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C ONEXÕES DO FEMININO , OU SIMPLESMENTE UMA QUESTÃO DE AGÊNCIA

Dentre os sujeitos que simbolizam o meio rural, a figura da mulher camponesa é a mais específica e clara de se produzir na mente enquanto uma figura estereotipada. Mesmo assim, a figura feminina se constitui enquanto símbolo de luta e resistência política e ganha cada vez mais visibilidade dentro dos movimentos rurais como apresentado por Schwade e Paiva (2014). Congeladas numa imagem que remete ao passado, as muitas mulheres rurais inserem-se numa estrutura na qual prevalece o domínio do macho (SAFIOTTI,1987),mas, que

aos poucos, está sendo alterada pela busca de emancipação e autonomia.

Sem sombra de dúvida, a realidade feminina rural é perpassada pela autoridade masculina, no que se refere ao controle das ações e dos desejos. Podemos olhar para um quadro no qual as mulheres ainda estão sob o julgo masculino em um lugar, como coloca Millie Thayer (2001, p. 103), “por onde os ventos de uma civilização cada vez mais globalizada ainda não sopraram”.

Existem aos montes espaços nos quais o imperativo masculino é lei. Contudo, focar em análises que recorram apenas, e tão-somente, a este ângulo é limitar-nos em possibilidade de desbravar as múltiplas realidades que o meio rural nos apresenta e dos muitos movimentos de emancipação da mulher camponesa. O meio rural e o feminino que nele desabrocha é constantemente alterado pelo contato das mulheres com o urbano. Este, a que podemos colocar como um novo cenário para as mulheres rurais, no qual elas são as protagonistas, dialoga com movimento de emponderamento feminino a nível global, fruto de movimentos modernos de libertação da mulher (THAYER, 2001).

O contato intensivo com o urbano é um dos aspectos do movimento de quebra de fronteiras e infiltração de tendências dinamizadoras do cotidiano dos assentamentos. Como apontei no capítulo anterior, as barreiras que separam o rural do urbano são tênues e estão obsoletas. As implicâncias dessa desintegração de distâncias entre o aqui e o acolá sobre as ações das mulheres rurais são extremamente fortes se pensarmos no aumento de laços criados por elas com as cidades próximas às comunidades onde moram. As mulheres do Vale do Lírio, por exemplo, conseguem em sua maioria uma efetiva relação como a cidade por meio de trabalhos assalariados e educação formal. Um afastamento parcial da realidade rural da comunidade.

A existência de mulheres que conseguem estabelecer uma relação com o urbano de uma forma mais completa e efetiva que as demais mulheres, produz uma dinamicidade no interior do assentamento, principalmente na introspecção em outras mulheres de projetos pessoais voltados para o sucesso no meio citadino. Isso fica claro quando presente em relatos de uma das moradoras do assentamento Vale do Lírio, proprietária de um salão de beleza numa cidade próxima à comunidade, convida uma das moças locais para auxiliá-la no serviço. Percebo a felicidade da moça ao falar que iria trabalhar na cidade. A animação da jovem M., de 17 anos, no momento em que foi convidada foi de pura alegria, apenas em saber que se deslocaria para a cidade vizinha cotidianamente. Começar a trabalhar como ajudante num salão de beleza é mais um ângulo da intensa relação com o espaço urbano, uma vez que, a relação antes limitada apenas aos estudos, passa a ter o teor de contrato de trabalho, ou de outra forma, uma relação mais jurídica de manter o contato com a cidade.

Podemos, ainda, aprofundarmos nessa situação se pensarmos que M. será ajudante de outra moradora da comunidade que conseguiu se firmar economicamente na cidade, desenvolvendo uma autonomia significativa, tanto em relação à esfera financeira quanto as liberdades individuais de circulação num ir-e-vir do assentamento.

As mulheres que mantém uma estrita relação com as cidades próximas, segundo Gilmara, são mais independentes financeiramente. Dentre as mulheres residentes do assentamento, boa parte delas já se firmou em algum emprego nas cidades vizinhas e, por isso, conseguem manter um padrão de consumo diferenciado do restante das e dos moradores do assentamento.

