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2 AS REVOLTAS CAMPONESAS NA FORMAÇÃO DA REPÚBLICA

2.1 A GUERRA DE CANUDOS

A Guerra de Canudos, inserida neste mesmo contexto das transformações sociais, políticas e econômicas ocorridas durante o processo de implantação da República, teve caráter defensivo contra o governo local, contra o governo federal e contra a Igreja. Ela ocorreu entre os anos de 1893 e 1897, durante o governo de Prudente de Moraes. Antônio Vicente Mendes Maciel, apelidado por seus seguidores de Antônio Conselheiro, contestava, a partir de suas pregações político-religiosas, entre outras coisas, o casamento civil e a instituição da República.

O declínio da produção açucareira, as constantes secas, a prepotência dos coronéis-fazendeiros e a formação da nova ordem política nacional republicana foram os principais fatores e subsídios que os sertanejos encontraram para agregarem-se ao movimento de Conselheiro.

Correndo a notícia da fundação do arraial, logo para lá se dirigiam pessoas de vários estados do Nordeste como do Ceará, Pernambuco, Alagoas, Minas Gerais e até de São Paulo, todos procurando encontrar melhores perspectivas de vida. (MOURA, 2000, p. 31).

Juntos formaram o povoado de Canudos, localizado numa velha fazenda abandonada no sertão baiano. A prática messiânica de Conselheiro foi a maneira encontrada pelos sertanejos para traduzir sua vontade de construir uma ordem social diferente. Canudos era habitado por sertanejos sem-terra, vaqueiros, ex-escravos, pequenos proprietários pobres, homens e mulheres perseguidos pelos coronéis ou pela polícia, entre outros adeptos do movimento. Em pouco tempo o povoado passa a ser uma das regiões mais populosas da Bahia, reunindo um número aproximado de 30 mil habitantes.

Dada a manutenção dos contatos econômicos e sociais com as vilas e cidades da região, o arraial teria de ser criado em uma área que possibilitasse o acesso dos simpatizantes do Conselheiro. Devido ao número de seguidores, o peregrino tinha de encontrar um local próximo a uma fonte de água e que tivesse razoável base econômica inicial, permitindo atender às necessidades mais imediatas. (VILLA, 1999, p. 55)

No arraial de Canudos, a produção era comunitária, onde havia a troca ou venda dos excedentes, a propriedade privada existia apenas nos objetos de uso pessoal, como roupas, móveis etc. A população do povoado seguia normativas próprias, como a proibição da prostituição e do uso de bebidas alcoólicas. Alheia à realidade republicana nacional, o povoado representava o anseio de escapar da miséria e da exclusão social, sendo uma alternativa de fuga da dominação dos grandes coronéis.

A organização econômica da comunidade seguia a tradição sertaneja. Os conselheiristas, desde os anos de peregrinação, adquiriam gado por meio de esmolas, caçavam e auxiliavam os pequenos agricultores no plantio e colheita através de mutirões. Esta prática comunitária se manteve durante a constituição do arraial, pois parcela considerável da população – mulheres, crianças, velhos e desvalidos de toda a ordem – não estava vinculada à produção agrícola ou a pecuária. Assim, a cooperação no processo produtivo foi elemento essencial para a reprodução da comunidade, dada as condições do solo e do clima e o baixo desenvolvimento das forças produtivas. (VILLA, 1999, p. 65)

A estruturação da república brasileira significava, no campo político, consolidar e sustentar, constitucionalmente, a busca pelo progresso social e econômico. Este processo era movido pelas elites agrárias e não incluía a população campesina. O novo regime republicano possuía bases frágeis, pois a sua instauração foi elaborada sem um projeto político claro e alternativo a monarquia. Conforme relata Eli Napoleão de Lima

A República apressou as aspirações de progresso econômico e social, mas os sertões permaneceram ignorados pelo poder público, continuando as parcelas menos favorecidas da população campesina à mercê de sua própria sorte, vislumbrando “no outro mundo” a saída para a sua miséria terrena. O movimento, de raízes populares, era visto pelos expoentes-mandatários da Nação como uma gravíssima ameaça, e o desfecho foi seu aniquilamento pelas tropas do exército (LIMA, 2008, p. 242).

