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Sinopse da atribuição de obras nos manuscritos

No documento Pedro Hispano (século XIII) (páginas 94-101)

Panorama sobre a atribuição de obras a Pedro Hispano

1. Sinopse da atribuição de obras nos manuscritos

Ao olharmos a difusão manuscrita das obras atribuídas a Pedro Hispano, a primeira constatação a fazer é que não existiu na Idade Média uma compilação mais ou menos completa dessas obras, ou, para sermos mais prudentes, se existiu não chegou até nós nem sobre ela se encontra qualquer referência nas diferentes fontes, o que são já indícios suficientemente fortes para se sugerir que uma tal compilação nunca existiu. Outros autores de obra vasta e dispersa mereceram esta atenção editorial, o que pode deixar já antever que nunca na Idade Média se julgou que as diferentes obras que hoje se atribuem a Pedro Hispano tenham sido de facto escritas por um mesmo autor. É certo que essas obras poderiam não favorecer um tal projecto, porque abarcavam uma extensa multiplicidade de ciências e a cópia de livros, pelas suas condicionantes materiais, era sobretudo utilitária, principalmente quando se tratava de obras académicas, com cada volume a ser produzido tendo em vista uma utilização específica, escolar ou profissional, quer se tratasse de um projecto pessoal ou de um produto de scriptoria profissionais ou de um stationarius. Compreende-se, por isso, que juntar obras de lógica, sermões, comentários zoológicos e receituários médicos numa mesma edição manuscrita poderia não se apresentar como um projecto útil para o público de leitores, justificar-se-ia, isso sim, se houvesse a intenção deliberada de reunir as obras de um mesmo autor, fosse para o celebrar, fosse para recolher a sua obra completa, fosse para resolver problemas editoriais e filológicos com que um leitor mais atento ou erudito se deparasse. No caso das obras atribuídas a Pedro Hispano, apesar da eminência científica e eclesiástica que se lhe atribui, nenhuma destas variáveis se verificou.

Por outro lado, os embriões de elencos de obras que podemos ler nos bibliógrafos, são divergentes no seu início, depois são lacunares e em ambos os casos estão longe de ser exaustivas e, como vimos, resultam apenas do próprio engenho do compilador e das suas leituras secundárias. Estes catálogos de obras são algo variáveis e o seu recheio vai-se diversificando com o tempo, precisamente à custa da compilação de diferentes fontes e não em resultado de novas evidências documentais.

Mais ainda, não só não existe uma compilação das obras, como elas são de facto transmitidas em diferentes famílias de manuscritos consoante a sua tipologia científica ou literária251.

Alguns exemplos: os manuscritos com obras de lógica nunca contêm qualquer outra obra atribuída a Pedro Hispano. Para além disso, nesses manuscritos nunca o Pedro Hispano autor de lógica é associado ao Pedro Hispano autor de outras obras; também as obras filosóficas nunca são transmitidas com qualquer outra obra, seja médica, alquímica ou teológica. E assim sucessivamente. Há claramente uma difusão atomizada das obras consoante o seu campo científico. Poderá isso dever-se ao facto de os respectivos serem diferentes, apesar de terem nome semelhante?

Mais revelador ainda é o facto de nunca haver pontes que estabeleçam a ligação do autor de uma obra com o autor de outra obra de um campo diferente, porque se há copistas, anotadores ou comentadores que sabem que o autor do Tractatusé o autor dos

Syncategoreumata , ou que o autor do Thesaurus pauperum é o autor do De phlebotomia, já

não encontramos, pelo menos nas fontes mais antigas, a mais pequena suspeita de que o autor do Tractatus seja o autor do Thesaurus pauperum, e isto para dar apenas o exemplo das duas obras mais famosas e difundidas.

Nesta situação, como já foi dito várias vezes, torna-se necessário regressar à próprias obras e aos manuscritos que as transmitem, como fonte mais fidedigna para discutir a questão da autoria das obras.

