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2 A INGLATERRA VITORIANA: O CONTEXTO DE OSCAR

2.1 A GRÃ-BRETANHA DE VITÓRIA

Nesta subseção, descreve-se a realidade social da Inglaterra para contextualizar a produção literária de Oscar Wilde. O período Vitoriano compreende mais de sessenta e cinco anos (1837-1901), durante os quais significativas mudanças ocorreram, em todos os âmbitos. Uma delas foi a crescente tendência ao individualismo, à vida privada. Ao mesmo tempo, houve uma generalização dos costumes e sentimentos, principalmente entre os membros de uma determinada classe social e, mesmo, até entre as classes.

Segundo Carter e McRae (1998), o termo “era vitoriana” compreende quase todo o século XIX no Reino Unido. O período do reinado da rainha Vitória foi de grande avanço e prosperidade, igualando-o somente ao da Rainha Elizabeth. Houve uma transição da vida no campo para a existência na cidade e um aumento populacional e industrial sem precedentes. Grandes inovações, como o serviço postal, o telefone e o maquinário industrial, alavancaram o sucesso britânico. Entretanto, havia contrastes entre a opulência e a exploração de trabalhadores ingleses na Inglaterra e nas colônias do Império Britânico. Mas enquanto o continente europeu sofria com revoluções e levantes políticos (1848 foi chamado de o Ano das Revoluções), o governo Britânico manteve forte controle. Os movimentos da classe trabalhadora, os grupos pró-república, os sindicatos e as semelhantes manifestações dissidentes foram contidos tanto quanto possível.

Na literatura, entretanto, essa manifestação florescia (CARTER; McRAE, 1998, p. 273). 8 Com respeito à classe social e ao aspecto financeiro, Brown (1985, p. 4-6) relata que havia pouca mobilidade entre diferentes níveis sociais. Essa divisão era primordialmente baseada nas posses das famílias, especialmente no que concernem às terras, às outras propriedades e ao nome associado à prosperidade e tradição familiares. Eram três classes: a aristocracia, a burguesia e a classe trabalhadora. Os novos ricos não eram aceitos tão facilmente pela aristocracia tradicional, levando várias gerações para concluir o processo de aceitação de um núcleo familiar emergente. Os casamentos eram realizados por motivos econômicos e a população não mostrava escrúpulos em admitir esse fato. Havia uma divisão entre as pessoas que precisavam trabalhar para viver e aquelas que viviam dos lucros de suas propriedades e investimentos.

Esses aspectos sempre estiveram presentes na obra de Oscar Wilde. No conto O modelo milionário, por exemplo, a sátira, segundo Robbins (2011, p. 100) está na palavra modelo, que nessa obra tem o significado de “modelo para a arte e para a vida”. De aparência modesta, devido à personagem que interpretava, o Barão Hausberg corrige uma distorção de valores em relação à aceitação de outra personagem pela sociedade. O conto inicia com as seguintes assertivas, a respeito da sociedade vitoriana:

A não ser que tenha dinheiro, de nada serve a uma pessoa ser encantadora. O romantismo é privilégio dos ricos e não profissão de desempregados. O pobre há de ser prático e prosaico. É melhor ter renda permanente que ser fascinador (WILDE, 2003, p. 400).

O pobre homem retratado é na realidade o milionário que auxilia um pobre rapaz a concretizar seu casamento, com a doação de 10 mil libras. Apesar da abordagem leve do conto e da brincadeira sobre a vida que imita a arte, presente como mensagem de base, a crítica social também é parte constituinte do conto. As personagens Hughie Erskin,

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“But where mainland Europe suffered revolutions and political upheavals (1848 came to be called The Year of Revolutions), the British government kept a strong hold on power. Working-class movements, republican groups, trade unions and similar dissident expressions were contained as far as possible. In literature, however such expression flourished.”

com seu cabelo cacheado e seu belo rosto, mas nenhuma fortuna, o Barão Hausberg, com sua fortuna e nobreza, e Laura Merton, com sua aspiração de casar-se com Hughie, apesar da negativa do seu pai, são ilustrações das restrições dos papeis da sociedade vitoriana do fim do século XIX.

Havia ainda no mundo vitoriano a distinção das classes a partir da religião e da política. Segundo Brown (1985, p. 6), a maior parte dos ingleses da classe alta pertencia à Igreja Anglicana e defendia o partido conservador na política. Consequentemente, estes tinham todas as regalias em relação à concessão de cargos e propriedades dentro da igreja e desfrutavam de benefícios junto às universidades e às profissões. Cavalheiros tornavam-se advogados, membros do clero da Igreja Anglicana ou compravam postos na marinha ou no exército.

Os níveis mais altos da aristocracia, especialmente os donos das terras e seus primogênitos, gozavam de controle total de suas propriedades e de todos que nela habitavam. Decidiam tudo sobre a vida dos seus trabalhadores e muitas vezes também sobre a vida e a segurança de um determinado povoado.

