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O herói: entre o arquétipo e a história

Para o reconhecimento da personagem e de sua designação como herói, é necessário remeter-nos aos Diálogos de Platão, mais especificamente quando Hermógenes, Crátilo e Sócrates confabulam sobre a

justeza dos nomes, e definem a palavra herói, associando-a a Eros (no latim, heros), amor. Sob o ponto de vista de Platão diz de Sócrates – personagem de

Crátilo -, os heróis teriam nascido do amor de um deus a uma mulher mortal, ou de uma deusa a um homem. Outra acepção platônica, pela mesma voz, é a de que herói é uma palavra que provém de erôtan – eirein, em grego, refere-se a sábios, retóricos hábeis e dialéticos, que dominam a linguagem. Naquele contexto

discursivo, Platão considera que essa palavra é originária da linguagem da Ática, uma vez que os heróis dessa época revelavam-se retóricos e produtores de perguntas. Pode-se inferir, por conseqüência, que todo o gênero de heróis teria sido uma tribo de sofistas. No Dicionário da Língua Portuguesa, registra-se que a palavra herói provém do grego, héros, heroos, pelo latim, heroe.

Contudo, se para Platão o herói é assim definido, a compreensão de Homero é outra: são homens empreendedores, fortes, corajosos, enquanto que, para Hesíodo, o herói é filho de um deus e uma mortal, conceito adotado também por Homero, em Odisséia. Assim, Hércules seria um dos heróis que reuniria estas duas condições, conforme explica a bibliografia sobre lendas mitológicas greco-romanas. Ele é um dos heróis que se destaca entre outros análogos.

Aristóteles demonstra em seus estudos, organizados em vinte e sete capítulos, que a tragédia é o gênero mais contemplado, embora especifique que entre os gêneros poéticos mais sérios está a epopéia, poesia que se serve unicamente da palavra simples e nua dos versos; mas é a poesia trágica, a tragédia, que representa, por sua vez, os homens melhores do que são na realidade, cuja força reside nas ações, sob inspiração dos deuses; conceito oposto é o da comédia, em que os homens são piores do que o são na realidade. O herói expressa sentimentos coletivos, situa-se em cenários dotados de grandiosidade, lidera combates, tem sentimentos nobres, astúcia, religiosidade e, na tragédia, singulariza-se por cometer enganos, passar por

processo de purificação, determinado pelo Destino, entendido como divindade que decide os rumos do herói.

Fazem parte de suas regras poéticas aristotélicas procedimentos em que a personagem representa a pessoa que, não sendo má, cai em alguma falha por qualquer razão: Édipo e Tiestes, filho de Pélope, século XIII a. C., são citados como exemplo para este caso. A Fábula (combinação dos atos, imitação de uma ação, elos temáticos e índices do

código dramático) deve promover mudança de estado da felicidade para o de

sofrimento, conseqüência de um erro grave e não por ser a personagem desafortunada ou criminosa. A dupla intriga entre as personagens, com desenlace contrário para as pessoas boas e as más, é um outro modo indicado como interessante e assegura qualidade à fábula. Diferentes processos que provocam o reconhecimento são armadilhas poéticas que estreitam relações entre o narrador e o narrado e, portanto, contribuem para a qualidade da obra. Tais características não se concentram, necessariamente, em uma única personagem heróica.

Na interpretação de Maria Lúcia Aragão (1985, p. 78), os heróis épicos representam arquétipos da imaginação humana, por isso foram idealizados da forma como se apresentam em diferentes obras. Cita, como exemplos, Agamenão, por evidenciar nobreza; Aquiles, Cid e Rolando, excelência; Vasco da Gama e Aquiles, bravura; Vasco da Gama e Ulisses, astúcia; Enéias e Rolando, religiosidade; Paris, beleza.

Fundada nessas bases, a tradição crítica recomenda que se observe o caráter – bom ou mau –, ou seja, o costume das personagens, para qualificá-las. Se, por um lado, podem-se qualificá-las por seus caracteres, por outro, sua infelicidade ou a felicidade depende da ação que praticam, segundo concepção aristotélica, então, estado e sentimento são efeitos provenientes tanto das ações como dos procedimentos de fabulação. Supõem entender que a centralidade do processo imitativo está nas ações postas em cena e nas personagens, porque estas vivificam aquela manifestação, além do que, reduzem a distância entre o que é contado e aquilo que tanto o leitor quanto o espectador apreendem. O essencial ao processo imitativo não são as personagens em si, mas a imitação de ações, da vida, da felicidade e da infelicidade, realizadas por elas, segundo certos procedimentos, analisados por Aristóteles ao comparar as obras de arte de diferentes poetas.

Uma leitura sobre o herói que caminhe de Aristóteles e Platão a Georg Lukács e Luciem Goldmann e destes a Gilberto Freire revela que não apenas a força, a bravura, a nobreza da personagem, antes conduzida pela força dos deuses, deslocam-se. O ethos da personagem representada como grandiosa, por seu caráter superior, próprio de homem nobre, do cavalheiro cortês, do bom selvagem ou por seu caráter ou, de outro lado, o homem inferior, se característico de homem mau, deixa de se constituir em critérios absolutos.

Entretanto, a força das estruturas sociais criadas pelo homem reificado e a elas subjugado passa a instituir personagens degradadas, situadas

em um ambiente também caracterizado pelo esgarçamento social, próprio da modernidade e de suas conseqüências. A força da personagem está ligada, quase sempre, às forças estruturais e conjunturais, em que se forma o tecido pré-literário, condição que forma herdeiros sem história ou herdeiros com história, segundo a identidade e o poder atribuído à personagem, nas suas relações consigo mesma e com as demais, dentro do jogo representativo.

Procurando aplicar uma leitura sócio-antropológica da produção literária luso-brasileira, Gilberto Freire compreende que as personagens suportam uma descrição relativa aos seus aspectos simbólicos e sócio-antropológicos. A partir desta hipótese, realiza o estudo do herói e do vilão no romance brasileiro, classificando-os sob dois tempos sociais: o

patriarcal e o pós-patriarcal, verificando se há coincidência ou contraste entre

ambos. Durante este tempo histórico, entende que se criaram, progressivamente, personagens metanarracionais que sugerem entender acentuar-se cada vez menor a presença de personagens lusitanas a favor de uma configuração nacional, que se revela como feita de crescente incidência de negros e mestiços, bem como a de uma espécie de tipo, mas não bem um super-tipo de brasileiro, conforme Macunaíma, na opinião de Gilberto Freire por muitos considerado como destituído de condições para classificação antropológica e psicossocial.

Por outro lado, entende que José Lins do Rego, Jorge Amado, Oswald de Andrade, Érico Veríssimo e Graciliano Ramos criam

personagens com tipos antropológicos caracterizados por traços diferentes daqueles classificados como dotados de regionalidade, com grande presença de heróis negros como em O moleque ricardo e Vitorino papa-rabo, de José Lins do Rego; Balduíno, de Jorge Amado; Bom crioulo, de Adolfo Caminha. Além disso, destaca a presença dos mestiços e mestiças, comentando que de Machado de Assis podem-se citar personagens como Capitu, sem desprezar personagem de O Mulato e O Cortiço de Aluísio de Azevedo; O Missionário, de Inglês de Sousa.