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Texto, textualização e seus critérios

No documento marcelhenriqueangelo (páginas 61-65)

3. GÊNEROS E PRODUÇÃO TEXTUAL: ENTRE PADRÕES E

3.1. Texto, textualização e seus critérios

De antemão, é de se supor que qualquer exposição relacionada à produção textu- al inclua, num instante inicial, que concepção de texto está sendo adotada. Para produzir um exemplar dessa categoria, toma-se como razoável, ao menos, a apreensão, se não do conceito, de uma noção do que o mesmo designa. À luz da linguística textual (LT), por exemplo, trata-se de uma “unidade comunicativa”, material e empírica, “resultante de um ato de enunciação” (MARCUSCHI, 2008, p. 83). Ingedore Koch (2007) acrescenta outros fatores, ao defini-lo como uma

manifestação verbal, constituída de elementos linguísticos de diversas ordens, selecionados e dispostos de acordo com as virtualidades que cada língua põe à disposição dos falantes no curso de uma atividade verbal, de modo a facul- tar aos interactantes não apenas a produção de sentidos, como a fundear a própria interação como prática sociocultural (KOCH, 2007, p. 31).

Em ambos os conceitos, percebe-se a natureza relacional dos textos – ou seja, o fato de que a superfície textual envolve não apenas um “material bruto composto por sons ou marcas impressas”, e sim algo cuja existência “pressupõe que expressões lin- guísticas que a compõem tenham sido apresentadas por alguém na interação e o receptor tenha conseguido identificá-las” (BEAUGRANDE; DRESSLER, 1997, p.35).60 Nessa linha também está a definição de Bronckart (2007, p. 137), para quem texto significa “[...] toda unidade de produção verbal que veicula uma mensagem linguisticamente or- ganizada e que tende a produzir um efeito de coerência em seu destinatário”. Conjugam- se, portanto, fatores pertinentes à língua como sistema a outros, que se referem à produ- ção de sentidos dialogicamente constituída.

Não obstante a procura por “leis gerais” de funcionamento dos textos, decorrente de seu tratamento científico, nem por isso as perspectivas mencionadas se fiam a uma tentativa de gramaticalizar sua realização, algo comum nas tentativas primordiais de teorizá-los. Essas concepções “foram largamente criticadas, pois não é seguro que se

60 “[...] un material en bruto compuesto por sonidos o marcas impresas. Su existência presupone que las

expresiones linguísticas que la componen han sido presentadas por alguien em la interacción y el receptor ha logrado identificarlas”.

possa partir assim da unidade frase, e ainda menos seguro que as gramáticas de texto sejam um dia capazes de gerar [...] sequências ‘bem-formadas’” (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2006, p. 467). Logo, a severidade das normas que regulam o fun- cionamento da língua nos níveis lexical e sintático, por exemplo, dá lugar a outros pa- râmetros num âmbito mais abrangente como o textual. Surge, então, a necessidade de conceber meios que permitam distinguir um texto de “um amontoado aleatório de frases ou palavras” (KOCH; TRAVAGLIA, 1989, p. 26). A esta propriedade, dá-se o nome de textualidade. Como explica Marcuschi (2008, p. 65), a linearização sequencial dos e- nunciados não ocorre ao acaso: em vez disso, é regida por “princípios de textualização locais ou globais”. Por sua relevância para a escrita, examinaremos esses norteadores individualmente.

Atribui-se a Beaugrande e Dressler (1997) a elaboração original do que chamam de “normas”, mas que Marcuschi (2008) mais tarde denominaria, de modo diverso, ini- cial-mente “princípios” e, por fim, “critérios” de textualidade – termo pelo qual opta o linguista brasileiro visando ao afastamento do ideário prescritivo beletrista. Segundo esses autores, são sete os critérios a que deve obedecer um texto como unidade comuni- cativa: a coerência; a coesão; a aceitabilidade; a informatividade; a situacionalidade; a intertextualidade; e a intencionalidade.

Coerência e coesão são critérios de textualidade imprescindíveis, embora não suficientes, para a produção de sentidos por meio de um texto – a primeira funcionando mais ao nível conceitual, interpretativo, e a segunda, em maior medida vinculada à ma- terialidade textual, determinando sua sequencialidade palpável, empírica (MARCUS- CHI, 2008). Produto dos processos cognitivos acionados pelos parceiros da comunica- ção, a coerência se manifesta por meio de relações como a de causa e consequência, probabilidade e razão, conforme Beaugrande e Dressler (1997, p. 37). Além disso, defi- ne-se por dois princípios fundamentais: o da não-contradição, que “[...] permite a diver- sidade dentro de esquemas de compatibilidade definida pela pertinência nas relações de implicação lógica”; e o da não-tautologia, que “[...] providencia a continuidade textual, ou seja, a progressão temática trazendo conteúdos novos integrados” (MARCUSCHI, 2008, p. 125).

Por sua vez, a coesão refere-se aos fatores responsáveis pelas conexões referen- cial e sequencial dos textos – esta relativa aos elementos conectivos, e aquela, aos de ordem mais propriamente semântica (MARCUSCHI, 2008, p. 99). Trata-se, ainda, de

um mecanismo de textualização, segundo Bronckart (2007, p. 122), concorrendo para “o estabelecimento da coerência temática”. Para este autor, há pelo menos duas modali- dades de coesão. A primeira delas, a nominal, tem as funções de introduzir temas ou personagens novos e assegurar sua retomada e substituição no desenvolvimento da composição por meio das anáforas – pronomes pessoais, relativos, demonstrativos e sintagmas nominais. A segunda, a verbal, mantém a organização temporal e hierárquica dos processos (estados, acontecimentos e ações), sendo realizada, em essência, pelos tempos verbais (BRONCKART, 2007, p. 127). Tais recursos facultam a progressão referencial dos textos, isto é, a “estratégia de designação dos referentes” (MARCUS- CHI, 2008, p. 141) que, ao lado da progressão tópica – concernente à evolução do as- sunto tratado na produção escrita – viabiliza a construção textual.