Ora, os manuscritos permitem desde logo mostrar que são absolutamente erradas determinadas atribuições, porque se referem a obras que através de outros manuscritos sabemos serem de outros autores252, tendo sido atribuídas por copistas e anotadores, ou por má leitura dos manuscritos, ou porque os seus autores simplesmente se dissimularam sob o nome de Pedro Hispano; estão nestes casos nada menos que 30 títulos253. Outras foram-lhe atribuídas provavelmente por confusão com outros autores, porque delas não conhecemos qualquer testemunho manuscrito; caso em que se encontram pelo menos 5 títulos254. Há um grupo importante de obras que os manuscritos ou os seus catalogadores atribuíram a “Petrus Hispanus”, embora o designem sob diversas formas, nem sempre convergentes. Temos aí um grupo de 50 obras255, mas não temos a certeza se foram escritas por um único ou por diversos

251 Exceptuem-se aqui os raros casos de códices de composição factícia, em que o acaso da

encadernação reuniu manuscritos de diferentes origens num único volume e desta coincidência pode resultar que obras de diferentes áreas estejam agora num mesmo códice.

252 Veja-se, por exemplo, o índice de obras erradamente atribuídas, no vol. I, p. 434. 253 Ver a secção 5 da Clavis no capítulo seguinte.

254 Ver a secção 4 da Clavis. 255 Ver a secção 1 da Clavis.

autores. Para complicar a discussão, em algumas dessas obras o autor indica ainda outras 6 de que não conhecemos o texto ou outros testemunhos256. Para além de subsistirem 2 outros obras que não está averiguado se pertencem ou não a este Pedro Hispano257, seja ele um ou vários.

Neste âmbito, a questão pode ser discutida, num primeiro nível, a partir das fórmulas de atribuição que se lêem nos próprios manuscritos. Sem tentar estabelecer aqui uma tipologia destas atribuições, deve notar-se que algumas fazem parte do próprio texto, por exemplo dos prólogos, mas a maior parte parecem não ser da mão do próprio autor, como as dos diferentes paratextos: títulos, subscrições, finais, anotações marginais, etc. O grau de evidência destas últimas é muito menor, mas deve, mesmo assim, ser tomada em devida conta, sempre que possa ajudar-nos nesta discussão, não apenas por causa da sua persistência e repetição, mas sobretudo quando apresente indícios de divergência com as que ocorrem em outras obras.

A simples análise das fórmulas de atribuição mostra-nos precisamente a sua variabilidade258 e permite-nos, em alguns casos, verificar que algumas das obras pertencem a autores diferentes e que algumas das obras não são atribuídas a Pedro Hispano nos próprios manuscritos.

Um olhar sinóptico sobre os manuscritos diz-nos já algo sobre a difusão extensa e desigual desta obra vasta259. O quadro que a seguir se apresenta não é uma estatística definitiva porque ainda há certamente manuscritos a inventariar, como ficou claro na Introdução do volume I (pp. 54-57), e sobre muitos dos manuscritos recenseados é ainda necessário verificar com mais rigor qual a natureza do texto transmitido (qual a versão da obra? obra completa ou fragmento? comentário ou texto? etc.). Mesmo assim, vale a pena fazer um quadro que permita atestar as disparidades de difusão entre os vários títulos.

Os paratextos (títulos, subscrições, anotações marginais, etc.), que se teve o cuidado de registar no inventário, transportam-nos de imediato para a questão da autoria das obras e mesmo da identificação do respectivo autor260. O terceiro dos índices petrínicos do volume I (“Índice das fórmulas de atribuição”) sistematiza as informações relativas à identificação do

256 Ver a secção 2 da Clavis. 257 Ver a secção 3 da Clavis.

258 Para um panorama mais ou menos exaustivo do conteúdo literário das fórmulas e respectivo

contexto, vejam-se as descrições de manuscritos no vol. I e em particular as duas primeiras secções do “Índice das fórmulas de atribuição”, pp. 412-433.

259 Quanto à difusão geográfica veja-se o índice de países, no vol. I, pp. 447-448, e o índice de

manuscritos, ibidem, pp. 491-505. Em alguns casos é meramente acidental que o manuscrito esteja numa ou noutra biblioteca, mas, em boa parte dos casos ela explica-se pela história dos próprios fundos manuscritos, tantas vezes provenientes de bibliotecas de mosteiros ou de universidades medievais.

