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Gêneros e linguagem como meios de ação: o fator extralinguístico

No documento marcelhenriqueangelo (páginas 32-37)

2. O CONCEITO DE GÊNERO: EVOLUÇÃO E DIVERSIFICAÇÃO

2.3. Gêneros e linguagem como meios de ação: o fator extralinguístico

Conforme demonstrado, a partir de Bakhtin a noção de gênero ultrapassa as fronteiras frasais e passa a agregar elementos extralinguísticos antes desconsiderados na tarefa de enquadrar textos em determinadas categorias. A evolução proporcionada pelo

18 “[...] sites of tensions between creativity and convention that may allow for individual expression. In

conceito de enunciado foi bastante significativa, porquanto incorpora a materialidade das trocas simbólicas intersubjetivas no meio social: pessoas ironizam, mentem, lou- vam, enfim, usam a palavra em circunstâncias concretas dirigindo-se a interlocutores com intuitos específicos. No momento em que o contexto é alçado à condição de fator condicionante da produção de sentidos na comunicação verbal, surgem diferentes inter- pretações de como essa influência ocorre. Outra implicação diz respeito ao caminho inverso: se a língua reflete e refrata, na terminologia bakhtiniana, é de se supor, portan- to, que não apenas seja produto do meio, mas que também interfira na realidade na qual é utilizada – e que, por conseguinte, possa servir como instrumento de ação.

Antes de iniciarmos a discussão que envolve gêneros e ação humana à luz das reflexões que nortearão nosso percurso teórico neste trabalho – oriundas da chamada escola norte-americana – é necessário esclarecer que o papel do contexto na significação não é uma exclusividade das reflexões orientadas pelo Círculo de Bakhtin. O enqua- dramento proposto pela supracitada Pragmática, por exemplo, já ultrapassa limites tanto da análise das relações formais de signos entre si (a cargo da sintaxe) quanto das exis- tentes entre signos e referentes (objeto da semântica), tratando das conexões entre sig- nos e interpretantes (LEVINSON, 2007). Essa distinção, mesmo superficialmente aqui reproduzida, avança não somente por adicionar ao sistema linguístico a presença de fatores espaço-temporais na configuração dos significados, como também ao dar mar- gem ao tratamento do propósito comunicativo.19

Todavia, essas mesmas categorias – contexto e propósito – encontrariam maior intimidade com aspectos de abrangência sociológica e antropológica nos trabalhos de- senvolvidos em meados da década de 1980 por pesquisadores dos Estados Unidos e da Austrália. Segundo Coe e Freedman (1998), é então que a visão mais antiga de gênero, muito atrelada à literatura, dá lugar à compreensão das dimensões sociais, funcionais e pragmáticas do uso da linguagem. Não por acaso, afirmam os autores, as produções literárias, classicamente definidas como modelos de aprendizado, são substituídas por gêneros cotidianos para fins didáticos. Nesse período, igualmente, ocorre uma ruptura ainda mais manifesta com o formalismo tradicional, no qual gênero é tratado predomi-

19 Alguns conceitos como os trabalhados por J. Austin (2009) no clássico How to do things with Words

corroboram tanto a visão de que a produção de sentidos depende dos parceiros da troca simbólica quanto a de que, ao se pronunciar, o falante não apenas diz, mas também faz. Esse pensador inova, ainda, ao introduzir a teoria dos atos de fala, compreendidos em três categorias – atos locucionários (a enunciação em si), ilocucionários (a ação pretendida com a enunciação) e perlocucionários (efeitos da enunciação sobre o enunciatário).

nantemente à luz de critérios formais. A também conhecida como abordagem taxonômi- ca é, de certo modo, míope, na medida em que, como explica Devitt (1993), se concen- tra no produto, ou seja, os textos e seus aspectos acabados, estáticos, e não enxerga o processo no qual estão inseridos. Em outras palavras, valoriza os efeitos sem se preocu- par com as causas, desprezando a existência histórica da linguagem à maneira do objeti- vismo abstrato criticado por Bakhtin.