Enquanto que coesão e coerência representam critérios de textualização “cotex- tuais”61 (MARCUSCHI, 2008), ou seja, mais centrados no texto , há ainda aqueles “contextuais”. O primeiro deles é a intencionalidade, relativa tanto às metas operativas (assegurar uma produção coesa e coerente, por exemplo) quanto às discursivas, mais associadas ao intuito comunicacional do autor (BEAUGRANDE; DRESSLER, 1997, p. 41). A segunda, a aceitabilidade, está ligada à relevância que aquela unidade comunica- tiva terá para o receptor, seja porque “serve para adquirir conhecimentos novos ou por- que lhe permite cooperar com seu interlocutor na consecução de determinada meta dis- cursiva (BEAUGRANDE; DRESSLER, 1997, p. 42).62 Segundo estes pesquisadores, quanto maior for o “convite” a participar da configuração dos sentidos – despertando o interesse do leitor por meio de operações lógicas e argumentativas que balanceiem con- teúdos implícitos e explícitos –, melhores as oportunidades de “aceitação” do que se enuncia.

O terceiro critério “contextual” é a informatividade. De acordo com Beaugrande e Dressler (1997), tal propriedade serve para que se avalie até que ponto as sequências dispostas no texto são previsíveis ou inesperadas – ou, em outros termos, se são “dadas” ou “novas”. Para Koch (2007, p. 27), a informação textual se distribui em dois blocos –

61 Em trabalho posterior, Beaugrande (1997) rediscute os critérios apresentados, criticando a concepção

com que originalmente trabalhara. Em sua nova perspectiva, defende que a coesão não se restringe a uma perspectiva estritamente “cotextual”, ainda que não se refira especificamente a esse termo. Ademais, também sustenta que as sete noções que teorizou, as quais abordamos na presente seção, não devem ser vistas de maneira isolada, e sim em inter-relação, de modo integrado.

62 “[...] porque le sirve para adquirir conocimientos nuevos o porque le permite cooperar con su

o “dado” e o “novo”, sendo que “a informação dada [...] tem por função estabelecer os pontos de ancoragem para o aporte da informação nova”. A dosagem informacional manteria nexo direto com a aceitabilidade do que se enuncia: o investimento demasiado no que já é conhecido, conquanto simplifique a compreensão, acarretará prejuízo do interesse; por outro lado, “a linguagem criativa e um conteúdo inesperado podem pro- vocar um efeito intenso, embora sejam indubitavelmente difíceis de se produzir e inter- pretar” (BEAUGRANDE; DRESSLER, 1997, p. 73). Situando este aspecto da discus- são no território da prática composicional, Bazerman (2007, p. 51) realça as proprieda- des retóricas dessa dualidade estabelecida entre o “familiar” e “formulaico”, com resul- tados “ritualizados” e “conservadores”; e, do contrário, o “complexo, múltiplo e inova- dor”, que enseja recepções menos previsíveis. O pendor para este último lado implica “trocarmos a segurança comunicativa pela ambição comunicativa”.

Os dois últimos critérios mantêm estreita proximidade com as noções de gênero adotadas neste trabalho. A situacionalidade, pertinente à relação social em que o texto ocorre (MARCUSCHI, 2008, p. 125), refere-se aos fatores que tornam um texto rele- vante na situação específica em que ele aparece (BEAUGRANDE; DRESSLER, 1997). Um outdoor, exemplificam os autores, não poderá conter massas textuais muito exten- sas, haja vista as circunstâncias fugazes de recepção de sua mensagem por quem está de passagem pelo local onde a placa se encontra instalada. Aplicando-se raciocínio seme- lhante aos jornais, dir-se-ia haver inadequação situacional na publicação de notícias relatando acontecimentos velhos – o que constituiria verdadeiro paradoxo. Finalmente, a intertextualidade diz respeito aos fatores que tornam a utilização adequada de um texto dependente “do conhecimento que se tenha de outros textos anteriores” (BEAUGRAN- DE; DRESSLER, 1997, p. 45).63 Ao conhecer as características típicas de certas confi- gurações textuais, o escrevente poderá optar, por exemplo, pelo alinhamento ou pela ruptura com determinada tradição constituída. Esta noção guarda afinidade com a de intertexto proposta por Bronckart (2007), que retomaremos mais abaixo.

Além de sua funcionalidade em termos analíticos, o conhecimento destes crité- rios pode fornecer ao escrevente elementos que lhe permitam produzir textos que, mes- mo desviando-se de convenções, mantenham a textualidade. Marcuschi (2008) cita e- xemplos de artigos jornalísticos opinativos nos quais foram adotadas estratégias textuais em que claramente se viola princípios de coesão – e, ainda assim, são capazes de pre-

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servar a coerência, por meio de “cadeias inferenciais” acionadas discursivamente. Além disso, a informatividade, quando demasiadamente sinalizada, seja por meio de repeti- ções e reiterações ou, no extremo oposto, carregando o produto final de conteúdos no- vos, intencionalmente, também poderá servir a propósitos específicos do escrevente, que assim traçará percursos alternativos ao equilíbrio convencional atribuído aos pa- drões de textualização.

No documento marcelhenriqueangelo (páginas 61-65)