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Inserido em campo, o pesquisador articula a exposição dos “comos” e dos “porquês” dos sujeitos ao se organizarem coletivamente. Nisto, admito que este trabalho em boa parte destina-se a tentar entender os “comos”, num sentido mais voltado para pensar o agir, o movimento de organização de um grupo jovem no assentamento Vale do Lírio/RN. Este tópico direciona-se para as representações existentes e articuladas dentro do assentamento Vale do Lírio sobre um grupo jovem, com a insistência de tratá-lo enquanto representação acordada pelos moradores da comunidade e efetivada pelos próprios jovens.

Minha experiência no referido assentamento mostra a propagação de um discurso sobre existência de um grupo jovem no interior da comunidade, e que tal grupo mobiliza politicamente os demais jovens em prol de benefícios coletivos. Desde o primeiro encontro com os residentes deste assentamento em abril de 2014, as falas são articuladas para

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Elicitação é uma adaptação da palavra inglesa (to) elicit, significando resumidamente “fazer sair; provocar; desencadear”, no sentido de trazer à tona. Para uma explicação mais detalhada ver nota do tradutor em Wagner (2012, p. 220).

demonstrar a existência de tal grupo dentro da comunidade, e essa foi minha primeira impressão durante um das reuniões que tive com as mulheres e os jovens do assentamento.

Sob o sol forte esperamos reunidos na calçada da pequena igreja católica da comunidade – alguém se dispusera a pegar as chaves para abrir as portas -. Um grupo de mulheres se formava ao nosso redor, com a presença de alguns jovens – contei sete, entre rapazes e moças -. Entramos na igreja e nos organizamos em círculo, movendo os bancos para que pudéssemos sentar e olhássemos uns para os outros. Dona T inicia a reunião, deixando claras as demandas do grupo: fomentar um projeto que beneficie jovens e mulheres, os primeiros em especial. Os jovens se reúnem, são organizados. Esses são

os interessados – aponta para uns jovens -, pensam em montar uma associação (Trecho do meu diário de campo, abr. 2014).

A constante ênfase atribuída à existência de um grupo jovem pode ser trabalhada por muitos ângulos de análise, mas seguirei com uma reflexão sob influência do antropólogo Roy Wagner, no que se refere a uma discussão simbólica da construção da cultura e seu processo infindável de invenção e contrainvenção.

Ao pôr em prática um olhar mais clínico sobre os fenômenos, passamos a observar detalhes antes despercebidos. Estar atento às pequenas reuniões e encontros com os residentes do assentamento Vale do Lírio, possibilitou-me perceber que a formação/produção do grupo juvenil surge mediante um discurso comum e coletivo, que ressoa no interior do assentamento e é confirmado pelas ações dos jovens, ou seja, a quase insistência em localizar, delimitar e pontuar a existência de um grupo jovem no interior dessa comunidade incita os jovens a reivindicarem tal delimitação para si.

Os residentes “mais velhos” acionam a expressão grupo jovem e delimitam aqueles abarcados por essa expressão; falando e apontado, os adultos desenvolvem um discurso que se torna gestos e ganha objetividade. Aqueles apontados passam a pertencer ao grupo jovem, delimitando-se, assim, o coletivo juvenil. Quando não é acionado o termo grupo, é estipulado apenas como jovens no plural, buscando abrangência coletiva da identificação.

Podemos pensar esse processo no patamar de uma invenção (WAGNER, 2012), articulando a efetiva influência do discurso (plano simbólico, das subjetividades e das metáforas) sobre o a ação concreta do jovem (plano material, das objetividades e das convenções), e vice-versa, num processo cíclico ou quase-dialético no qual o grupo jovem se instaura objetivamente e ganha status de existente.