É justamente essa lacuna contextual que viria a ser preenchida nos estudos de norte-americanos e australianos. A primeira vertente, que mais diretamente nos interes- sa, enfatiza o caráter retórico do gênero, no sentido mais técnico e pragmático do termo. Suas reflexões são originalmente fundamentadas nas considerações desenvolvidas por Carolyn Miller no ensaio Genre as Social Action (1984), onde surge a noção de gênero como ação retórica tipificada. Em linhas gerais, isso significa que, em cada situação, os usuários da língua utilizam-se de maneiras mais ou menos convencionais para responder às demandas que surgem – comunicando-se apropriadamente em cada caso. A eficácia dessas estratégias leva à repetição das mesmas, considerando-se que muitas circunstân- cias da vida ocorrem rotineiramente. Funda-se, assim, uma tradição, a qual, conquanto reflita nas características formais do gênero, não surge delas: é por elas responsável. A sobriedade hermética do vocabulário jurídico não cria as petições, o mesmo valendo para o laconismo e as abreviaturas em relação às conversas via internet. Assim, certos gêneros têm formas discursivas convencionais

porque surgem em situações com estruturas e elementos similares e porque os retores respondem de modos similares a partir do que aprenderam previa- mente sobre o que é apropriado e quais efeitos suas ações terão sobre outras pessoas (MILLER, 1984, p. 152).20

Uma das ideias centrais na visão de Miller, portanto, é a recorrência: para ela, “importa o fato de as situações retóricas serem recorrentes: assim, podemos ‘tipificá-las’ a partir de analogias e semelhanças relevantes” (CARVALHO, 2005, p. 133). Entretan- to, ressalta a estudiosa norte-americana, o que recorre não são as circunstâncias materi- ais, e sim a interpretação que delas fazemos. A ação humana, explica, é guiada por sig- nificado; motivo pelo qual, antes de agirmos, efetivamente, definimos a situação, de-

20“[...] because they arise in situations with similar structures and elements and because rhetors respond in

similar ways, having learned from precedent what is appropriate and what effects their actions are likely to have on other people”.

terminando o que antes era indeterminado (MILLER, 1984, p. 156).21 Nesse processo de determinação, avaliamos aspectos como os participantes da interação – identificando as características da audiência, seus anseios e propensões ao diálogo, entre outros fato- res – bem como a ocasião – o período histórico, o lugar, o horário. Em outras palavras, a situação retórica (COE; FREEDMAN, 1998).

O processo de tipificação é crucial para a capacidade humana de interpretar no- vas situações, a partir do repertório acumulado em experiências anteriores. Estas levam ao surgimento de respostas-padrão “relativamente estáveis” e estrategicamente formula- das para atender a demandas que surgem no meio social. Logo, vem à tona o conceito de exigência trabalhado por Miller. A pesquisadora explica que, embora a motivação possa ser pessoal, não é nesse nível que se deve compreender a exigência, que é um “motivo socialmente objetificado”. Logo, comporta uma dimensão social mais ampla do que a exclusivamente individual. “Exceto num sentido primitivo, nossos motivos não são privados ou idiossincráticos; eles são produtos de nossa socialização” (MILLER, 1984, p. 158).22 Essa perspectiva, conforme Artemeva (2008, p. 12), “percebe conheci- mento como socialmente construído em resposta a necessidades da comunidade, metas e contextos e a elaboração de textos como parte do processo social por meio do qual o conhecimento é construído”.23

Assim, gêneros constituem estratégias socialmente padronizadas, corporificadas numa forma típica de discurso, que evoluem para responder a tipos recorrentes de situa- ções retóricas (COE; FREEDMAN, 1998). Contudo, ao mesmo tempo em que respon- dem, também constroem situações: são ação social, ensinou Miller. Funcionam como lentes interpretativas para coordenarmos nossas ações com maior eficiência por meio da palavra. Como explica outro expoente da escola norte-americana, Charles Bazerman (2009, p. 31), “gêneros emergem nos processos sociais em que pessoas tentam compre- ender umas às outras suficientemente bem para coordenar atividades e compartilhar significados com vistas a seus propósitos práticos”. Essa articulação entre o linguístico e seu entorno encontra-se em alguma medida expresso na proposta de Halliday e Hasan

21 Algo de certo modo semelhante ao que Bakhtin (2010, p. 96) discute quando distingue a codificação –

que exige intervenção ativa do intérprete – de identificação. Esta, para o filósofo, limita-se ao reconhecimento de sinais.

