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Em um dos meus retornos ao assentamento Vale do Lírio, direciono-me para a quitanda que fica logo na entrada da comunidade. Pelo espaço pertencer à família da Gilmara, é o primeiro local que tinha em mente para buscar informações, uma vez que, passados muito tempo de minha última ida ao assentamento, pouco me lembrava da localização das casas e onde moram as pessoas certas, as pessoas que preciso conversar.

Na quitanda, deparo-me com o sorriso de Gilmara, jovem de 25 anos. Feliz me esperava, ou pelo menos, tinha a esperança que eu aparecesse naquele horário. Debulhava feijão-verde, pois tinha uma encomenda feita para aquela manhã. Simpática, pediu que eu puxasse uma cadeira próxima à parede e me sentasse. Perguntou-me se eu não me incomodaria em conversar, enquanto ela debulhava feijão; como não queria atrapalhá-la, falei que não haveria nenhum problema, e que poderíamos conversar ali mesmo. Estava naquela função por que o irmão tinha ido a São José do Mipibu/RN fazer algumas compras e a quitanda não poderia ficar fechada.

Minha admiração fora pela quantidade de tempo que eu não visitava o assentamento e que, também, não via Gilmara. A última vez que tínhamos nos avistados foi em fins de Maio de 2015 e as minhas visitas ao assentamento tinham se encerrado antes que isso. Tive, pouco depois desse período, a felicidade em encontrá-la num evento estudantil em Bananeiras/PB.

Com um sorriso empolgante, Gilmara se dispôs a responder e sanar muitas das minhas inquietações. Buscá-la como ponto inicial para o desbravamento das teias de sociabilidades criadas pelas jovens é crucial, uma vez que, ela pode ser colocada como tipo ideal, um caso singular de sucesso na interação com a cidade e os meios metropolitanos, tais como a educação formal e o engajamento político. No início de nossa conversa, revelou o quanto eu estava com sorte de encontrá-la no assentamento naquele momento, pois, logo realizaria uma viagem para a Argentina na semana que se seguia. Estaria num evento internacional no qual representaria a Pastoral da Juventude Rural nacionalmente.

O evento estava sendo organizado pela Via Campesina e tinhapor intuito a formação de lideranças rurais espalhadas pelo mundo, principalmente dentro do segmento jovem. Para que a ida e permanência de Gilmara na Argentina se efetivassem, a Via Campesina financiariaos gastos dela através da Pastoral da Juventude Rural/RN.

Neste ponto, fiquei intrigado pela grande relação global que, através da Via Campesina, gera possibilidades de jovens em lugares tão particulares consigam circular por

espaços de diversidade a nível global. Acredito ser uma das facetas da Via Campesina: tornar possível a relação entre as ações micro num sentido local, estabelecendo relação com as campanhas mundiais num plano global. Além disso, perceber a complexa circulação de capital por capilares até chegar ao fomento do deslocamento de uma jovem para um evento internacional em um país estrangeiro.

A inserção da juventude e das mulheres em fluxos transnacionais é recorrente, principalmente para quem pretende entender a complexidade estabelecida na formação de coletivos jovens e feministas na atualidade. Como percebeu Schwade e Paiva (2014), a inserção da figura feminina em movimentos sociais de vínculo rural perpassa uma resistência diante das realidades locais, possibilitando experiências diversificadas às mulheres e aos jovens que conseguem entrar nesses fluxos.

Obviamente que a formação de uma entidade como a Via Campesina perpassa um processo histórico-social complexo de demandas locais dos mais diversos pontos do planeta no que tange às questões rurais e suas implicações, e que se refletem numa condensação de representatividade global. Nesse processo longo e potente, a infiltração em demandas locais é perceptível quando observada no deslocamento transnacional de uma jovem para experiências internacionais. O peso de trafegar transnacionalmente por entre os movimentos e segmentos sociais realça a construção subjetiva dos sujeitos mediante o contato com a variedade de experiências fora da comunidade de origem.

A participação em coletivos de formação política, por exemplo, são ações diretas de instâncias transnacionais numa comunidade rural, bem como os eventos de cunho político que arregimentam segmentos específicos, como a juventude e/ou as mulheres em prol de emancipação dos sujeitos. O Intercambio e Feira Nacional de Saberes e Sabores da Juventude Camponesa que ocorreu em Caruaru/PE em 2016, é um exemplo de aglutinação da juventude em torno de um ponto em comum que é a preservação do conhecimento tradicional local frente ao processo desenfreado da modernidade em estabelecer o fim do rural (BLUME, 2004).

Ao saber do deslocamento de Gilmara, questiono sobre o impacto que gerou nos demais residentes do assentamento com a notícia de que ela estaria indo numa viagem internacional representar os jovens rurais do Brasil. Ela comenta que houveram alguns boatos e comentários sobre a viagem. Alguns questionamentos sobre o mérito dela ser a única escolhida dentre os demais jovens. Todavia, o falatório e os discursos desconexos não surtaram grandes impactos na busca por melhorias e oportunidade que tanto sonha essa jovem.