Canudos acabou se tornando uma ameaça para a base latifundiária e para o Coronelismo. Os instigadores de sua invasão foram os mandantes locais, receando perder o seu poderio na região e o seu domínio sobre a força de trabalho rural, assim como a própria Igreja, que também via a sua autoridade ameaçada. O crescimento do povoado foi temido por fazendeiros baianos e pela elite política local, pois seus ideais eram contra os seus interesses políticos. Para a igreja católica, Antônio Conselheiro e seus seguidores desviavam os fiéis. Para os proprietários de terra e o governo, Canudos representava uma ameaça, tanto pela ocupação das terras quanto pelo não pagamento dos impostos. Esse grupo considerava os retirados em Canudos, e seu líder, como “fanáticos, loucos e monarquistas”. (BORIS, 2008).

As tropas dos coronéis locais, do governo estadual baiano e do exército brasileiro aliaram-se em favor da extinção do povoado. A Guerra de Canudos passou a ser o maior evento jornalístico nacional do final do século XIX e um dos temas mais discutidos no país. Grandes nomes da literatura brasileira, como Euclides da Cunha, Olavo Bilac e Machado de Assis, no primeiro momento, escreveram artigos criticando os revoltos. Num momento posterior, Os Sertões11 de autoria de Euclides da Cunha, assume a importância de ser uma das principais referências para os estudos do povoado de Canudos.

A obra de Euclides da Cunha mistura ciência, literatura e história, pois mesmo possuindo lapsos, assume o papel de criticar os destinos anunciados pela república. Antes de Os Sertões, a produção sobre a Guerra de Canudos e a formação do Arraial se destacavam pelos escritos de militares, estudantes de medicina e jornalistas, por isso, a obra, além da importância temática relativa à guerra, possui também a importância pela densa descrição do interior – sertão baiano – oposto a realidade do litoral do Brasil.

11 Os Sertões é um livro brasileiro, escrito por Euclides da Cunha e publicado em 1902. Euclides da

Cunha presenciou uma parte desta guerra como correspondente do jornal O Estado de S. Paulo, e ao retornar escreveu um dos maiores livros já escritos por um brasileiro. Pertence, ao mesmo tempo, à prosa científica e à prosa artística. Pode ser entendido como um obra de Sociologia, Geografia, História ou crítica humana. Mas não é errado lê-lo como um relato da vida sertaneja em sua luta diária contra a paisagem e a incompreensão das elites governamentais.

Os relatos da época são unânimes em apontar o total desconhecimento em que vivia a população do litoral com relação ao interior do Brasil, que continuava ainda pouco habitado, com comunicações precárias e ainda sem mapas de boa qualidade que descrevem o curso dos rios, a geologia, o relevo, a flora, a botânica da região e muito menos as características dos agrupamentos populacionais. Ao privilegiar o tema “Canudos”, um novo enfoque sobre os sertões, Euclides da Cunha dava um passo adiante para enfrentar um tema pouco explorado até então e absolutamente necessário para o projeto da nação republicana: o tema do “território”. (LIMA, 2008, p. 245)

Apesar de seu caráter literário, deixando falhas do ponto de vista científico e histórico, esta obra projeta o autor como um dos grandes nomes da literatura nacional. A obra de Euclides da Cunha é um dos maiores referenciais da Guerra de Canudos, apesar das lacunas já citadas, ela, por misturar ficção e informação, extravasa o meio acadêmico e historiográfico, levando o conhecimento do episódio através de outra forma de produção bibliográfica. A obra de Euclides da Cunha destaca o elemento geográfico (critério espacial) como um dos seus princípios norteadores. Euclides da Cunha, em seu livro, questiona os problemas que faziam parte do contexto brasileiro da época

Euclides da Cunha produzia um quadro incisivo dos problemas que agitavam o Brasil naquele início de século e o livro, mesmo considerando-se avanços e recuos perceptivos, acabou por construir severa crítica aos destinos anunciados pela República nascente, a qual Euclides defendera entusiasticamente (LIMA, 2008, p. 243).