22 “Except in a primitive sense, our motives are not private or idiosyncratic; they are products of our so-

cialization”.

23 “The social view perceives knowledge as socially constructed in response to communal needs, goals,

(1985, p. 11), quando afirmam que o contexto situacional encontra-se “encapsulado no texto”,24 através de relações sistemáticas entre o ambiente social e a organização fun- cional da linguagem. Evidencia-se, pois, uma indivisibilidade entre forma e conteúdo que, por muito tempo dualizada, comprometeu a possibilidade de estudar os mecanis- mos genéricos de maneira dinâmica e associada à trama das relações sociais. Entretanto, alerta Devitt (1993, p. 578), a situação não é construída “diretamente através do texto [...] em vez disso, nós alcançamos a situação por meio do gênero”.25 Isso significa que, quando lidamos com uma forma textual, seja ela qual for, na condição de emissores ou receptores, reconhecemos o gênero a que pertence e, somente por intermédio dele, a situação. A pesquisadora esclarece que essa relação é tão umbilical que as limitações apresentadas por alunos em lidar com certos gêneros podem, na verdade, decorrer de uma falta de familiaridade com as circunstâncias a ele relacionadas. E o contrário tam- bém se aplicaria: a dificuldade de abstrair e “se colocar em outra situação”, como a de um personagem numa narrativa ficcional, pode estar vinculada ao desconhecimento do gênero.

Gêneros, então, surgem de situações recorrentes, mas também contribuem para criá-las. Essa perspectiva é aprofundada por Miller posteriormente (1994), quando pro- cura refletir de forma mais pontual sobre as relações entre o individual e o coletivo, o público e o privado. Estabelece-se, dessa forma, a passagem da discussão em torno da recorrência, conforme discutido no artigo de 1984, para reprodução, que introduz a “a- ção dos participantes”:

atores sociais criam recorrência em suas ações ao reproduzir os aspectos es- truturais das instituições, ao usar estruturas disponíveis como meio para sua ação e, desse modo, produzir essas estruturas de novo como resultados virtu- ais, disponíveis para futura memória, interpretação e uso (MILLER, 1994, p. 71).26

Uma das implicações disso é que a compreensão dos gêneros passa obrigatoria- mente pelo aprofundamento do entendimento do “sistema comunal do qual são constitu- intes”, ou seja, da coletividade em que circulam e de cuja construção participam (MIL- LER, 1994, p. 72). Surge, assim, o conceito de comunidade retórica (CR), constituída,

24 “[…] encapsulated in the text”. 25

“We do not construct the situation directly through the text […] rather, we reach the situation through the genre”.

26 “[…] social actors create recurrence in their actions by reproducing the social aspects of institutions,

by using available structures as the medium of their action and thereby reproducing those structures again as virtual outcomes, available for further memory, interpretation, and use”.

representada e desenvolvida discursivamente, em oposição a grupos definidos de modo dedutivo, a partir de critérios geográficos e demográficos, por exemplo. As CR’s são a “base cultural” do gênero. Miller sustenta que as narrativas e as metáforas constituem “forças centrípetas” igualmente importantes para a manutenção e a estabilidade de uma CR: através de histórias míticas, representações e outras simbologias, perpetua-se o es- pírito coletivo. O gênero, no entanto, tem status superior à narrativa e às metáforas, de- vido a sua dimensão pragmática, favorecendo as operações em nível interpessoal e, con- comitantemente, comunitário, cultural. Em suma, “[...] o gênero tem um potencial estru- turador da ação social porque é o elo e o mediador entre o particular e o público, entre o indivíduo e a comunidade” (CARVALHO, 2005, p. 135).

No documento marcelhenriqueangelo (páginas 32-37)