Gilmara ganha realmente destaque entre os/as demais jovens. Há algum tempo, ela conseguiu estabelecer um vínculo para além do assentamento e com muita perseverança continua a mantê-lo. Depois da conclusão do ensino médio, que ocorreu todo em escola pública na cidade de São José do Mipibu, ingressou no curso técnico de agropecuária pela Escola Agrícola de Jundiaí – UFRN; ao concluir, prestou assistência técnica por dois anos a um grupo de jovens que produziam agricolamente pela REDE GPR (Rede de Grupos de Produção e Resistência) no estado da Paraíba. Atualmente, ela cursa a graduação em Ciências Sociais da Terra pelo PRONERA/UFRN.Tal curso busca a formação de jovens rurais no curso de Ciências Sociais sob a modalidade de licenciatura, gerando um segmento de profissionais especializados em refletir criticamente a situação rural, bem como, a permanência desse segmento no meio rural enquanto promulgador de transformações sociais locais.

No final de 2011, ao ir a um dos encontros da Pastoral da Juventude Rural/RN, Gilmara se identificou bastante com o lema que organiza a pastoralque é resumido por ela como: “a luta para o jovem continuar no campo com dignidade sem precisar ir para cidade em busca de emprego e ser explorado”. Engajou-se politicamente enquanto militante na causa da juventude rural, tanto é que está à frente da Coordenação Nacional da Pastoral da Juventude Rural do Rio Grande do Norte e representa a Pastoral da Juventude em diversos eventos. Como representante de uma entidade, circulou por muitas localidades e enumera algumas como: Bahia, Ceará, Sergipe, Pernambuco, Pará, Goiás, Brasília e algumas dezenas de cidades e recantos potiguares.

Enquanto me enumerava todos os lugares por onde passou, graças ao envolvimento com os movimentos rurais, como o Movimento de Mulheres Camponesas, Movimento de Trabalhadores Rurais e o Pastoral da Juventude Rural; Gilmara mexia em seu aparelho celular atenciosamente, e me explica, abrindo um parêntese, que se tratava de um curso de idioma que estava fazendo via aplicativos em seu aparelho android. Aprendia espanhol, numa preparação para a viagem que realizaria em poucos dias. Animada, conta-me que estava aprendendo também sobre os costumes argentinos, “precisava estar preparada para não estranhar nada”, falou-me. Através de um instrumento de conexões com a internet, aprendia o idioma e os costumes da cultura que logo estaria em contato.

O engajamento nos movimentos de vínculos com a terrapossibilitou à Gilmara um leque de possibilidade de circulação entre os espaços, principalmente o acesso a uma discussão progressista e inovadora com implicâncias direta sobre o cotidiano a juventude no campo. A dinamicidade e organização introjetada pela participação de um segmento político

lhe ofertou um espírito de liderança, o qual o maneja muito bem na lida com as demandas de sua comunidade e serve de inspiração para os demais jovens.

Refletindo a situação dela, relembro uma conversa com outro jovem no início de minhas visitas ao assentamento. J. é um dos rapazes da comunidade, tem 26 anos e estava à frente da organização dos jovem para a formação da associação7. Em meio à conversa surge a afirmação de que não haveria a influência do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) dentro da comunidade do Vale do Lírio. Na fala da jovem, “o MST não manda mais aqui”. A ideia de “mandar” refere-se ao acompanhamento que o Movimento realiza em algumas comunidades, prosseguindo com o processo de formação e politização dos moradores de assentamentos rurais. Neste sentido, devo concordar com a ideia da jovem, mesmo que em partes, pois, se pararmos para observar o assentamento Vale do Lírio, não há qualquer referência a filiações ou vínculos com o MST8.

Todavia, tal observação é falha, uma vez que, dezenas são as maneiras do Movimento de Trabalhadores Sem-Terra atuar numa comunidade rural, como por exemplo, os muitos eventos de organização juvenil que são realizados na própria comunidade e que ficam sob o guarda-chuva da Pastoral da Juventude Rural. Torna-se limitada a observação míope sobre as influências do MST sobre a comunidade em questão. O exemplo de Gilmara é fabuloso, se encarado como tipo ideal de entrosamento com as questões rurais sob a custódia do MST em relação à igreja católica.

Até mesmo se pensarmos distante, longe dos eventos efetivos que congregam jovens e adultos dentro e fora da comunidade, o MST age indiretamente sobre a produção e permanência do assentamento enquanto uma comunidade autônoma e produtiva. Basta que lancemos uma especulação sobre como funciona os muitos investimentos e liberação de créditos fundiários para os moradores dos assentamentos rurais, de uma forma geral. Existe, pois, negociações que estão intrinsecamente envolvendo o MST enquanto intermediador e articulador de propostas que beneficiam de alguma forma os moradores de assentamento rural junto às instituições fundiárias como, por exemplo, o INCRA. Tal situação é bastante polêmica, cabendo desdobramentos em trabalho futuros e mais densos.

Quero assim apresentar que o próprio caminho trilhado por Gilmara, por intermédio do envolvimento politizado com movimentos sociais, está sob a influência de correntezas

7 J. é um dos jovens que passou a residir na cidade, mora e trabalha na cidade de Parnamirim/RN.

8 Refiro-me aos símbolos físicos de relação ao MST, que podem ser encontrados com recorrência em alguns

assentamentos, tais como bandeiras, pinturas, um ou outro morador usando uma camisa ou boné. Pude perceber esses símbolos em outros assentamentos que visitei, também sob a orientação e companhia da profa. Dra. Elisete Schwade, a exemplos, Paulo Freire III em Pureza/RN e Aracati em Touros/RN.

maiores como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra e por definição, com fluxos transnacionais de lutas do e pelo campo.

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