Euclides da Cunha apresenta o projeto de seu livro, relatando que a sua obra extravazou o histórico da Guerra de Canudos, que ela pertence a outro tema, de maior abrangência: o problema das “sub-raças” sertanejas do Brasil. Estas “sub-raças” se materializam pela sua condição social de subalternos, estando à margem dos rumos tomados pelas novas ordenações nos espaços (políticos, econômicos e social) da concentração de propriedade em nosso país. Por esse fator, a sua obra adquire relevância nesta dissertação. Essas intenções podem ser observadas neste trecho da nota preliminar:

Escrito nos raros intervalos de folga de uma carreira fatigante, este livro, que a princípio se resumia á história da campanha de Canudos perdeu toda a atualidade, remoderada a sua publicação em virtude de causas que temos por escusado apontar. Demos-lhe, por isto, outra feição, tomando, tomando apenas variante de assunto geral o tema, a princípio dominante, que o sugeriu. Intentamos esboçar, palidamente embora, ante o olhar de futuros historiadores, os traços atuais mais expressivos das sub-raças sertanejas do Brasil. E fazemo- lo porque a sua instabilidade de complexo de fatores múltiplos e diversamente combinados, aliada às vicissitudes históricas e deplorável situação mental em que jazem, as tornam talvez efêmeras, destinadas a próximo desaparecimento ante as exigências crescentes da civilização e a concorrência material intensiva

das correntes migratórias que começam a invadir profundamente a nossa terra (CUNHA, 2007, p. 18)

Canudos, de certa forma, passa a ser um marco na história social do Brasil. Ainda não havia surgido, em nosso país, um acontecimento semelhante à tomada de posse daquelas terras abandonadas no sertão baiano e a fundação da cidadela. A sua relevância social está na luta sertaneja associada à luta pela posse da terra, a luta sertaneja contra o sistema do latifúndio e da opressão. Questão potencializada pela repercussão da Guerra de Canudos na mídia e na sociedade brasileira

A transformação da obra em “monumento nacional” e de seu escritor em “grande escritor nacional, expressa, também, uma mudança no plano dos valores da sociedade em que ela ocorreu. Efetivamente, a Guerra de Canudos representou um divisor de águas no contexto de um pensamento social no Brasil. Canudos com seu horror e com sua potência trágica despertou intensa reflexão. Foi um dos temas mais discutidos da sociedade brasileira da virada do século XIX e o evento jornalístico mais importante do período (LIMA, 2008, p. 244)

Por isso, conselheiro e seus seguidores representam o poder dos trabalhadores oprimidos do campo contra o estado republicano, Hardman se refere à formação do povoado como um

[...] fato insólito nas lutas sociais do país, Canudos marca um feito raro na memória nacional: o poder de lembrança e rememoração dos condenados da terra contra o poder do Estado e das efemérides oficiais instituídas pelo regime republicano. Neste caso, a metamorfose da guerra civil não declarada – porque aos sertanejos a sociedade política nacional jamais concedera a condição de cidadania (HARDMAN, 1997, p. 57).

Neste sentido, Canudos passa a ser a esperança de libertação, em uma sociedade que oprime pela exclusão, pela falta de possibilidades e oportunidades, pela falta de direito à aquisição, pela miséria dirigida pela má distribuição dos recursos de produção. Outros aspectos também estão presentes neste contexto como a exclusão social, a pobreza material absoluta e a desapropriação da terra, essas são as características básicas da multidão dos vencidos de Canudos.

Hardman (1997) nos mostra as várias perspectivas nas quais Canudos pode ser analisada, e isto, nos aguça à análise do filme Guerra de Canudos. Pois nele podemos encontrar estas perspectivas, ou seja, o poderio bélico do exército nacional (armado com os melhores instrumentos e estratégias da indústria e da engenharia militar) contra os sertanejos; a paisagem, onde a brutal adversidade da paisagem semi-árida do sertão

reflete a escassez e a miséria; o semi-isolamento, o relativo isolamento dessa sociedade camponesa aliado à própria desolação da paisagem que forma um dos lados da condição trágica de todo o movimento; a civilização do litoral urbanizado, europeizado, branco e modernizador constituem esse outro pólo do grande choque de culturas, oposta ao “incompreensível e bárbaro inimigo!”.

As tropas dos coronéis locais e do governo estadual baiano não conseguiram vencer a resistência da Guarda Católica, assim chamada o exército formado para proteger o povoado de Canudos. Assim, o governo federal adere à luta enviando as tropas do Exército Militar aliada de milícias que o suportava. A primeira expedição era chefiada pelo tenente Manuel da Silva Pires Ferreira e composta por três oficiais, 113 praças, um médico, dois guias e uma ambulância. A segunda, teve a liderança do Major Febrônio de Brito e foi formada por oito oficiais, cem praças do Exército e cem da Polícia Estadual. A terceira, teve a chefia do coronel Antônio Moreira César; esta continha 1300 homens, 6 canhões, 2 médicos, 2 engenheiros militares, ambulâncias e um comboio de cargueiro com munições e mantimentos. Essas três expedições não tiveram sucesso. (VILLA, 1998).

