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O BRASIL E OS NOVOS PARÂMETROS DA GESTÃO PÚBLICA

GRÁFICO 2: AMÉRICA LATINA APOIO À DEMOCRACIA

O exame singelo dessa pergunta e das suas respostas exige definir o que se entende por democracia. Nesse sentido, o Latinobarómetro realizou uma pergunta aberta para que os entrevistados definissem democracia, junto com uma segunda pergunta fechada para complementar as respostas da pergunta aberta. A pergunta fechada, com as respectivas respostas, foi a seguinte: escolha uma só característica, que para você seja a mais essencial numa democracia: (a) eleições regulares, limpas e transparentes; (b) uma economia que assegura renda digna; (c) liberdade de expressão para criticar abertamente; (d) um sistema judicial que trate a todos por igual; (e) respeito às minorias; (f) governo da maioria; (g) membros do parlamento que representem a seus eleitores; (h) um sistema de partidos, em que haja competição entre eles. No Brasil, a opção mais votada foi a (b) com 37% dos votos, seguida pela (c) com 26% e pela (a) com 15%.

Não se pretende exaurir detalhadamente os informes do Latinobarómetro, mas duas observações preliminares, a partir dessas duas informações (apoio à democracia e significado da mesma) podem ser realizadas.

No tocante ao apoio à democracia apenas 37% dos brasileiros acreditam que a democracia é preferível a qualquer outra forma de governo. Conclui-se, portanto, que democracia não é um valor universal para 63% dos brasileiros, ou seja, quase dois terços.

Já no tocante à definição de democracia, a opção mais votada pelos brasileiros é: “uma economia que assegura renda digna”. É possível concluir que tal afirmação denota que 37% dos brasileiros vêem a democracia como um fenômeno que ultrapassa o caráter meramente procedimental da mesma. Ademais, esse resultado é mais relevante, considerando que nenhuma das outras sete alternativas registra uma opção que denote conteúdo econômico ou mesmo social. Por exemplo, nenhuma das alternativas da pergunta fechada contempla opções como “diminuição da desigualdade”, “redução da pobreza” “participação cidadã”, etc.

Outra iniciativa que merece destaque é o “Relatório sobre a Democracia na América Latina”, patrocinado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e publicado em 2004193, como parte de uma estratégia destinada a promover “a governança democrática e o desenvolvimento humano na

193 Em abril de 2004 foi publicado em espanhol e em novembro de 2004 foi publicado em português.

região”. A finalidade do mencionado relatório era avaliar a democracia, não apenas quanto à dimensão eleitoral, mas também, de forma mais abrangente, como um sistema de governo de cidadãos e cidadãs.

O termo “governança” deve ser mais bem explicitado, na medida em que o “Relatório” faz parte de uma estratégia para promovê-la, segundo o próprio PNUD. Para o dicionário, “governança” é sinônimo de governo (Aurélio Buarque de Holanda FERREIRA, 1997, p.698). Porém, atualmente, o termo vem sendo utilizado de forma mais abrangente, opondo-se ao modelo tradicional de governo que tem por princípio a autoridade estatal.

Entende-se por “governança” o conjunto de normas, crenças, convicções e procedimentos que regulam a vida coletiva de determinada sociedade, incorporando obrigatória e presuntivamente o conceito de participação cidadã à ação de governar, na medida em que inclui outros atores além do governo. A pergunta que deve ser feita é: quem são esses atores que devem “governar” junto com o governo?

A resposta a essa pergunta indicará de pronto que a definição de “governança” tem gerado amplo debate sem que qualquer consenso seja obtido. Portanto, é um conceito em disputa e não pode ser entendido como um termo neutro. Por exemplo, a leitura de qualquer jornal ou revista incluirá hoje termos como “governança pública”, “governança corporativa”, governança de TI (tecnologia de informação), “boa” governança.

François GRAÑA (2005, p.17), refletindo a respeito da “governança”, aponta o que considera os principais questionamentos aos teóricos da governança:

tende-se a confundir diagnóstico com prognóstico, de tal modo que a mera enunciação de certo estado de coisas fica associada a certas diretivas de transformação; certa interpretação definida da governança é apresentada como procedimento de validade geral, abstraindo as particularidades da sociedade em particular; insiste-se numa crise de legitimidade do Estado de bem-estar que não possui nenhuma comprovação empírica nos países europeus, onde as responsabilidades sociais dos Estados não só não diminuíram como foram incrementadas; a falsa equiparação de governo e governança, com a segunda substituindo a primeira, leva a confundir política com mercado, e a subestimar certas funções de governo que necessitam órgãos executivos centrais; a governança uniformemente apresentada como um imperativo de retração estatal nos países subdesenvolvidos, contribuiu paradoxalmente para uma maior deslegitimação do Estado e uma maior degradação social e política, acentuando a desproteção econômica e a desintegração social.

