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2 REVISÃO DE LITERATURA

2.8 GEOMORFOLOGIA COMO FERRAMENTA PARA O PLANEJAMENTO E

2.8.1 Geomorfologia e o planejamento ambiental

A evolução das pesquisas em geomorfologia resulta do próprio interesse da sociedade humana em ter o relevo como um dos referenciais para o desenvolvimento das suas diversas atividades (moradia, sistema viário, práticas econômicas – agricultura, indústrias, turismo etc.). Marques (2007, p. 24-25) expõe que:

A evolução do conhecimento humano na direção da Geomorfologia, entretanto, não se restringiu, apenas, a procurar reconhecer tipos de relevo e os processos a eles relacionados. Tem procurado ir sempre mais além, buscando encontrar respostas para muitas questões que pudessem explicar, por exemplo: como os processos se articulam entre si; como evoluem os grandes conjuntos de relevo; qual o significado do relevo no contexto ambiental; como interferir ou controlar o funcionamento dos processos geomorfológicos; como conviver com os processos catastróficos; como projetar (no espaço e no tempo) o comportamento dos processos e as formas de relevo resultantes.

Sendo assim, o relevo torna-se elemento fundamental na prática do planejamento do espaço geográfico. Portanto, entende-se que os conhecimentos geomorfológicos apresentam um viés de aplicação prática ao subsidiar, de modo significativo, o ordenamento territorial, principalmente por entender que a atuação da sociedade humana pode contribuir para a

manutenção do equilíbrio dos processos geomorfológicos, porém, como geralmente acontece, provocar a desestabilização das dinâmicas processuais de ambientes naturais, o que condiz com o entendimento de Paschoal et al. (2015), ao destacarem a contribuição da geomorfologia para o planejamento na ocupação do espaço geográfico, já que as ações humanas resultam em alteração que promovem a reorganização da morfodinâmica numa determinada escala de tempo. E citam a abordagem da antropogeomorfologia, que se utiliza de técnicas utilizadas pela geomorfologia tradicional e busca envolver “[...] a relação entre o sistema socioeconômico com o sistema físico-ambiental e que podem contribuir para o planejamento do processo de ocupação e uso da terra” (PASCHOAL et al., 2015, p. 120).

Ross (2009) entende que a geomorfologia é o campo das ciências da Terra utilizada mais diretamente e que proporciona suporte absoluto às atividades humanas. Para ele:

É uma preocupação permanente desenvolver trabalhos geomorfológicos de base cartográfica, com fins claros de aplicação para as grandes obras de engenharia civil e para a organização ou o ordenamento territorial de espaços geográficos pouco ocupados ou reordenamento de espaços geográficos pouco ocupados ou reordenamento territorial de espaços produzidos há mais tempo no contexto da história (ROSS, 2009, p. 10).

Sendo assim, nota-se que todas as grandes obras de engenharia, incluindo as barragens, necessitam da contribuição dos estudos geomorfológicos, tanto no planejamento da obra, no diagnóstico ambiental como também para a avaliação dos impactos, o estabelecimento das medidas de mitigação e os planos de monitoramento e gestão. Girão e Corrêa (2004, p. 42) apontam que:

Percebe-se que a ação de planejar envolve invariavelmente a questão da espacialidade, pois incide na implementação de atividades em determinado território, sejam essas de micro a macroescala. Assim, o planejamento constitui-se em um processo que repercute na interação de fatores e, por conseguinte, nas características, funcionamento e dinâmica das organizações espaciais de um território. Dessa forma, na ação de planejar deve-se considerar os aspectos inerentes aos sistemas ambientais físicos (geossistemas) e socioeconômicos.

É a linha defendida por Christofoletti (2007), que demonstra a aplicabilidade do conhecimento geomorfológico nos projetos de planejamento. Diante da intensificação das intervenções antrópicas em gerar e alterar processos, além de construir e destruir as formas do relevo, à ciência geomorfológica incumbe o papel de entender essas diferentes práticas, principalmente envolvendo as diversas obras de engenharia, com o dever de indicar as melhores ações a serem tomadas, evitando situações de risco geomorfológico. O que se pode afirmar é

que, a intensidade dos impactos a serem gerados, se acompanhados e analisados por geomorfólogos, acarretará em minimização dessas ações.