Se pensarmos ao nível de construção social da realidade como proposta por Peter Berger e Thomas Luckmann (2011), poderemos visualizar a esquematização do processo que

instaura a realidade, sob a qual a objetividade e a subjetividade incidem uma sobre a outra, sempre na produção de uma nova etapa do processo. Não obstante, o processo não se conclui numa síntese dialética, mas numa massa inacabada que será trabalhada e entrará no processo novamente. O grupo jovem é acionado, criando-se limites e definições num processo de resistência e aceitação; os jovens assumem para si a identificação, gerando, então, uma realidade concreta. Há uma invenção concretizada no grupo juvenil por meio de representações como encontradas nas falas de alguns residentes do Vale do Lírio sobre a recorrência de reuniões e a elaboração de metas para projetos futuros por parte os jovens. Bem coloca Wagner (2010, p. 60),

Os efeitos dessa invenção são tão profundo quanto inconsciente; cria-se o objeto no ato de tentar representá-lo mais objetivamente e ao mesmo tempo se criam (por meio de extensão analógica) as ideias e formas por meio das quais ele é inventado.

Em “Existem grupos sociais nas terras altas da Nova Guiné?” (WAGNER, 2010),

podemos encontrar uma discussão sobre a produção de grupos social ou sua imposição diante de determinadas “grupidades” (Ibid., p. 237) em culturas não-Ocidentais. Percebemos em Wagner (2010) uma atenção dada aos erros cometidos por parte dos pesquisadores em atribuir a existência de grupos sociais em sociedades outras que não a deles, ou a elaboração de estudos “como se” existissem grupos sociais nessas sociedades, sendo a formação ou organização social em grupos perpassada por concepções ocidentais do que venha a ser uma organização coletiva que, por sua vez, são lançadas sobre outras formas de organizações sociais diferentes da nossa.

As possibilidades de produção da realidade são ampliadas para além das fronteiras de domínio do pesquisador, transmutando-se não apenas aos desejos do pesquisador e suas necessidades práticas de cunho teórico-metodológico, mas são aplicadas para dar conta dos processos inventivos dos sujeitos imersos em seus próprios contextos. Temos um discurso gerando ação, gerando um ator social, ou seja, representações acordadas e postas em práticas pelos próprios sujeitos inseridos do processo.

Pode soar como se a juventude do Vale do Lírio fosse apenas uma criação do discurso coletivo em efetivação. No entanto, a função do discurso é de fazer surgir, trazer à tona a juventude em sua concretude, não no sentido de a juventude existir como um material in broto pronto para ser acionado pelo discurso, pelas falas dos moradores, mas no sentido de

uma singularidade que reivindica para si a existência. O grupo jovem pode ser posta como resposta atuante diante de uma incitação exterior promulgada por um coletivo adulto.

Diante d a produção e a efetivação do grupo jovem e sua constituição enquanto ator político, percebemos a imbricação da longa querela indivíduo/sociedade tão cara as ciências sociais, mas que se perdem na seara de invenção e contrainvenção do grupo jovem. Temos, até esse ponto, como esboçar o poder coercitivo do discurso reivindicado pelos jovens na esfera de consolidação do grupo jovem. Explico: ao tomar para si o discurso sobre a constituição de um grupo, o próprio grupo o utiliza como forma coercitiva de existência, tornando sólida a representação do coletivo formado com pompas de existência sui generis. O teor construído fica nebuloso até mesmo para aqueles que o constituem.

Discutir o processo de produção de realidade ou a formação de um grupo social têm implicâncias sobre o modo de abordar o agir dos jovens diante da realidade instaurada, uma vez que, proponho-me a trabalhar a juventude enquanto construída pari passu na busca de legitimidade social e política dentro e fora do assentamento, sempre deixando clara a constituição das identidades enquanto produção política de subjetividades.

Discutir identidade é discutir negociações políticas, negociações dentro de sistemas de força que envolvem poder. A reivindicação de identidade é política, e por isso, a reflexão sobre identidades é tão cara às ciências sociais (BERGER; LUCKMANN, 2011). O pesquisador insere-se no campo levando consigo o dever ético de ser fiel ao objeto de estudo, numa relação de apadrinhamento, no qual suas argumentações saem em defesa do que foi visto ou ouvido em campo.

