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Metas e ações: rigidez e maleabilidade na construção do atendimento

A ELABORAÇÃO DOS DOCUMENTOS NA MEDIDA

3.2 A INTERPRETAÇÃO DO TERMO E CONSTRUÇÃO DO ATENDIMENTO A entrega do Termo pelo adolescente às secretárias e, posteriormente, ao

3.2.4 Metas e ações: rigidez e maleabilidade na construção do atendimento

A distinção entre metas e ações é descrita no SINASE, embora não apareça no ECA. O documento, que recentemente recebeu força de lei, dedica seu quarto capítulo totalmente aos objetivos e características do PIA. São oito artigos que descrevem quais os tópicos obrigatórios do documento e seus objetivos. O artigo 52º, por exemplo, certifica que

o cumprimento das medidas socioeducativas, em regime de prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade ou internação, dependerá de Plano Individual de Atendimento (PIA), instrumento de previsão, registro e gestão das atividades a serem desenvolvidas com o adolescente. Parágrafo único. O PIA deverá contemplar a participação dos pais ou responsáveis, os quais têm o dever de contribuir com o processo ressocializador do adolescente, sendo esses passíveis de responsabilização administrativa, nos termos do art. 249 da Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), civil e criminal.

As tarefas de precisar, registrar e gerir as atividades dos adolescentes extravasam os limites do núcleo com a exigência de envio do PIA ao DEIJ. Evidentemente, mesmo antes desta exigência, os juízes participavam muitas vezes, como já demonstrado, na precisão das atividades através do Termo de Entrega. Cabia aos técnicos, por outro lado, registrar e gerir as possibilidades, e contar com a concordância do juiz ao final da medida. A partir da instauração do SINASE, as coisas mudaram. Caberá ao juiz e aos promotores e defensores participarem ativamente da construção do atendimento desde seu início. Embora ainda seja tarefa do técnico

redigir o PIA, ele precisará contar com a aprovação do Judiciário antes de dar início às atividades. Em outras palavras, mais forças atravessariam a construção deste documento central ao andamento das medidas.

A proposta (não totalmente instaurada até o final de minha pesquisa de campo), é que essa circulação de documentos se dê através de um sistema online de informações, ao qual os núcleos e o Poder Judiciário terão acesso. Nesse sistema, ficariam determinadas metas fixas e atividades ou ações maleáveis. No momento da sugestão de encerramento o juiz levaria em conta o alcance dessas metas. Elas seriam o parâmetro objetivo nas determinações judiciais.

Muitos problemas em relação a esta proposta logo foram levantados por vários técnicos em um curso promovido por outro núcleo de atendimento em meio aberto na Zona Leste com uma representante da Defensoria Pública. Os debates foram longos e acalorados. A principal objeção do público presente era o prazo para o envio: quinze dias. Os técnicos e representantes de vários núcleos pronunciaram-se contra a possibilidade de estabelecer metas tão rígidas logo em um primeiro atendimento, sem que conhecessem os meninos e suas necessidades individuais. Acionaram o próprio SINASE em sua argumentação, afirmando que o prazo estipulado no artigo 56º se contrapunha ao princípio da individualização, descrito no artigo 35º.

Neste curso, a defensora pública convidada a apresentar o SINASE e discutir as dúvidas dos educadores explicou que a fixação de metas foi um pedido da própria Defensoria para evitar que juízes, ao receberem as sugestões de encerramento de medida dos meninos, determinassem novas metas que precisassem ser atendidas antes de acatarem a solicitação.

Mas adolescente a gente sabe que agora quer uma coisa e amanhã já quer outra. Em quinze dias a gente vai ter que estabelecer as metas para os seis, doze meses de atendimento? E não vamos mais poder mexer depois?

perguntou uma educadora de outro núcleo de MSE-MA, recebendo o apoio de quase todos os outros presentes. A defensora explicou então que as metas deverão ser fixas,

mas as atividades para se alcançar essas metas poderão e deverão variar sempre que necessário ao longo dos meses. E o sistema deve ser informado. No momento do encerramento, caso o juiz não leve em conta aquilo que foi determinado no PIA pelo educador, a Defensoria terá armas para argumentar.

Mas, pensando em questões mais técnicas, práticas, como o preenchimento do documento, que entender como meta? E quais as atividades possíveis? Importante reforçar que os núcleos não trabalham a partir de documentos oferecidos pelo Judiciário. Como demonstrado, cada um deles elabora seus próprios modelos a partir de orientações e conversar com os funcionários da CAS-Leste ou de outros núcleos com quem têm contato. Como, então, desenhar uma tabela que fosse aceita pelos juízes e o que registrar em suas lacunas?

Os modelos da Dom Bosco, como descrito acima, são elaborados pelo método das tentativas e recusas. Quando conseguem que uma de suas propostas seja elogiada pelo DEIJ ou pela CAS, transformam-na em um modelo fixo. No caso do PIA, quando os técnicos passaram a enviar a sua nova tabela juntamente com os Relatórios, alguns problemas permaneceram. O que são as metas? O que são as atividades? Qual o grau de objetividade que se pode dar a um prazo? Quando não cumprido, deve-se rapidamente avisar o Judiciário, ou há uma possibilidade de flexibilização das datas-limite para as ações dos meninos?