Dessa forma, Downs e Booth (2011) consideram a geomorfologia como parte da base científica da gestão ambiental, existindo uma preocupação, com a geomorfologia aplicada, que enfatiza os processos geomorfológicos e as modificações processuais e consequentes formas de relevo resultantes da influência das atividades antrópicas.

Os autores destacam que, apesar de uma extensa literatura sobre a aplicabilidade da geomorfologia para a gestão dos problemas ambientais, são encontradas poucas descrições da aplicação geomorfológica direta. Para tanto, apresentam uma tabela com quarenta e uma publicações de Example texts in ‘applied’ geomorphology, entre os anos de 1971 e 2007. Destacam três aplicações específicas para a geomorfologia voltadas à gestão ambiental: “prevenção e redução de riscos naturais”, “restauração e conservação ambiental” e “desenvolvimento sustentável dos recursos naturais” (DOWNS; BOOTH, 2011).

Sendo assim, “[...] passa a Geomorfologia (leia-se geomorfólogos) a preocupar-se com a dinâmica dos processos, com os sistemas de erosão e com a dinamicidade da natureza em contraposição a Geomorfologia que imperou até os anos 1950, descritiva e classificatória” (SUERTEGARAY, 2018, p.26). Para Tricart (1977), a morfogênse do relevo ganha relevância ao contribuir para o ordenamento territorial e o planejamento, sendo a compreensão de tal dinâmica fundamental para a análise ambiental. Logo, a Geomorfologia, “[...] ao apreender o estudo dos processos do passado e do presente na constituição do relevo, é capaz de visualizar os ritmos de degradação” (SUERTEGARAY, 2018, p. 26). Vale destacar que alguns aspectos dos estudos ambientais não conseguem ser analisados, exclusivamente, pela geomorfologia.

Downs e Booth (2011) comentam que, por muito tempo, existia a ideia de paisagens estáticas na execução de um projeto de engenharia e, sendo assim, os processos geomorfológicos foram ignorados. Porém, a pesquisa e o empirismo demonstraram a falácia dessa suposição, resultando numa integração progressiva da geomorfologia no gerenciamento ambiental. Os autores afirmam que, atualmente, como os objetivos do gerenciamento ambiental, normalmente, envolvem a redução do risco para o ambiente construído decorrente das mudanças no uso da terra, minimizar o impacto de inundações ou dos movimentos de massa ou restaurar espécies aquáticas e terrestres nativas, a geomorfologia está, frequentemente a serviço da engenharia, do planejamento do uso da terra e da biologia. Nessa perspectiva, Downs e Booth (2011) apresentam sete categorias de serviços geomorfológicos:

a) orientação do projeto (“Project orientation”): projetada para fornecer informações iniciais sobre o problema ou questão;

b) determinação das condições atuais do local (“Determination of current site

conditions”): usando estudo de gabinete, trabalho de campo, monitoramento e

análise, e geralmente projetado, pelo menos implicitamente, para entender a sensibilidade à mudança do relevo;

c) investigação analítica interpretativa das condições passadas do local (“Interpretative analytical investigation of past site conditions”): usando modelos conceituais, bancos de dados históricos e várias técnicas de datação de relevo para informar condições históricas prováveis;

d) previsão de condições futuras do local (“Prediction of future site conditions”): interpretativa ou utilizando ferramentas de modelagem numérica aplicadas para prever a sensibilidade do relevo a vários cenários de gerenciamento em potencial; e) solução e design de problemas (“Problem solution and design”): quase sempre

como parte de uma equipe multidisciplinar;

f) monitoramento e avaliação da avaliação pós-projeto (“Post-project appraisal

monitoring and evaluation”): idealmente incluindo o monitoramento da

implementação, eficácia e validação para informar uma avaliação da sustentabilidade do projeto;

g) consultoria especializada (“Expert advisory”): frequentemente relacionada a litígios, reclamações de seguros e testemunhos de profissionais especializados.

