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A EQUIPE E O ATENDIMENTO

2.2 ORGANIZAÇÃO DAS ATIVIDADES DA MSE-MA

2.2.4 GRUPOS DE FAMÍLIA E TERAPIAS COMUNITÁRIAS

Além das visitas domiciliares, que incluem a família de uma maneira muito direta nos atendimentos, há ao menos outros dois momentos em que elas são convidadas ou convocadas a participar. Os Grupos de Família envolvem uma gama de atividades, que vão de palestras ou cursos temáticos até reuniões com os técnicos ou com a coordenação. São também descritas nos documentos como Grupos de Família as festas como a do Dia das Mães, do Dia das Mulheres, da Páscoa etc. As Terapias

63 Em A polícia das famílias, Donzelot demonstra como elas foram convocadas, desde o século

XIX, a se deixarem vigiar, tornando-se instrumentos privilegiados de governo. Conferir também Rohden (2003), que ao discutir a criminalização das práticas de aborto e infanticídio no Brasil na primeira metade do século XX também evidencia esses elementos.

64 Fonseca (1995) demonstra como, nos estudos acadêmicos e no

“senso comum”, a ideia muito presente de “fragmentação” da família está diretamente relacionada com a de uma “totalidade hipotética do passado”, ou ao “mito da família unida” (: 70). Essa “família ideal” estaria em processo de desagregação com as transformações econômicas e sociais capitalistas. Seu argumento é o de que o modelo de família que se tornou hegemônico nas classes médias é transportado para as classes populares, de modo que suas próprias dinâmicas históricas, que orientam seus valores e práticas, sejam ignoradas e ofuscadas por um sistema de valores preestabelecido.

Comunitárias, por sua vez, atingem um público restrito, cerca de quinze mães por mês. O tom das conversas e as exigências que as colocam ali também são bastante diferentes. Nos dois casos, a predominância absoluta de comparecimentos é das mães ou avós dos atendidos. Pouquíssimos pais frequentam esses encontros, mas quando o fazem são muito valorizados.

Nos meses em que estive em trabalho de campo, pude participar de alguns Grupos de Família. Foram reuniões organizadas ao longo de 2012 por cada um dos técnicos com os pais ou responsáveis de todos os seus atendidos. Foi uma ideia da coordenadora, que diz que os Grupos são uma oportunidade de constatar se os atendimentos de cada técnico estão dando certo ou não. Algo como um termômetro das medidas no núcleo65.

Nos dois Grupos de que participei e, com certeza, em pelo menos mais um outro (sobre o qual pude ler o Instrumental) algumas características foram comuns. Os técnicos organizaram suas falas, apresentaram um mesmo vídeo aos presentes sobre a responsabilidade de cada um66, a coordenadora também participou e conversou com

os pais, principalmente sobre escolarização, profissionalização, presença no núcleo. Mas também, ao menos nesses três que acompanhei direta ou indiretamente, variações se multiplicaram. Em um deles, o assunto escolhido pela técnica para nortear as discussões foi a sexualidade. Em outro, o padre Maurinho conversou com os pais sobre o problema da drogadição e a necessidade de a família também procurar ajuda. No último, não houve tema previamente escolhido ou participação de convidados.

Nos três Grupos a frequência dos pais foi considerada satisfatória pela coordenadora. Os assuntos mais trabalhados foram as oportunidades oferecidas pelo

65A coordenadora afirmou orgulhosamente que doze dos quinze pais dos meninos atendidos

por determinado técnico tinham participado de uma das reuniões, em comparação a reunião de outro em que só uma mãe compareceu na data marcada, evidenciando que “alguma coisa está errada ali”.

66 Link do vídeo no Youtube: http://www.youtube.com/watch?v=TFKCG5816iw (acessado em

núcleo e pela Obra, as necessidades de acompanhamento da medida pelos familiares, a importância da matrícula, frequência e desempenho escolar dos meninos das medidas (para que os juízes acatem as sugestões de encerramento dos técnicos), e o valor da autoridade dos pais dentro de casa.