A herança de uma propriedade não era simplesmente como a herança de uma mansão no campo onde se podia passar as férias; era mais como herdar uma grande empresa com a maioria das ações e um cargo vitalício de presidente da diretoria, mas com o poder de decidir sobre tudo (BROWN, 1985, p. 8).9

Brown (1985, p. 10) explica que havia vários níveis na aristocracia e, abaixo destes, os cavaleiros (Knights) e os cavalheiros (Gentlemen) e suas famílias. As suas esposas eram chamadas de damas (Ladies) e não tinham direito à propriedade e nem à herança. Assim, sua única possibilidade de sustento era um casamento bem sucedido. Caso contrário, terminariam como governantas em casas de família.

Os gentlemen deveriam demonstrar ganhos de pelo menos ₤200.000,00 por ano, a fim de sustentar sua casa, sua família e empregados e não precisar trabalhar. Assim, seriam considerados membros da pequena nobreza. Novos membros das classes mais altas passavam a se comportar de acordo com sua nova posição social e isso

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“To inherit an estate and title was not like inheriting a mere manor house in the country to which one could retreat on holidays; it was more like inheriting a large company with majority interest and a lifetime position as chairman of the board, but with the power to decide every issue oneself.”

gerava o esnobismo ou o “sentimento de pertencimento à classe”. Os nobres ou baronetes eram os mais cotados na pequena sociedade inglesa, de forma semelhante, segundo Brown (1985, p. 14), à maneira que os americanos de hoje idolatram as celebridades.

As peças de costumes de Oscar Wilde eram um retrato da vida vitoriana, mas às avessas, com algum tipo de quebra da expectativa, uma inversão de papéis ou chacota de instituições, com a finalidade de provocar o riso, a reflexão, a surpresa e desencadear mudança. Wilde escreve a peça Uma mulher sem importância (1893) durante uma temporada com a família em Norfolk, cidade litorânea (SCHIFFER, 2010, p. 172). De acordo com Raby (2010, p. 151), o enredo apresenta um pai, Lord Illingworth, que aliciou e desamparou a bela Rachel Arbuthnot no passado e no presente usa o subterfúgio de um emprego para conquistar a confiança de Gerald, seu filho bastardo dessa relação. O órfão é um personagem recorrente no teatro wildiano e esta peça apresenta os exemplos de Gerald Arbuthnot e Hester Worsley, uma puritana dos Estados Unidos.

Segundo Raby (2010, p. 151), a conotação moral e social nesta peça é bastante intricada, pois Wilde engendra o contexto social de forma planejada. No primeiro ato, por exemplo, apresenta-se a varanda de uma grande casa inglesa, com os convidados sentados sob uma árvore, refletindo uma imagem de prosperidade assegurada. Nada indica o ambiente rural da vida inglesa, pois os empregados trazem xales, almofadas e cartas aos convidados e patrões, transformando o jardim em uma extensão da casa. À medida que a peça se desenvolve, o sentimento de calma se perde gradativamente. Lord Illingworth desestabiliza esse falso equilíbrio com suas falas desconcertantes e suas atitudes surpreendentes e da mesma forma faz a convidada Sra. Allonby, uma pessoa de comportamento questionável, apesar de vir de um berço adequado dentro da sociedade local. Os construtores da identidade do indivíduo, na Europa do século XIX, eram as instituições, o sistema de classes, o casamento, a família, as leis e a convivência social (GAGNIER, 2010, p. 20).

Raby (2010, p. 152) defende que esses personagens de Wilde insinuam o esteticismo e o decadentismo: deixam o jardim e preferem a artificialidade do interior da casa. A Sra. Allonby instiga Lord Illingworth a beijar a puritana Hester, destruindo a falsa aparência de civilidade da casa. A Sra. Allonby menciona: “o Livro da Vida começa com um homem e uma mulher em um jardim e ele termina com o apocalipse” (WILDE, 2000, p. 63), refletindo certa crítica à convenção do casamento.

Além dos sistemas social e familiar, exemplificados na obra de Wilde, ressaltam-se as profissões e o mundo do trabalho no contexto de vida do escritor. Na real Inglaterra vitoriana, as camadas da sociedade viviam e trabalhavam de formas diferentes. Os membros da burguesia se ocupavam do comércio, enquanto a classe operária trabalhava na indústria emergente e nas workhouses, onde pessoas de todas as idades trabalhavam em condições sub-humanas. As mulheres operárias trabalhavam na indústria, enquanto que as damas das classes abastadas permaneciam no ambiente doméstico e assim, tornavam-se excluídas das atividades públicas em geral. Suas poucas oportunidades de convívio eram nas festas, nos saraus e passeios no campo, na companhia da família.

O aumento das profissões masculinas não ligadas a terra, ou aquelas centradas no ambiente público, isolou as esposas dos maridos com tal intensidade que excluiu as mulheres da participação ativa na sociedade. Até mesmo na vocação das artes, segmento tradicionalmente não conformista, o ideal do trabalho era uma concepção totalmente masculina (BROWN, 1985, p. 68-69).10

No século XIX, as relações conjugais mudaram em relação aos séculos anteriores. Devido à melhoria do padrão de vida, o papel das esposas, sobretudo da classe alta, modificou-se, pois não precisavam mais assegurar os trabalhos domésticos e a manutenção das finanças do lar. Brown (1985, p. 72) descreve que, em casa, as esposas passaram seus afazeres para os serviçais e, assim, tornaram-se adornos dos lares mais abastados e parceiras no ócio dos homens de classe alta, que também não trabalhavam. As atividades como pintura, bordado, a prática da música e a manutenção de sua aparência impecável de dama faziam parte do universo feminino dessa época. Os maridos eram os administradores e proprietários dos bens e fundos das esposas, mesmo que suas posses fossem advindas de sua própria família.