Em especial, o termo “governança corporativa” já pode ser encontrado inclusive no ordenamento jurídico brasileiro. A Lei nº 11.079 de 30 de dezembro de 2004 (conhecida como “Lei de Parcerias Público-Privadas”), no parágrafo 3º do seu artigo 9º, estabelece que “a sociedade de propósito específico deverá obedecer a padrões de governança corporativa”. Mas, afinal, qual o significado da expressão “governança corporativa”? A pergunta é pertinente, pois a lei não a define.

Mais surpreendente é constatar que no Brasil já existe até um “Instituto Brasileiro de Governança Corporativa” (IBGC)194, órgão que tem como meta principal contribuir para otimizar o conceito de “governança corporativa” nas empresas nacionais. Para cumprir com esse objetivo o IBGC criou iniciativas, tais como: o “Prêmio IBGC de Governança Corporativa”, destinado a identificar empresas que realizem boas práticas de “governança corporativa” (a primeira edição ocorreu em 2005 e a segunda encerrou suas inscrições em 11 de setembro de 2006); o “Congresso Brasileiro de Governança Corporativa”, com seis edições já realizadas, visando difundir o tema; o “Prêmio IBGC de Monografias em Governança Corporativa”, incentivando a produção acadêmica sobre a matéria; etc.

Mas nada é mais preocupante do que o uso de um termo indeterminante, como se fosse uma prática recomendável tanto à gestão pública quanto à gestão privada. Por exemplo, o BANCO MUNDIAL (1992, p.03) define “governança” como o exercício de poder político no gerenciamento dos assuntos do país. Mais detalhadamente, o termo enfatiza o gerenciamento dos recursos econômicos e sociais do país com o propósito de desenvolvimento. Essa definição ambígua busca disfarçar uma visão ultraliberal de uma Administração Pública adequada às necessidades do capitalismo. Entretanto, como já foi mencionado exaustivamente, as coincidências entre a Administração Pública e a privada ocorrem em tudo aquilo que não é essencial. Portanto, o termo “governança”, que contempla também a tomada de decisões (ato de governar), não parece ser um conceito que possa ser aplicado de forma indistinto ao público e ao privado.

Isso levou Leo KISSLER e Francisco H. HEIDEMANN (2006, p.482-483) a criarem o termo “governança pública”, para diferenciá-lo da “governança corporativa”, por exemplo. “Governança pública” é a ação conjunta de cidadãs e cidadãos, Administração Pública, sociedade civil organizada, empresas, entre outros, em prol do bem comum.

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Aclarado o contexto em que o termo “governança” vem sendo utilizado, volta-se à composição do “Relatório”. Na primeira parte, foi explicitado o marco conceitual e contextualizado o desenvolvimento da democracia numa região com altos níveis de pobreza e desigualdade. Na segunda, foram analisados os dados obtidos por meio dos indicadores e índices das cidadanias política, civil e social, da pesquisa de opinião da cidadania e da ronda de consultas a líderes latino-americanos. A terceira parte trouxe elementos e hipóteses para o debate sobre a consolidação, o fortalecimento e a expansão da democracia na América Latina, dando ênfase à crise da política, à capacidade dos Estados nacionais para construir a cidadania, às reformas estatais e estruturais da economia e ao impacto da globalização.

O método adotado para elaborar o relatório combinou critérios acadêmicos, sustentação empírica e participação de atores e analistas. Para isso, definiu-se um campo de estudo de dezoito países (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, El Salvador, Equador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Uruguai e Venezuela); preparou-se um marco teórico; realizou- se uma pesquisa de opinião respondida por 19.508 cidadãs e cidadãos dos países selecionados (no Brasil, a amostra foi de mil entrevistas e representa apenas a população urbana, tendo sido realizado a pesquisa de campo em 2002); a partir do marco teórico, formulou-se uma metodologia para medir aspectos fundamentais da democracia (os resultados foram expressos em mais de cem tabelas); realizaram-se duzentas e trinta e uma entrevistas com líderes políticos, econômicos, sociais e intelectuais dos países abrangidos pelo relatório (inclusive quarenta e um presidentes e vice-presidentes atuais e de períodos anteriores); realizaram-se oficinas de trabalho para discussão com especialistas sobre o marco teórico e a metodologia de indicadores e análise econômica, bem como seminários com líderes políticos e sociais para debater temas centrais do relatório; solicitaram-se artigos de opinião sobre questões centrais ou desafios a um conjunto de personalidades acadêmicas e políticas; fez-se uma análise do legado autoritário recebido pelas democracias nos países, considerando trinta variáveis por caso; e elaborou-se uma agenda ampliada para a discussão das reformas democráticas na América Latina, enfocada em quatro temas: política e democracia, Estado e democracia, economia e democracia e globalização e democracia.

O Brasil tem o 15º percentual de população considerada democrata, em dezoito países pesquisados. Apenas 30,6% dos brasileiros se enquadram nessa classificação,

contra 71,3% dos uruguaios (os mais democratas do continente) e 43% dos latino- americanos de modo geral. O país fica apenas à frente de Equador, Paraguai e Colômbia em percentual de pessoas com convicções democratas declaradas com base nos critérios apresentados pelos “pesquisadores” e supra comentados.