Para a equipe, os Grupos de Família são uma possibilidade de conhecerem os responsáveis pelos adolescentes que atendem, e sentirem se podem contar com o

respaldo familiar em cada um dos atendimentos. Esse respaldo manifesta-se no apoio

dos responsáveis às tentativas de conseguirem matrícula escolar, na obtenção de documentos ou no o exercício da autoridade dentro de casa, impedindo que o adolescente mantenha amizades inadequadas ou se envolva com o “meio infracional”. São valorizadas as famílias em que o responsável mantém um trabalho formal e estável, e que dá atenção e carinho aos filhos. São mal vistos os pais que desistem de seus filhos, que não acreditam em sua mudança, que preferem a internação.

Além das reuniões com os técnicos, participei de um Grupo em que um palestrante, ex-usuário de drogas, apresentou aos pais e aos adolescentes o problema da dependência química. Também estive presente na Festa de Páscoa e do Dia das Mães, em que das maneiras mais diversas, a valorização do envolvimento das famílias foi central. A responsabilidade e a autoridade são trabalhadas lado a lado com um discurso de não culpabilização da família e de negação das justificativas dos atos dos adolescentes pela precariedade de suas condições socioeconômicas. As famílias são incentivadas a aproveitarem as oportunidades oferecidas pelo núcleo e a, mesmo reconhecendo os limites do Estado (encarado como aquele que não oferece todos os serviços públicos necessários, ou que não os oferece com a qualidade desejada), abraçarem os serviços públicos que são ofertados. Porque ainda que o caminho seja mais difícil para aqueles que moram na periferia, as famílias não deveriam se contentar com os discursos de vulnerabilidade social. A Obra está lá para eles, é só aproveitar. Com frequência são oferecidas oportunidades de emprego e auxílio na elaboração de currículos. A baixa adesão das famílias nessas atividades é

considerada pela equipe como um sintoma de descaso com os meio lícitos de ganhar a vida, e sinal do pouco respaldo que podem oferecer aos meninos atendidos.

As Terapias Comunitárias são mensais e conduzidas por duas das técnicas formadas em psicologia. Também nesses encontros, ambas apressam-se em afirmar que a proposta não é a de um atendimento psicológico, e que sua formação acadêmica não lhes dará um lugar privilegiado para a condução das reuniões. Diferem-se dos Grupos de Família na forma como os temas são tratados, mas principalmente por sua relação com exigências legais e judiciais. Nos documentos que vêm do Judiciário ou das unidades da Fundação CASA, e nos próprios relatórios de fechamento do núcleo ou na Obra, as terapias são chamadas de Grupos de Apoio à Família. Esses encontros não são apenas uma oportunidade oferecida pelo núcleo às famílias, como o grupo de geração de renda, os encaminhamentos às entrevistas de emprego ou os convites às festas da Dom Bosco. São mais do que isso, ou algo distinto em relação aos tantos encaminhamentos que o núcleo faz. Porque a oportunidade que está em jogo, muitas vezes, é a que o filho das participantes consiga o encerramento da medida ou a liberação da Fundação CASA.

A dinâmica das Terapias Comunitárias envolve uma lista de orientações iniciais, para que as participantes não deem conselhos e não manifestem suas preferências religiosas. Costumam dizer que “o que funciona bem para uma pode não funcionar para as outras, mas a troca de experiências pode ajudar a todas”. São convidadas a contarem seus sofrimentos ou suas conquistas, principalmente os que envolvem os meninos atendidos pela Dom Bosco ou internados nas unidades da Fundação CASA. Em algumas reuniões, as técnicas preparam dinâmicas ou temas que possam conduzir as conversas, mas sempre ressaltam que as próprias mães estão convidadas a participarem das proposições dos temas que guiam os encontros. Estive presente em quatro dessas reuniões, sempre fui apresentada como uma voluntária do Núcleo de Proteção Psicossocial Especial (NPPE). Em todas as reuniões, o público não superou quinze mulheres. Apenas uma vez presenciei a

participação de um pai, e um dos adolescentes atendidos também esteve em um encontro, acompanhando sua avó. Além das mães e avós, algumas companheiras (namoradas ou esposas) dos meninos também frequentam a Terapia. Quase sempre há crianças no grupo, levadas por algumas das participantes.