260 Deixa-se aqui de lado um outro problema colocado pelos paratextos, a saber, os diferentes títulos

autor, por obras (pp. 412-421), por designação (422-433) e com erros (p. 434). É certo que estes indícios não podem ser tomados como o argumento definitivo, não só porque alguns deles também contêm erros, mas também porque alguns devem ainda ser submetidos a uma cuidada análise codicológica e paleográfica para averiguar da respectiva genuinidade e data. É um facto que certas fórmulas de atribuição ocorrem apenas em manuscritos tardios, ou foram acrescentadas por mão diferente e posterior à da feitura da cópia do texto mesmo. O que poderá indiciar que algum leitor que a colhera em fonte secundária a tomou como boa e apropriada para melhor identificar o texto que tinha perante si. Este problema é sobretudo delicado naquelas obras que encontramos em diferentes versões, cada uma das quais quase sempre em testemunho único.

A tese da unidade de autor, apesar de não encontrar qualquer fundamento na documentação mais antiga tornou-se familiar e por isso, hoje, não é preciso argumentar para a defender, basta afirmá-la. Pelo contrário, a tese dissociacionista precisa de mobilizar uma imensa quantidade de argumentos a seu favor que a tornem evidente, para além de precisar ainda de desmontar ou clarificar os argumentos da outra tese. Trata-se pois de uma discussão entre teorias rivais, em que o campo de uma (documental e historicamente a mais frágil) tem tudo a seu favor não pela consistência dos argumentos ou a solidez das provas, mas simplesmente por inércia discursiva e por estar muito disseminada e se ter tornado a tese mais partilhada. A unidade de autor tornou-se uma crença difícil de contrariar, mas a elaboração de um catálogo das obras que sistematize todos os elementos de atribuição poderá trazer ainda mais elementos clarificadores. É isso que se propõe na secção seguinte, tomando já como guia os elementos esboçados nestes quadros, porquanto nos permitem distinguir entre as obras de facto atribuídos a um Pedro hispano e aquelas sobre as quais não há qualquer traço nos manuscritos e também aquelas que através de outros manuscritos podemos claramente atribuir a outros autores, ou pelo menos verificar que não podem pertencer ao Pedro Hispano “único” da tradição.

A atribuição de obras a Pedro Hispano e a respectiva difusão manuscrita

Na parte relativa às designações do autor apenas são tidos em consideração os manuscritos que contenham alguma fórmula anotada nas descrições do vol. I. O número absoluto de manuscritos é indicado nas quatro colunas à direita.

Quando nas colunas de atribuição não for mencionado qualquer manuscrito isso quer dizer que foi encontrada qualquer fórmula de atribuição a Pedro Hispano nessa obra.

Quando numa mesma atribuição se encontrar mais do que um descritor, ela é mencionado em ambos (por exemplo: “Petrus Hispanus Portugalensis” é mencionado sob Hispanus e sob Portugalensis).

Quando num mesmo manuscrito se encontrar mais do que uma fórmula de atribuição (por exemplo no título e no explicit) esse manuscrito apenas é mencionado uma vez nas colunas da direita.

Petrus Manuscritos

Obras Iuliani Hispanus Portu-

galensis

Compos- tellanus

Outra forma

Papa O.P Outro

autor

Texto Frag. Coment Trad.

Anathomia corporis 1 2 (a)

Bullarium Iohannis XXI 1 1

Bullarium Johannis XXI (apud Dictamina Berardi) 6 6 6

Consilium de tuenda valetudine (pseudo-Aristóteles) 1 (b) 1

De apostemate maturando, de morsu canis rabidi … 1

De curis oculorum (b) (b)

De his que conferunt et nocent 5

De partibus corporis humani, de coitu, de honesta et ... (Pispani) 1 1

De phlebotomia 6 9 2

Diete super cyrurgia 1 1 1

Epistola ad imperatorem Fridericum super regimen sanitatis 1 1 1

Expositio in Isagogas Ioannitii (Mauro de Salerno) (b) 1

Expositio in libros Aforismorum Hyppocratis (Mauro de Salerno) 1 (b) 1

Expositio in libros De pulsibus Philareti (Anónimo) 1 (b) 1

Expositio in libros De urinis Theophili (Bartolomeu de Salerno) 1 (b) 1

Expositio in Pronostica Hippocratis (anónimo) 1 (b) 1

Expositio libri De anima II-III 1 (+1?)