Uma das situações referenciada por Gilmara e outras moças, é a de que “certa vez, procuravam fulana [a pessoa não é citada]. Ela não estava no assentamento. Quanto deram conta, estava na timeline do Facebook a foto de um passeio num shopping center, numa das ida ao cinema”, relatou Gilmara. A mulher a quem é referenciada, já trabalha há algum tempo na cidade de Parnamirim e goza de certa autonomia financeira em relação às demais. Muitas das maneiras de interação com o meio urbano (SIMMEL, 2013) se dá pelo consumo de bens

materiais, geralmente ofertados apenas no meio citadino, como idas ao cinema e praças de alimentação em shopping centers.

Podemos observar que as mulheres jovens do assentamento Vale do Lírio podem ser subdivididas em dois grupos: as mulheres jovens com ou sem filhos que já se estabeleceram em empregos na cidade, possuem relativa autonomia econômica; e as mulheres que, ainda, não se inseriram no mercado de trabalho, sendo dependentes da família, na qual a relação com a cidade é mediada pela esfera familiar que impõe limites e estabelece normas para idas e vindas das cidades, neste grupo a interação com o urbano é ligada basicamente na busca pela educação ou vínculo religioso.

Em ambos os grupos, o lazer e o consumo são formas importantes e presentes, mas que são estabelecidas de maneiras singulares. Se nos voltarmos para o grupo das mulheres independentes, o consumo é autônomo e com consequências diretas sobre elas, ou seja, são sujeitos da ação. As mulheres que possuem um poder aquisitivo maior, aquelas que conseguiram se estabilizar economicamente na cidade, portam uma ação ativa na realidade (ORTNER,2006). Em outro ângulo, o segundo grupo, o consumo é atravessado e limitado pela

família, e as consequências estão ligadas diretamente a família. Autonomia pode ser sinônima de agência positiva.

As mulheres mais maduras, “sabem o que querem”, argumentou A. certa vez. Elas conseguem relativa autonomia, tanto na liberdade de circulação para cidade, quanto de manter certo conforto dentro da comunidade, como a administração de um empreendimento próprio e, com isso, a geração de renda.

Para Sherry Ortner (2006), a agência dos sujeitos pode ser definida enquanto uma mescla de intencionalidade e relações de poder. A intencionalidade, dentro da “estrutura

elementar da agência” (Ibid, p.69), seria a propriedade imanente na elaboração de planos e esquemas que efetivam algum propósito do sujeito. Ou seja, quais os anseios e afetos impulsionam as mulheres a estabelecerem lutas cotidianas contra uma realidade ressequida em limitar a ação feminina? Autonomia e realização pessoal? As perguntas são férteis, as respostas as mais diversas.

Em contrapartida, temos a mesclagem da agência com o poder, uma correlação de forças de dominação e resistência que estrutura o cotidiano. Muitas das vezes, tal correlação de força encontra no gênero o ponto central (ORTNER, 2006).A generificação das atividades

produtivas pode ser realçada com facilidade no meio rural.A estrutura rural é esboçada no encadeamento proposto pela Beatriz Heredia (1979), numa dicotomização dos espaços entre o masculino e o feminino. A estrutura dual funciona em separar significativamente a unidade de produção e a unidade de consumo. O masculino é definido em roçado- o trabalho- a produção, enquanto o feminino como casa- o não trabalho- o consumo.

Nessa polarização, encontramos as resistências, principalmente de jovens que desejam fugir da realidade estagnada que separa a ação masculina da feminina em detrimento de limitar a liberdade de circulação entre as esferas. Os rapazes deslocam com maior fluidez. Possuem a resguarda de seu gênero. Como apontou dona T., “os rapazes vão sempre às festas na cidade”. Essa afirmação torna-se completa com entonação e as feições deixadas por dona T. na frase. Um sorriso é o aceno de concordância com o contexto.

No lado inverso da moeda, temos o caso de K., uma jovem de 24 anos, bastante ativa na comunidade, articula com Gilmara boa parte das ações jovens no interior da comunidade. Segundo K., empenha-se em poder trabalhar ou exercer alguma atividade no lote familiar. Contudo, encontra muitas barreiras definidas pelo pai, um impedimento em exercer qualquer atividade na terra da família. Seu irmão, ao contrário, possui por obrigação a tarefa de auxiliar nas atividades do campo, plantando, colhendo e vendendo o que é produzido no lote.