Ao elencar tais serviços, entende-se que todos guardam relação direta com a prática da avaliação de impactos ambientais, considerando que se trabalha com um cenário atual, histórico, voltado ao planejamento, à etapa de construção e ao funcionamento (operação) do empreendimento.

Ainda sobre as considerações de Downs e Booth (2011), os autores destacam a “[...] avaliação de impacto no abastecimento de água: geomorfologia e a gestão de grandes barragens” (“Water supply impact assessments: geomorphology and the management of large

dams”) como um dos campos de preocupação da geomorfologia e os geomorfólogos fornecendo

serviços para avaliar os futuros impactos a jusante de grandes barragens, modificar os cronogramas de liberação de fluxo ou avaliar os possíveis impactos da remoção de barragens, considerando que, em alguns lugares, as barragens estão sendo desativadas e removidas (O’CONNOR et al., 2015).

Compreende-se que a maioria dos projetos requer o geomorfólogo para determinar os processos atuais do relevo, não só restrito à dinâmica do local do projeto, como também no

contexto espacial e ao contexto regional. Downs e Booth (2011) reforçam o entendimento de que a previsão de condições futuras, embora crítica para a gestão ambiental, é um tópico relativamente novo para a geomorfologia e o papel específico que ela deve desempenhar nas aplicações geomorfológicas para a gestão ambiental ainda está sendo debatido.

Logo, tal previsão encontra-se diretamente relacionada ao Estudo de Impacto Ambiental e à necessidade em se aprimorar o tratamento dado à geomorfologia nos diversos itens desse estudo, no aspecto do planejamento, mas, como comentam os autores, tal estudo também deve contemplar as aplicações geomorfológicas voltadas à gestão ambiental. Ao citarem a expressão “engineering geomorphology”23, consideram que expressa o aumento do uso da geomorfologia na solução de problemas, contudo consideram que não reflete uma verdadeira abordagem geomorfológica da gestão ambiental, sendo mais limitada e com foco estreito do que poderia razoavelmente derivar do patrimônio acadêmico da geomorfologia (DOWNS; BOOTH, 2011). Hooke (1999) analisou a contribuição da geomorfologia para a engenharia fluvial e a gestão costeira, avaliando o potencial e os desafios de futuras contribuições, tomando alguns exemplos na Grã-Bretanha. O autor mostrou que a política, a dimensão social e o contexto científico têm uma profunda influência sobre as oportunidades de contribuição da geomorfologia e o tipo de trabalho que é feito. Para isso, a discussão foi embasada a partir de três fases de atividades (passado, presente e futuro). Destaca que, em meados da década de 1980, os engenheiros britânicos executavam diversas obras e naquela época a maioria dos projetos de engenharia foi baseada na avaliação de problemas em um local, utilizando dados de curto prazo sobre processos e características, tendo sido cada vez mais percebida a necessidade de uma perspectiva mais ampla e que as consequências teriam que ser consideradas (HOOKE, 1999).

O autor explica que havia uma demanda crescente e um movimento real para longe das chamadas soluções de engenharia “difíceis” em direção à engenharia “leve”. A última implica o desenvolvimento de métodos que trabalham com a natureza e agem por meio da modificação de processos naturais para produzir soluções, em vez de tentar controlar a natureza. Isso, é claro, deve envolver uma compreensão completa dos processos e mudanças dessas características físicas, ou seja, a geomorfologia, uma abordagem que há muito tempo é defendida pelos profissionais da geomorfologia (HOOKE, 1999). Sendo assim, a geomorfologia passou a ser

23 O termo foi proposto por Hutchinson (1979) apud (Cooke; Doornkamp, 1990, p.11). COOKE, R. U.; DOORNKAMP, J. C. Geomorphology in Environmental Management: a New Introduction. 2nd ed. Oxgord: Oxford University Press, 1990.