Canudos sucumbiria à quarta expedição, organizada pelo ministro de guerra, com cerca de 7 mil homens e chefiada por Artur Oscar. Esta expedição, pela estratégia escolhida, dividiu-se em duas colunas que se encontrariam em Canudos em data estabelecida. Canudos foi destruída por esta força militar em outubro de 1897. A população sertaneja morreu defendendo sua comunidade numa das mais trágicas lutas da história da república brasileira.

Preocupado com o avanço da varíola entre os soldados e a chegada da estação das águas que dificultaria ainda mais as operações militares, Arthur Oscar apressou o ataque final a Canudos, com seis mil homens (...) incendiando o arraial, o Exército foi avançado para o último núcleo de resistência. (VILLA, 1999, p. 204)

O aniquilamento dos retirados e a morte de Conselheiro significava que “a fúria dos soldados voltou-se contra os indefesos. Com o crescimento do número de prisioneiros nos últimos dias de campanha intensificou-se o processo de eliminação física dos conselheiristas” (VILLA, 1999, p. 211). Villa, ao refletir sobre o significado de Canudos, nos relata que

[...] o arraial foi uma comunidade religiosa, liderada por um beato, e a migração para Belo Monte deveu-se ao fascínio exercido pelo Conselheiro.

O seu exemplo de vida, a entrega total a Deus e a vinculação desta profunda religiosidade com as necessidades materiais de um povo sofrido, abandonado pelo poder público, que só aparecia para escolher impostos, acabou transformando o arraial e a mensagem de seu líder em sinônimo de liberdade para o sertanejo, oprimido pelo latifúndio, pelo Estado e por uma Igreja distante e ausente (VILLA, 1999, p. 244).

Euclides da Cunha, ainda que com os seus artefatos literários e tomado de certo posicionamento, também relata o aniquilamento do povoado de Canudos

Sabia-se de uma coisa única: os jagunços não poderiam resistir por muitas horas. Alguns soldados se haviam abeirado do último reduto e colhido de um lance a situação dos adversários. Era incrível: numa cava quadrangular, de pouco mais de metro de fundo, ao lado da igreja nova, uns vinte lutadores, esfomeados e rotos, medonhos de ver-se, predispunham-se a um suicídio formidável. Chamou-se aquilo o hospital de sangue dos jagunços. Era um túmulo. De feito, lá estavam, em maior número, os mortos, alguns de muitos dias já, enfileirados ao longo das quatro bordas da escavação e formando o quadrado assombroso dentro do qual uma dúzia de moribundos, vidas concentradas na última contração dos dedos nos gatilhos das espingardas, combatiam contra um exército. (CUNHA, 2007, p. 596)

Apesar de seu extermínio, Canudos representou e, até hoje, constitui um modelo de resistência contra o poder público, contra o latifúndio, contra o Estado e contra a Igreja. A religiosidade, resignação e modo de vida proposto por Antônio Conselheiro, supria as carências do povo sertanejo que viveu no povoado uma alternativa de melhores condições de vida.

2.2 A GUERRA DO CONTESTADO

A Guerra do Contestado recebeu esse nome devido às conturbações da disputada região entre os estados de Santa Catarina e Paraná. A miscigenação oriunda do longo processo de colonização e o contato das etnias chegadas do continente europeu com o indígena do planalto serrano catarinense fez do caboclo o predominante grupo que passou a habitar a região.

Os elementos advindos da mesclagem dos primitivos moradores da floresta ombrófila mista com os pioneiros espanhóis e portugueses que palmilharam o Sul do Brasil são remotos e acompanham o processo lento de conhecimento, de povoamento e de ocupação dos espaços ocupados primitivamente pelos grupos indígenas. Na região do Contestado, são marcantes os traços da cultura do cabloco. (VALENTINI, 2009, 36)

Segundo Valentini (2009), a presença de benzedores, rezadores, curandeiro e dos monges fazia parte das práticas religiosas do sertanejo. Nesse contexto, surge a figura

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