Como ela mesma comenta, “não posso ficar esperando pelo meu pai, tenho que fazer um meio de vida”. K. empenha-se nos estudos. Está fazendo o segundo grau do ensino médio, numa escola estadual da cidade de São José do Mipibu. As moças, em sua maioria, não conseguem se inserirem nas atividades voltadas ao manejo da terra. Pelo menos esta é a realidade encontrada na comunidade. Estudar na cidade tornou-se rota de fuga, uma possibilidade de realização dos projetos individuais (CASTRO, 2005a).

Deslocar-se para as cidades próximas demanda um esforço significativo na busca da realização pessoal. A intencionalidade e as grades de poder acionada por Sherry Ortner (2006) ficam claras quando voltadas para ações individuais em suas demandas cotidianas. É claro

que podemos correr o risco de enrijecer a situação, dando a entender que por ausência de inserção das moças na comunidade, principalmente no meio produtivo-econômico local, elas acabam por se esvair para as regiões urbanas, situação a que devemos pontuar. Conquanto, as exceções estão presentes também na realidade da comunidade. A jovem Gilmara que foi apresentada anteriormente, ao conseguir formação especializada no campo de conhecimento agrícola, voltou-se para o assentamento Vale do Lírio com o intuito de incentivar a juventude local na geração de renda e permanência no campo.

A fofoca como desenvolvida por Claudia Fonseca (2000), é, nesse caso, uma ferramenta de domínio sobre as ações das jovens que conseguem entra no fluxo rural-urbano. A circulação das jovens pela cidade é fruto de comentários maldosos dentro da comunidade. Como expôs certa vez seu P., numa de minhas visitas, “por aqui têm umas putas também, como tem em todo o lugar”. Afirmações como estas dão indicativos de constantes observações e mapeamentos dos próprios moradores da comunidade para com as atitudes e ações das moças que circulam.“Ficar falada”, bem resumiu J., de 19 anos, uma das netas de dona E., moradora do assentamento desde o acampamento. A circulação pelos espaços é definida por prerrogativas morais do que é aceito ou não. Em sua maioria, a imagem feminina é a mais resguardada.

Dona E. é um exemplo de contato e circulação com a zona urbana. Em uma de minhas visitas a casa dela, sou bombardeado por muitas histórias das diversas viagens dela pelo estado do Rio Grande do Norte, tanto é que na semana recente a minha visita, ela tinha realizado uma formação política organizada pelo MST na cidade de Currais Novos/RN.10 Contou-me sobre como se sentia bem em viajar e conversar pessoas diferentes e aprender muitas curiosidades. Insistiu que eu a acompanhasse para conhecer o diminuto plantio de morangos dela. Três a quatros morangueiros eram o espetáculo que precisava para mostrar o quanto ficava contente em aprender algo novo. Suas netas seguem outro caminho, comenta dona E. Envolvem-se pouco nas atividades que os jovens realizam no assentamento, passando a maior parte do tempo em São José do Mipibu/RN, pois além de frequentarem a escola regular, participam de cursos pré-vestibulares. Almejam entrar na universidade pública.

A busca pela educação não está limitada aos cursos universitários. Os cursos profissionalizantes também contribuem para que haja a circulação de moças pelos espaços. Tem o exemplo de A., jovem de 25 anos, tímida em certos momentos, mas desenvolta quando

10

Neste ponto, podemos perceber mais uma forma de contato do Movimento dos Trabalhadores Rurais com os moradores do Assentamento Vale do Lírio. A influência do MST é constante e sútil, oferecendo formação política e possibilidade deslocamento dos sujeitos.

se trata dos assuntos que gosta. Por volta do mês de Agosto de 2015, quando eu realizava minha última visita ao assentamento naquele ano, A. tinha iniciado um curso de formação para pedreiro na cidade de Parnamirim/RN através do Senac, que oferta cursos profissionalizantes nas mais diversas áreas. Ela tinha decidido construir o muro da casa onde mora, e assim o fez.“Ela trabalha melhor que qualquer homem”, afirmou dona T., em ocasião a uma de minhas visitas.

