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Há um corpus petrínico ?

No documento Pedro Hispano (século XIII) (páginas 197-200)

A inventariação dos manuscritos com obras atribuídas a Pedro Hispano e a análise da literatura secundária sobre essas obras e o autor (identificado com o papa João XXI), permitiram elaborar um elenco de 100 títulos que lhe estão associados de modo desigual. Algumas das atribuições são absolutamente infundadas ou não correspondem a qualquer obra existente e por isso podem ser eliminadas (secções 5 e 6 da Clavis). Outros títulos mencionados na literatura secundária não foram identificados em qualquer manuscrito ou edição (secção 4), ou não é possível saber se são de facto aí atribuídas a Pedro Hispano (secção 3). Resta um considerável grupo de obras de facto atribuídas a “Petrus Hispanus” (secção 1), e outras desconhecidas mas auto-citadas nessas obras (secção 2). Ao todo são 56 títulos, que pelas informações que apresentam nos manuscritos onde estão atribuídas, ou pela literatura secundária, não podem ser atribuídas a um autor que não se chame “Petrus Hispanus”.

O modo de atribuição das obras, apesar de ter sido tradicionalmente interpretando como indicando apenas um único autor, não é incompatível com a possibilidade de se tratar de facto de vários “Petri Hispani” diferentes. Por isso não é possível fugir à questão: podem estas obras ser atribuídas a um mesmo autor? Constituem um corpus escrito homogéneo? A resposta tradicional às duas questões te sido “sim”. Mas, as disparidades temáticas, de difusão e de conteúdo que têm sido relevadas, apontariam no sentido da dissociação de autores, que seria depois necessário identificar. Aqui, uma solução mais imediatista consistiria em distribuir as diferentes obras por diferentes autores consoante a sua área temática, o que seria um erro crasso por ignorar a característica enciclopédica de alguns autores medievais, e os interesses de facto vastos da generalidade dos autores de primeiro plano.

Não é a diversidade temática das obras atribuídas a Pedro Hispano que nos deve espantar, embora hoje pareça digno de admiração que um mesmo autor se tenha debruçado com proficiência sobre campos tão especializados como a lógica, a filosofia natural (psicologia, zoologia, alquimia, astrologia), a teologia (mística e apologética pastoral), a medicina (teórica e prática). De facto, e mesmo não tendo em conta as enciclopédias propriamente ditas, são numerosos os autores medievais de primeiro plano que se exercitaram nesses campos e afins e com notável produção, desde Rogério Bacon (c. 1214-1292/4)276 a Alberto Magno (c. 1200-1280)277, ou de Raimundo Lúlio (c. 1232-1315/6)278 a Arnaldo de Vilanova (c. 1240-1311)279, apenas para dar exemplos de autores coetâneos com obras vastas, aos quais a tradição associou também um extenso corpus apócrifo. Há apenas uma importante diferença a assinalar: qualquer deste autores teve uma longa carreira académica, enquanto que a vida académica de Pedro Hispano, segundo as reconstituições biográficas mais documentadas, foi relativamente curta e teria terminado em 1250. Os mais de 755 manuscritos (de facto 798 entradas no inventário, mas algumas podem não corresponder a manuscritos existentes) que conservam as obras atribuídas a Pedro Hispano são, por isso, um entusiasmante manancial de informação, que se transforma em perplexidade se quisermos explicar a sua produção dentro da vida conhecida do Pedro Hispano do século XIII a quem as obras são tradicionalmente atribuídas280. A clavis acabada de propor permitiu já crivar muitas das atribuições manuscritas ou aduzidas na bibliografia secundária e mesmo comparar os manuscritos e verificar a existência de várias versões de algumas obras.

276 Cfr., por exemplo, J. HACKETT (ed.): Roger Bacon and the Sciences. Commemorative Essays,

Leiden 1997, que abrange estudos sobre a classificação das ciências, a gramática, a lógica, a retórica e a poética, as matemáticas, a astronomia-astrologia, a geografia e a cartografia, a música, a luz e a visão, a scientia experimentalis, a alquimia, a ciência moral, a que haveria ainda a acrescentar a teologia e a filosofia natural.

277 Cfr. J.A. WEISHEIPL: Albertus Magnus and the Sciences: Commemorative Essays 1980, Toronto

1980, com estudos sobre a concepção de scientia, as ciências naturais (diversos estudos ao longo do volume), a física, a astronomia e a astrologia, a alquimia, a mineralogia, a tecnologia química, a psicologia, a fisiologia, a botânica, a medicina, a embriologia, a falcoaria, a matemática, a geometria. A estas haveria ainda a acrescentar as ciências de outros domínios do saber , como a ética, a política e a teologia.

278 Cfr. T. CARRERAS Y ARTAU — J. CARRERAS Y ARTAU: Historia de la Filosofia Española, vol. I Filosofia cristiana de los siglos XIII al XV, Madrid 1939, pp. 233-640, com um elenco das obras

ainda útil, mas a rever.