Segundo Hall (2009, p. 63), a segmentação do universo do homem e da mulher foi potencializada pela visão que tinham do mundo externo ao lar: um mundo público cheio de perigos e imoralidade. Os homens seriam salvos dessa influência prejudicial pela sua relação

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“The increase in male professions unrelated to the land, or centered outside the home, isolated wives from husbands as fiercely as it excluded women from active participation in society. Even in the vocation of art, traditionally one of nonconformity, the work ideal was an all-male conception.”

regular com a esfera doméstica. Os homens ingleses desejavam uma casa individual, onde pudessem usufruir dos amenos prazeres da convivência conjugal, com uma esposa submissa e dependente, enquanto estes se engajariam cada vez mais nas atividades profissionais e externas à sua casa. O ideal proposto pelas igrejas era de que a aristocracia abandonasse sua vida pregressa de depravação e ócio e viesse a se encaixar nos moldes controlados de comportamento da burguesia e da classe operária, aceitando a fidelidade ao casamento.

Exemplos das relações entre gêneros são prolíficos nas obras de Wilde. Na peça Um marido ideal, por exemplo, verifica-se inversão de papeis entre Sir Robert Chiltern e Lady Chiltern. Sir Robert Chiltern é o cônjuge com um passado comprometedor, que procura manter a imagem de perfeição para sua esposa, Gertrude, a fim de que possa ser adorado (WILDE, 2003, p. 715-786). Normalmente na literatura e no teatro, espera-se que a mulher seja o exemplo de boa conduta e digna de idolatria.

Além de Wilde, outros autores da época perceberam a mesma diversidade em relação às questões de classe e aos problemas provenientes da revolução industrial. E naturalmente o polissistema literário absorveu as questões emanadas pelos polissistemas social e cultural. Assim, a literatura da época vitoriana foi prolífica em termos de crítica social, em relação aos papeis sociais e especialmente à árdua realidade gerada pela Revolução Industrial.

O final do século XIX estimulou a propagação da literatura decadentista. Exemplos são as obras Às avessas (1884), de Joris-Karl Huysmans, e em O prazer (1889), de Gabriele D’Annunzio (1863- 1938). Fonseca e Rocha (2010, p. 99) sublinham que a poética decadentista tem suas características próprias, com a figura do escritor marginal, a independência da arte em relação aos preceitos sociais, o dandismo, o gosto pelo refinamento e a conquista da liberdade. Des Esseintes, personagem de Huysmans, sintetiza as crenças do decadentismo, quando reclama da tediosa uniformidade da natureza:

Como ele costumava dizer, a natureza já teve a sua vez; cansou definitivamente, pela desgastante uniformidade das suas paisagens e dos seus céus, a paciência atenta dos refinados. No fundo, que chatice de especialista confinado a seu papel; que mesquinharia de lojista apegando-se a determinado artigo com exclusão dos demais; que monótona coleção de prados e árvores, que banal

agência de montanhas e mares! (HUYSMANS, 2011, p. 89).

No contexto literário dessa época, os livros que pregavam o sentimentalismo e a moral restritiva eram abundantes. O próprio Wilde escreve em 1877, para o periódico Irish Monthly, o artigo intitulado O túmulo de Keats. Nele relata sua visita ao antigo cemitério protestante em Roma, na qual se depara com o túmulo de seu adorado poeta, cena que descreve com sentimentalidade exacerbada:

Parado junto ao túmulo daquele maravilhoso rapaz, imaginei-o como um Sacerdote da Beleza falecido antes da hora, e a visão de São Sebastião de Guido, surge diante de meus olhos, exatamente como o vi em Gênova: um adorável jovem moreno, de cabelos cacheados e lábios vermelhos, amarrado a uma árvore por seus inimigos e que, apesar de trespassado pelas flechas, erguia seus olhos com uma expressão divina e apaixonada pela Eterna Beleza dos céus que se abriam. E, então, meus pensamentos tomaram a forma de versos: nenhum cipreste sombreia seu túmulo, nem qualquer teixo funerário / mas apenas margaridas rubras, violetas orvalhadas / E sonolentas papoulas, que recolhem a chuva ao entardecer (WILDE, 1999, p. 17-18).

A admiração por John Keats (1795-1821) e sua obra estaria presente em outros poemas de Oscar Wilde a ele se reputa a inspiração para Ravenna e a temática de outras obras poéticas wildianas. Em meio a essa realidade política, social e literária desenvolveu-se Oscar Wilde. A seguir, abordam-se os eventos ocorridos na vida do escritor e sua ligação com a produção literária do autor.