Expositio librorum beati Dionysii 2 3 2

Fallacie minores (Anónimo) 1 (b) (b)

Glose et questiones super Viaticum Constantini 3 1 8 (a) 4

Glose super De pulsibus Philareti 2 1 3

Glose super libris De febribus Ysaac (Anónimo) 1 (b) 1

Glose super libro tegni Galeni (Bartolomeu de Salerno) 1 (b) 1

Glose super Tegni Galeni 2 4

Glose supra Pronostica Hippocratis 1 (2?)

Liber de famulatu philosophie 1 1 1

Liber de morte et vita et de causis longitudinis ac brevitatis vite 2 2

Liber naturalis de rebus principalibus naturarum 1 1 (2?)

Liber oculorum 19 2 1 (c) 2 > 30 (b) (b) 1

Notitia super librum de sensu et sensato (Adão de Buckfeld) (b) 1

Notitia super librum de sompno et vigilia (Adão de Buckfeld) (b) 1

Notule super Isagoge Iohannicii in Artem parvam Galeni 1 8

Notule super Regimine acutorum Hippocratis 1 2

Operatio ad congelandum mercurium in veram lunam 1 1 (d) 1

Opus puerorum (de Rogério Bacon?) 1 (e) 1

Problemata 4 11 (-1) 1

Quaestiones de Metaphysica (João Buridano) (b) 1

Questiones de medicinis laxativis 1 1

Questiones super libro De crisi et super De diebus decretoriis Galeni 1

Qui vult custodire sanitatem stomachi 4

Scientia libri de anima 1 1 2

Scriptum et questiones super libro De dietis particularibus Isaac Iudei 3 5 (a)

Scriptum et questiones super libro De dietis universalibus Isaac 2 6 (a)

Scriptum et questiones super libro De urinis Ysaac 1 4

Secretum pro amico suo ad oculos 1 > 30 (b)

Sententia cum quaestionibus in physonomiam (Guilherme de Aragão) 1 10 1

Sententia cum questionibus in Aristotelis De anima I-II 1 2

Sermones 2 2 5 1

Summa de conservanda sanitate (f) 11 3 1 (g) 9

Super libro De animalibus Aristotelis 1 3 (a)

Super libros aphorismorum Hippocratis 1 (ou 3)

Syncategoreumata 8 26 1

Synonymia pharmacologica 3

Tabula phlebotomie secundum Avicenam 1 (h) 1

Thesaurus pauperum 1 > 40 2 > 23 > 100 (b) 28 46

Tractato dei veleni (Pedro de Abano) (b) 1

Tractatus > 150 4 (i) 9 (b) (b) (b)

Tractatus de conceptione deiparae Virginis (Anónimo?) (b)

Tractatus de febribus 5 2 (b) (b) (b)

Tractatus dietarum totius anni ad utilitatem humani corporis 2 2 3

Tractatus exponibilium (Anónimo) (b) (b)

Tractatus mirabilis aquarum > 30 > 50 (b) (b) 4

Veni Mecum 1 1

Verba secreta in arte Alkimie 1 1

Versus brevilogi urinarum 1 3

Versus de pluvia, de nive, de pruine, de rose, de prandine et de terra 1

Notas: (a) Inclui mais do que uma versão; (b) Número não determinado; (c) “Liber Cardinalis de oculis”; (d) “Petri yspani Cardinalis”; (e) “p.h.”; (f) Inclui-se também a versão elaborada como carta ao imperador Frederico, apesar de estar também descrita à parte; (g) Num manuscrito a obra é dita “Petri Salernitani” e em outro “senensis artis medicine professor”; (h) “Petri Yspanicii”; (i) Cfr.: “hermes supra fallacias”, “Petri Alfonsi Hispani”, “Petri Hyspani gallici”, “magíster Petrus Ispanus, de Stella oriundus”.

No documento Pedro Hispano (século XIII) (páginas 94-101)