A. frequenta a academia de ginástica na cidade de São José/RN. Segundo ela, prefere ir à cidade, pois se sente mais à vontade. Consigo uma rápida conversa com ela, numa breve passagem por sua casa. Sob a pressa, tinha planos de construir um pequeno quarto na lateral de sua casa. Deixou claro que se tratava da busca de privacidade e conforto para ela, que em suas palavras foram resumidas em “quero um canto só meu”. A tal busca por um recanto de autonomia e privacidade fica expressa no jeito tímido de falar, mas firme na assertiva: “eu preciso de um lugar para dizer que é meu”, declarou no meio da conversa.

Com muita pressa, mas sem demonstrar deselegância, fala que estava de saída naquela ocasião. Estava de saída para Parnamirim. Sua ida era em virtude de um passeio que ela e as amigas tinham agendado para aquele dia. Conta-me que, possivelmente, voltaria para casa apenas no dia seguinte. Estava programando dormir na casa de uma amiga. Com um sorriso, confessa-me que prefere estar na cidade, no caso em Parnamirim, pois gosta bastante de andar pela praça à noite “com a galera”. A circulação pelo urbano “com a galera” é sinônima de liberdade em relação ao cotidiano da comunidade. Poder perambular abertamente por outras esferas para além do assentamento é tido como alegria.

Podemos, a essa altura, saliente uma tensão em relação aos projetos de vidas (DURSTON, 1996) entre, por exemplo, a jovem A. e a jovem L. Como apresentado no capítulo anterior, enquanto A. deixa claro que possui planos para adquirir autonomia em relação aos demais membros da família e sua permanência na comunidade encaminha-se fortalecida, pois, construindo um “quartinho” só para ela, conseguirá estabilidade e autonomia dentro da comunidade. Em outro ângulo, o jovem L. deixa-nos claro que sua permanência na comunidade é temporária, afinal, aposta todas as fichas no empenho que possui no curso que realiza, pretendendo inserir-se no campo de trabalho do Serviço Social.

Em ambos os casos, o contato com o urbano é laço comum, mas as consequências ou a utilidade para a qual o contato é usufruído são distintas. De um lado, o contato é usado como fortalecimento da estadia no assentamento; do outro, usado enquanto instrumento de saída do assentamento. Temos, então, maneiras distintas de negociações de cada jovem ao estabelecerem contato com o meio urbano. O fio de Ariadne que interliga as muitas mulheres,

jovens ou não, que residem no assentamento Vale do Lírio, é a imersão no fluxo entre o rural e o rural e o urbano. O contato com as cidades vizinhas. Suas narrativas e projetos são construídos sobre tal fluxo.

3.1.1 Uma anedota para o feminino

Contou-me K. que, acompanhando Gilmara, decidiram ir juntas à secretaria municipal de agricultura da cidade de São José do Mipibu. Precisavam de algum tipo de veículo que pudesse transportar uns jovens da comunidade para um evento organizado pela Pastoral da Juventude Rural na época. Decidiram conversar com o secretário de agricultura. O pedido foi negado com justificativas de ausência de verbas. A história ganha ares de epopeia nos momentos seguintes. Gilmara armando-se com uma navalha usada para abrir correspondência e, mirando o secretário municipal de agricultura, dá início a um discurso. Explica a situação hipócrita que permeia os períodos eleitorais, nos quais os candidatos circulam pelas localidades em busca de coletar possibilidade de votos para sua candidatura. Porém, no momento de exercer a função enquanto administrator público e auxiliar nas necessidades dos cidadãos, o que há são barreiras e empecilhos.

A reação de Gilmara ao ter o pedido negado foi inconsciente, argumentou ela em meio à fala de K. “Armando-se” instintivamente com um abridor de cartas, foi de longe uma reação que ela esperava ter. Melindroso, o secretário pede calma e voltando atrás nas justificativas concede o veículo às jovens, que prontamente se contentam e retornam para o assentamento contar a recente peripécia em afronta ao secretário municipal. Essa situação entra para o imaginário dos jovens locais.

Contada e recontada, torna-se cômica o encurralamento de um secretário por uma jovem rural. A força ativa de Gilmara frente à situação é realçada pela perseverança em conseguir beneficio em prol da juventude local. Situações como estas, na qual a imposição da presença feminina em determinada situação, torna-se objeto de destaque na produção de uma memória coletiva juvenil, e apontam para o forte posicionamento que as jovens mulheres têm que desenvolver para conseguirem se estabelecer ou realizar projetos.

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