uma parte essencial dos documentos de políticas, as estruturas de políticas foram alteradas e as políticas e práticas foram alteradas para adotar uma postura baseada no entendimento de processos físicos e nas formas de relevo. A necessidade de amplas perspectivas espaciais e de investigar dinâmicas de longo prazo e a importância de entender um sistema como um todo foram finalmente aceitas (HOOKE, 1999). Dessa forma, o autor aponta que as mudanças ocorreram como uma combinação de alteração dos valores e atitudes da sociedade, dificuldades na engenharia e com esquemas, pressões econômicas e por geomorfólogos, comunicando fora de sua própria profissão e produzindo o tipo de trabalho que era necessário.

Logo, o autor enfatiza que os geomorfólogos também são cada vez mais solicitados a responder a perguntas sobre “o que”, “como” e “por que” algo está acontecendo em um local específico e como isso pode ser resolvido. Para isso, os estudos geomorfológicos necessitam entender todo o sistema, a sua dinâmica de longo prazo e a observação da perspectiva espacial, por meio de uma abordagem muito mais holística para a análise de mudanças e a dinâmica dos sistemas, está sendo usada e defendida como a abordagem apropriada para a análise de problemas ambientais e a busca de soluções (NEWSON, 1992 apud HOOKE, 1999, p. 385).

A sustentabilidade requer um ambiente físico base para ações e a implementação de políticas. As associações entre as características geomorfológicas e ecológicas significa que a variação geomorfológica é também um componente-chave da diversidade biológica. A abordagem geomorfológica precisa incorporar a bipolaridade: desenvolvimento econômico e social versus preservação e conservação da natureza. De acordo com Clark (1978), o objetivo da Geomorfologia aplicada24 não é prevenir ou reduzir o desenvolvimento ou o uso dos recursos, mas, em vez disto, otimizar aquele uso, reduzindo tanto os custos quanto os impactos. Achkar et al. (2011) explicam que a geomorfologia aplicada estará diretamente ligada ao planejamento ambiental do território, sendo algo favorável para a união da geomorfologia com a geografia em trabalhos práticos aplicados. Gregory (1992) aponta que a geomorfologia aplicada na Grã-Bretanha é, normalmente, realizada para desenvolver investigações lineares, a exemplo de linhas de rodovias, estudos locais muito detalhados ou lugares específicos que são aplicados em função de projetos de engenharia. Complementa o autor que a aplicação da geografia física e também, especificamente, da geomorfologia e da climatologia, expandiu-se diante da obrigatoriedade dos Estudos de Impacto Ambiental para a viabilização dos projetos de desenvolvimento nos EUA, a partir de 1969, tendo se propagado para outros países.

24 “[...] em 1978, Brunsden, Doornkamp e Jones (apud Brunsden, 1988) definiam a Geomorfologia Aplicada como a aplicação das técnicas e análises geomorfológicas para a solução de um planejamento, manejo ambiental, atividade de engenharia ou problema similar” (GIRÃO; CORRÊA, 2004, p. 42).

Para Ross (2009), no Brasil, o desenvolvimento da geografia física aplicada, que inclui a geomorfologia, aconteceu a partir da promulgação da Lei Federal nº 6.938/81,

[...] que instituiu a obrigatoriedade dos EIAs (Estudos de Impactos Ambientais) e dos RIMAs (Relatórios de Impactos Ambientais), como parte dos instrumentos legais da Política Nacional do Meio Ambiente, sobretudo com a Resolução CONAMA nº 001, de 23/1/1986” (ROSS, 2009, p. 18). Portanto, segundo Ab´Saber (1969), os geógrafos, especialmente aqueles de formação científica adequada, “têm tido sensibilidade para explicar a organização natural das paisagens e diagnosticar o teor das modificações nelas introduzidas pelas ações antrópicas espontâneas ou voluntárias” (AB´SABER, 1969, p. 263). Portanto, a ligação da geomorfologia com a área ambiental é cada vez maior e mais promissora.