Para as técnicas responsáveis pela condução dessas atividades, a Terapia auxilia as mães, através da troca de experiências, a buscarem “recursos internos” para lidarem bem com a situação em que seus filhos se encontram. Para isso, expõem no grupo detalhes de suas famílias, de seus trabalhos, e do tipo de relação que mantém com seus filhos. É fato que o que elas dizem no grupo raramente fica registrado nas pastas dos meninos, mesmo quando as técnicas que os atendem são aquelas responsáveis pela terapia. De qualquer modo, trata-se de um espaço em que a exposição da organização familiar e dos sentimentos que atravessam essas relações são condição ou exigência da medida. No limite, ainda que as mães decidam por uma presença marcada pelo silêncio, estão expostas às realidades de outras mães, às histórias de outros meninos que, como os seus, envolveram-se em atos infracionais. Como a medida socioeducativa não se limita à noção de um pagamento à sociedade proporcional à mazela cometida (vide infra, 4.1.3), ela exige que os adolescentes e suas famílias recobrem “a memória toda sua vida nos mínimos atos e acontecimentos, expondo-a, examinando-a por todos os lados” (Kafka, 2005: 128). As próprias mães muitas vezes entendem o peso legal de suas participações e percebem que as medidas socioeducativas de seus filhos estão diretamente atreladas aos seus envolvimentos, como manifestou uma delas em um dos encontros:

Eu posso falar, não tenho vergonha não, porque eu acho que está todo mundo na mesma situação, não é? Eu tenho meu filho de 19 e esse de 15, mas já tinha chegado a um ponto que eu já tinha abandonado. Eu coloquei para fora de casa. Porque eu falava, pode falar o que for, mas a gente paga junto, paga até mais. Eu falava: ‘não fiz nada! Por que tenho que pagar? Tenho que ficar indo lá?’. Porque é como você falou [se referindo a outra mãe]. A gente trabalha, tem que ficar fora de casa. Aí tem que perder dia, fazer um monte de coisas por causa das coisas erradas que eles fazem?

Para as técnicas, o espaço é de ajuda às mães, mas também de formação de opiniões próprias sobre a educação que cada uma dessas mães pôde dar a seus filhos. Por outro lado, não desconhecem ou ignoram o caráter estatal ou jurídico desses encontros. Sabem que a eficácia das reuniões é garantida pela soma de, ao menos, dois fatores: a troca enriquecedora de experiências e a assinatura nas declarações de presença que cada uma daquelas mães deve receber. Sabem também que, aos olhos do juiz, o peso dessa assinatura oblitera todos os diálogos, todas as exposições, toda a abertura. Ainda que o juiz não tenha acesso ao que foi dito, é a ciência de que a família do adolescente foi participativa e o respaldou – características sinalizadas de uma maneira especial nesses encontros – que garante o entendimento de que o adolescente pode contar com o respaldo familiar tão frequentemente exigido nas medidas.

Assim, embora a maioria das atividades se apresente como convite, muitas delas acabam sendo obrigatórias. Em vários casos, o juiz já determina no Termo de

Entrega do menino a “participação da família em grupos de apoio”67. Nesses casos, as

técnicas têm que fornecer declarações para que no momento de elaboração dos relatórios os responsáveis por cada caso informem ao juiz se a família foi participativa ou não. Além das mães dos meninos atendidos no núcleo, outras, cujos filhos ainda estão em medida de internação na Fundação CASA, também devem participar. Para elas, as declarações são feitas para que sejam entregues na unidade de internação em que seus filhos se encontram. “O juiz não libera se não tiver respaldo familiar”, disse-me uma das secretárias. Respaldo que precisa ser declarado, assinado.

Nos relatórios (tanto nos da Fundação CASA como nos da MSE-MA), a necessidade de participação da família também fica muito evidente. A família (em especial a genitora) é chamada a assumir a responsabilidade e estar sensibilizada em

67 As características e a importância desse documento serão tratadas no capítulo 3. Por hora,

basta dizer que é através deste documento que o juiz estabelece as metas que deverão ser cumpridas ao longo da medida socioeducativa.

relação ao caso de seus filhos ou parentes68. Esse chamado é legal. “O juiz

determina”, o ECA cita, os relatórios informam. O comprometimento da família aparece como decisivo para o sucesso no pedido de encerramento da medida. Afinal, um dos “princípios da execução das medidas socioeducativas”, de acordo com o SINASE (art. 35 º, inciso IX) é o “fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários no processo socioeducativo”.