 notícias analisadas ao longo do período 2000-2010 revelam a tendência da FSP, no terceiro milênio, de manutenção do mito da democracia racial brasileira e de traços do patriarcado. A sobrevivência do mito da democracia racial é percebida na baixa representação de porta-vozes do Movimento Negro e do Movimento de Mulheres Negras entre as fontes entrevistadas, em média com uma participação ativa em menos de 25 das 266 notícias estudadas. Em detrimento de uma linha editorial regida pelo pluralismo – em que todas as pessoas teriam a oportunidade de participar do discurso jornalístico por meio da reprodução das diferentes versões e vozes existentes na sociedade, a cobertura noticiosa da FSP, no início do terceiro milênio, demonstra o atendimento parcial ao princípio. Como esse não pode realizar-se pela metade, isto é, a pluralidade existe e se manifesta ou não; é prudente afirmar que a FSP não adquiriu nem incorporou na sua linha editorial os atributos necessários para fazer valer a máxima do pluralismo.

 Sob outro aspecto, a cobertura noticiosa do jornal revela-se como guardiã do patriarcado, uma vez que há uma notória e sistemática interdição da fala das mulheres como

fontes entrevistadas – fator que obstaculiza o empoderamento das mulheres brasileiras e a paridade de gênero na esfera pública e no espaço público. A esse quadro, somam-se as impossibilidades de efetivação de um jornalismo crítico e de um jornalismo moderno. Crítico seria se o jornal estivesse desprendido do passado colonial e patriarcal, ou seja, contribuindo para o desmantelamento das raízes, ou melhor, do núcleo irradiador das desigualdades históricas de raça e gênero; e, moderno, caso conseguisse acompanhar as transformações sociais atuais no que tange aos direitos adquiridos pela população negra; da condenação expressa do racismo; da liberdade de manifestação de pensamento e expressão dos indivíduos, como estabelece a Constituição Federal brasileira; dos direitos das mulheres e do direito humano à comunicação.

O trabalho de Clavelin (2011) identifica que há um espaço na linha editorial da Folha de S. Paulo para abordar o racismo, porém, não há pluralidade de vozes, mas a manutenção do mito da democracia racial além dos traços do patriarcado, com a característica das fontes sendo predominantemente masculina. Para uma das perguntas desta tese (quais são as fontes ouvidas pelo jornalismo?) é importante observar que o dado que Clavelin traz não vai ao encontro da atuação das mães de jovens negros assassinados pela polícia. A atuação desses movimentos de mães como Mães de Maio, Mães de Manguinhos, entre outros, traz um protagonismo dessas vozes, no caso do genocídio dos jovens negros, por isso, a importância de abrir esta seção com a fala da jornalista Claudia Maciel narrando a história do irmão, Matheus Maciel.

Após o levantamento de alguns estudos que sintetizam o que foi realizado de pesquisas no campo das relações raciais e do jornalismo, a seguir, serão abordados três temas relacionados ao genocídio da juventude negra: redução da maioridade penal, Programa Juventude Viva e as Comissões Parlamentares de Inquérito sobre o Assassinato de Jovens no Senado Federal e a Violência Contra Jovens Negros e Pobres da Câmara dos Deputados.