No curso do SINASE, a defensora citou alguns exemplos de metas fixas e de atividades maleáveis. Escolarização formal, cursos profissionalizantes, inserção no mercado de trabalho são exemplos dessas metas e, como já salientado, muitas vezes já vêm delimitadas no Termo de Entrega. É só a partir daí que os educadores podem individualizar seu atendimento, por exemplo, escolhendo o melhor período na escola, o melhor curso profissionalizante, as melhores opções de atividades lúdicas e culturais na medida, as alternativas para a família, os possíveis encaminhamentos para pleitearem vagas de emprego etc.

As metas do PIA, portanto, podem ser pensadas como uma moldura ou um quadro de regras básicas e comuns, que ditam os caminhos na medida, embora permitam (ou exijam) diferenciações caso a caso. Mas, nem tudo está resolvido com essas orientações. Ouvi muitas vezes em campo, dos próprios funcionários, opiniões como a manifestada por uma das técnicas, de que

o problema das MSE é que é muito aberto. O juiz fala uma coisa, o promotor fala outra, o defensor outra, a SMADS outra... E quem tá no meio é a gente e a família. A gente fica meio perdida às vezes.

Mesmo a rigidez do quadro de metas parece ser dotada de certa porosidade. Lidar com essa porosidade nos atendimentos e saber lançar mão de argumentos que permitam que a rigidez reapareça no momento de escrita dos relatórios parecem ser a tarefa central dos técnicos.

Para a equipe da Dom Bosco, a diretriz da distinção entre metas e atividades não se resolveu facilmente. Quando eu perguntei ao grupo de técnicos qual era o seu entendimento sobre o preenchimento do novo Contrato de Compromisso, disseram- me que os prazos são exclusivamente baseados no que os próprios técnicos imaginam que podem conseguir. Sobre as metas e atividades, deram-me um exemplo: na área da escolarização, uma meta poderia ser a inserção na rede pública de ensino, e a atividade é sensibilizar e encaminhar o adolescente.

Já no fim de meu trabalho de campo, tive acesso a onze Planos Individuais de Atendimento redigidos por quatro técnicos diferentes. Ficaram evidentes as variadas possibilidades de preenchimento do Contrato, apesar de a equipe ter conseguido desenvolver um padrão que a auxiliasse. É possível dizer que as metas foram entendidas como a inserção do adolescente na rede – desde a obtenção de seus documentos, até o mercado de trabalho, passando pela escolarização e capacitação profissional. No caso das famílias, o leque das metas parece ser mais amplo. Os técnicos propuseram, nos vários casos que acompanhei, “participação da família no grupo de apoio e orientação”, “que a genitora possa respaldar o filho de forma mais

precisa”, “que a genitora angarie subsídios para conseguir respaldar ao adolescente”, “que a genitora consiga refletir sobre a dinâmica familiar”, “fortalecimento dos vínculos familiares”, “auxílio à genitora em sua inserção profissional e inserção do nome do genitor nos documentos do adolescente”. As ações também se concentraram nos encaminhamentos, orientações, sensibilizações, convites e convocações.

Apesar de ser possível encontrar um padrão, ou o desenvolvimento de uma estratégia de preenchimento desse quadro, as variações não devem ser desprezadas81. Justamente porque elas revelam a maneira dinâmica como se

constroem os saberes nas medidas socioeducativas. No campo da família, por exemplo, os técnicos que propuseram como meta o maior respaldo da genitora, entenderam como ação a inserção no grupo de apoio e orientação, ou seja, justamente aquilo que tinha sido compreendido como uma meta por outros tantos técnicos.

A equipe discute os casos de atendimentos mais complexos em reuniões com a coordenadora, mas também conversa muito sobre a elaboração dos seus documentos, participa de vários cursos, reescreve aquilo que julga não estar correto (Latour, 2010: 84-85). Ainda assim, esses PIAs variados foram encaminhados ao DEIJ. Mesmo com o uso de expressões e propostas muito semelhantes entre os PIAS, há um esforço considerável dos educadores na busca de uma escrita que não possa ser acusada de subjetiva ou pouco técnica por um lado, mas que também não se padronize a ponto de serem encaradas como sintoma de uma “massificação dos atendimentos”.

Esse equilíbrio precisa ser trabalhado a todo o momento, justamente através dos cursos, das formações, do diálogo entre os membros da equipe, mas

81 A questão apresentada por Deleuze e Guattari (2008), em suas discussões sobre a

padronização e as variações sistemáticas é também utilizada por Vianna (2010) em sua reflexão metodológica sobre quais caminhos seguir na escrita de sua etnografia (: 57-58). Acredito que no caso dos técnicos das medidas, esse mesmo problema se coloca, ainda que em uma outra amplitude. O problema central no trabalho dos técnicos, sob seu próprio ponto de vista, é lidar com duas diferentes lógicas constantemente: a das padronizações legislativas que impõem modelos rígidos demais, e as variações constantes que precisam enfrentar em cada atendimento, como demonstrado ao longo do presente capítulo e do que segue.

principalmente através do desenvolvimento de estratégias de escrita, de um exercício linguístico da redação dos documentos (Vianna, 2010: 278). É preciso aprender – e isso leva certo tempo – a escrever relatórios e documentos bem fundamentados.