279 Cfr. J.A. PANIAGUA: Estudios y notas sobre Arnau de Villanova, Madrid 1963; IDEM: El maestro Arnaldo de Vilanova médico, Valencia 1969, completando e corrigindo com a entrada sobre Arnaldo

no Compendium Auctorum Latinorum Medii Aevi (500-1500), cur. C. LEONARDI—M. LAPIDGE, Firenze 2001, fasc. 4. Arnaldo tem uma obra extensa como médico e teólogo, mas não tão diversificada como as dos outros autores citados.

280 Ver o que sobre o assunto se encontra no estudo aqui parcialmente retomado, J.F. MEIRINHOS:

«Pedro Hispano e as Summulae logicales», em História do Pensamento Português, vol. 1, dir. Pedro Calafate, Lisboa 1999, sobretudo a parte III “Obras atribuídas a Pedro Hispano”, pp. 362-376.

Os manuscritos atestam que a generalidade destas obras incluídas nas primeiras secções da Clavis foram compostas por algum “Petrus Hispanus”, mas falta determinar se se trata de um só autor, ou de vários personagens, de épocas mais ou menos próximas e com o mesmo nome. O certo é que não temos elementos que permitam seriá-las numa cronologia e, na maior parte dos casos, é absolutamente conjectural a determinação dos respectivos contextos académicos de composição, para além de não haver para nenhuma delas pistas que permitam localizá-las no percurso biográfico do futuro papa ou de algum distinto Pedro Hispano. Resta-nos, por isso, tentar uma aproximação temática que permita constatar a deslocação de posições ou as razões para a deriva entre disciplinas.

Contudo, há um problema metodológico para o qual não possuímos uma solução previamente dada: obras com posições diferentes terão que pertencer a autores diferentes? De facto, a evolução entre posições (por vezes opostas) é uma constante da história do pensamento que torna sedutor e árduo o estudo do pensamento de grandes autores. Alguns filósofos, raros até ao advento da modernidade, vão dando conta da sua própria progressão, e tendem a fazê-lo apenas quando ela se integra num plano de realização demorada mas antevista quase desde o seu início281. Normalmente não temos este anúncio que permite seguir as próprias linhas de força de pensamento em desenvolvimento ao longo do tempo, daí que a hermenêutica tenha recorrido aos mais variados instrumentos explicativos para compreender aquilo que não se oferece como evidente, mas que se confunde com a história pessoal do pensamento de um autor e cuja genealogia não pode deixar de ser restabelecida se queremos restituir a sua razão interna e penetrar no sentido e compreensão do texto como outro que nos coloca perante a irrepetibilidade das perguntas e respostas que enformam o pensamento filosófico.

A que poderemos recorrer quando estamos, como é o caso, perante textos sobre os quais nos falta todo o tipo de informações históricas a propósito da sua origem e composição?

As referências internas dos textos têm a primazia, porque funcionam como verdadeiros espias colocados pelo próprio autor. A identificação das fontes, sobretudo aquelas que são seguidas como autoridade ou as que são criticadas, podem denunciar linhas de continuidade literária e intelectual no pensamento de um autor. Particularmente importantes são as auto-citações ou as referências faça para outras obras suas.

A reconstrução genético-crítica do pensamento de Pedro Hispano poderia ser também metodologia uma útil, contudo pressupõe que se conheça qual é o ponto de partida do autor e qual é o seu ponto de chegada, tendendo o método a comprovar estas duas balizas, mas não

281 Esse é o caso do projecto de uma filosofia transcendental desenvolvido por Kant, que englobava

uma crítica da razão pura teórica, uma crítica da razão pura prática e uma crítica da faculdade de julgar.

serve para as questionarmos. Acresce que no caso de Pedro Hispano não temos qualquer certeza quanto às obras, embora por tradição se julgue que as primeiras a ser escritas foram as obras de lógicas, depois as obras psico-filosóficas, depois os textos místicos, seguidamente os comentários de medicina e depois os receituários, ficando ainda de fora desta hipotética sequência os sermonários e as obras de alquimia.

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Neste capítulo procurar-se-á evidenciar os elementos internos e externos que permitem associar os dissociar as diferentes obras inseridas na Clavis anterior. Como não faria qualquer sentido repetir uma abordagem pela ordem alfabética dos títulos e por não possuirmos marcos que nos orientassem desde já numa abordagem cronológica, restava agrupar as obras segundo a sua afinidade disciplinar e de conteúdo, segundo os padrão disciplinar medieval. É esta opção que justifica que aqui se apresentem as ciências na ordem lógica, filosofia, alquimia, teologia, medicina. Seguindo a ordem de progressão das faculdades, primeiro as artes e depois as ciências maiores: teologia e medicina. De modo algum se pretende antecipar já que esta seja a ordem de produção das obras, nem se pretende encontrar um modelo biográfico ou filosófico onde se encaixe esta progressão.

No documento Pedro Hispano (século XIII) (páginas 197-200)