Com isso, se um ajuntamento de sujeitos se denomina enquanto grupo e possui uma legitimação perante a comunidade em geral, esse ajuntamento deve ser tratado enquanto grupo, mesmo que, para o pesquisador, esse ajuntamento não passe de um encontro fortuito desses sujeitos ou não possuam características de grupo, pelo menos não as características que o pesquisador acredite constituir um grupo. Se bem que, o esforço encontrado neste tópico é o de apresentar o princípio de formação do grupo jovem do Vale do Lírio na esfera simbólica, do discurso e de sua concretização na esfera da prática e da ação.

Posso, ao fim deste item, apresentar um das camadas no processo de produção de um grupo e de muita importância tratada por Wagner (2010; 2012) em suas reflexões, que é o peso e o impacto do pesquisador e de suas ciências perante o processo constituinte do fenômeno. A invenção não se desloca apenas no polo dos sujeitos estudados, mas no processo de consolidação de um trabalho científico como este, que acaba por entrar na miscelânea da invenção de realidade. Acabo por auxiliar, em certo grau, o status de existente do grupo

jovem ao delimitar e descrever a emulsão que constitui a relação do discurso coletivo e da estabilização em ações concretas por parte dos jovens.

O pesquisador instaura realidades ao escrever ou esboçar os fenômenos sociais numa intensa ação criativa. Aparecendo como agente sistematizador dos fenômenos, expõe a realidade, mas, e ao mesmo tempo, é levado pelos sujeitos estudados em sua produção da realidade. Temos, com isso, a ação inventiva atuando duplamente (polo-pesquisador e polo- pesquisado), estabelecendo um movimento inventivo se tomarmos inspiração wagneriana.

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APÍTULO

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A

DINÂMICA LOCAL

O aqui e o agora são instâncias de uma realidade fluída. O dualismo entre arcaico e moderno torna-se obsoleto num mundo de cultura global (HANNERZ, 1996), bem como o

longe e o perto se tornaram referências dos séculos anteriores. Se parássemos para analisar as movimentações a nível globalcomo os múltiplos movimentos voltados às questões rurais, perceberíamos a complexidade em tecer uma longa teia de interrelações e contato. Tomemos como exemplo o grande guarda-chuva que é a Via Campesina e suas implicações em localidades rurais das mais diversas espalhadas pelo mundo, poderemos perceber que os eventos locais e globais são produzindo em concomitância um com o outro; Ou, até mesmo movimentos como o Movimento da Mulher Trabalhadora Rural do Nordeste (MMTR), Movimento das Mulheres Camponesas (MMC). Podemos, ainda, apontar para a influência dos meios midiáticos sobre uma comunidade local, na qual os sujeitos possuem acesso à televisão, internet, rádio. Os efeitos das muitas maneiras de circulação da informação de nível global são incomensuráveis.

O contato que os assentamentos rurais estabelecem cotidianamente com as zonas urbanas circundantes são chaves para entender a situação de pura interação entre os espaços locais com fluxos globais de circulação da informação e de tendências. Podemos pontuar, ainda, que as mudanças locais como, por exemplo, a modernização do acesso à informação (uso de aparelhos celulares, computadores) faz parte da própria mutabilidade do local. Pode- se dizer que o próprio local produz a si mesmo pela variação (TARDE, 2007) em contato com

correntezas modernizadas encontradas nos meios urbanos.

Outra esfera que merece destaque em nossa discussão é o campo religioso no que tange a aglutinação dos sujeitos, dos jovens no caso dessa pesquisa, e os realocam em ações dentro da comunidade ou fora dela. Émile Durkheim (1996) denotava que a religião, como forma de conhecer o mundo, entraria em declínio no movimento de mudança da sociedade racional. Em meio a toda modernização do rural, como apontamos no capítulo anterior, o processo religioso surge como unificador do coletivo. No assentamento Vale do Lírio, três são as religiões que se efetivam dentro da comunidade. Dessa forma, podem ser postas em duas maneiras de ação no segmento jovem e, em consequência, a efetividade na produção de coletivos e emancipação dos jovens em relação à família e à possibilidade de tornar o assentamento rural enquanto meio para efetivação dos projetos de vida.

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