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Ao nível da macro-narrativa, em Viva o povo brasileiro, há dois grupos que instauram relações tensionais e interferem na configuração da personagem, representados pelo colonizador e colonizado que evoluem para patrão e escravo, em sua historicidade. É esta, então, a referência inicial em que estamos tentando identificar tanto a totaliade quanto a unidade da personagem e situar o herói ou heroína coletivos. Os critérios da unidade e da totalidade foram, antes, objeto de formulação de Aristóteles, embora nas relações entre a unidade e a totalidade da imitação visem à unidade do objeto, à integração das partes constitutivas da história, em que se situa a personagem com as marcas de sua identificação, indispensáveis ao seu reconhecimento. Como exemplo, cita Ulisses com a sua cicatriz, arquétipo inovado em Viva o povo brasileiro. A título de exemplo, servimo-

nos da mancha que Vu trazia na pele, herdada por Vevé por meio de Turíbio Cafubá e se tornava incandescente quando esta se irritava.

Há, entretanto, diferentes traços individualizadores da personagem, que funcionam como sinais configuradores de sua unidade e de sua totalidade, ou seja, de seu ethos e do espaço narrativo que preenche, segundo diferentes níveis e freqüência: a vinculação cultural, familiar, étnica, político- ideológica; seu nome; seus atributos físicos; seus estados revelados ou implícitos, suas atitudes são sinais a que Hamon dá o nome de qualificação diferencial. Em uma análise semântica, tais sinais seriam denominados por semas, próprios de signo verbal, formadores do campo semântico. Os traços configuradores da função narrativa da personagem, na sua esfera de relações, não se restringem a estes. Aparecem por meio de outros índices que participam direta ou indiretamente da sua unidade e da unidade da ação de que é sujeito ou objeto. Para encontrarmos a unidade do caboco Capiroba, teremos de buscá-la na sua totalidade, ou seja, ir não apenas dos seus antecedentes aos seus reflexos manifestados por toda a sua descendência, é preciso, além disso, verificar o que isto representa dentro da narrativa. Sem a figura de Capiroba, Dafé e Patrício Macário representariam personagens dotadas de traços distintos daqueles que carregam perfilhando a alma da narrativa. A morte física de Capiroba, em 1647, a de Dadinha em 1809, a do Alferes em 1822, é condição vital para a história do povo brasileiro, pois, Capiroba encarna-se em Dadinha, no Alferes, em Patrício Macário por intermédio de Vu. Capiroba faz-se

reapresentar por toda a sua descendência, até chegar a Dafé (1898) e seu bando. O procedimento por meio do qual Dafé aparece e reaparece suporta diferentes critérios da abordagem de Hamon (op. cit. p. 92-4): o da distribuição

diferencial, e se completa por meio de dois outros: qualificação diferencial, autonomia diferencial e pré-designação convencional, nas suas relações com

outras personagens.

A totalidade de Capiroba pressupõe, desta forma, percebê-lo como amálgama de índices constitutivos da unidade narrativa, em que se relaciona, funcionando como núcleo sob dois aspectos: a) subordina-se à memória e voz do narrador; b) constitui-se em fonte de personagens que lhe sucedem. Sua história recontada por Dadinha, sua bisneta, registra a reencarnação de sua alma em outras personagens, uma delas é Patrício Macário. Situado no instante em que passa a figurar na história, na condição de elemento que o narrador extradiegético retira de sua memória, o caboco Capiroba impõe-se por inteiro, carregando os seus traços específicos, seja pelos dados de sua qualificação diferencial, isto é, por seus atributos, seja pela sua autonomia diferencial (idem, p. 92), significa dizer, implicação que mantém com outras personagens. Como filho de negro fugido com índia, seu destino determina-se por este atributo. Na estrutura da obra, sua origem e seu contexto demarcam a sua figuração e o seu papel de transgressor diante das autoridades civilizadas. Sua imagem é a de homem não civilizado, que mais se embrutece ante a imposição dos estrangeiros. De sua maloca vê a aldeia transformar-se em vila Redução ou Vera Cruz de Itaparica.

Dentro da globalidade da história, Capiroba é, inicialmente, uma personagem singularizada por seus atributos, identificados por duas situações que se complementam, das quais decorrem os traços que o aproxima do Alferes Brandão em interface com traços que o distinguem. Esses traços são definidos por meio dos motivos temáticos que lhes cabe representar. Veja-se, no diagrama a seguir apresentado, observando-se que Capiroba está simbolizado por A e Brandão por B, onde se encontram os traços que lhes são comuns e os que os individualizam.

A

É filho de mãe índia com preto fugido: caçava gente.

Tinha comportamento es- tranho. Muitas mu- lheres e diversas filhas. Antropófogo, após 30 anos.

Morto pelos colonizadores.

B

É filho de mulher franzina, entrevada, e de pai português, que não conheceu. Era pescador.

Depois, como Alferes, sagrou-se herói sem nada saber. Era virgem.

Morto pelos colonizadores. C

Traços comuns a ambos (associação por semelhança). a) Inocência política.

b) Ambos morreram por ordem dos colonizadores.

c) Ambos foram reconhecidos como sujeitos glorificados: • A: simboliza resistência à ação dos colonizadores. • B: representa a inconsciência e a fragilidade do brasileiro.

A associação por semelhança e diferença própria de cada personagem, na cadeia de motivos temáticos8, em andamento dentro da diegese,

assegura unidade à personagem e transcende o espaço do motivo que lhe cabe representar:

Motivo 1: o narrador anuncia que o Alferes vai morrer inocentemente e se converterá em herói > o Alferes morre por mãos ímpias dos colonizadores > o Alferes perora às gaivotas > o Alferes é elevado a herói e suas palavras o eternizam.

Motivo 2: o narrador informa que o Caboco Capiroba, aos 30 anos, mais ou menos, caçava, engordava e comia gente. Gostava mais da carne de holandeses > Capiroba possuía muitas mulheres e filhas > num descuido, Capiroba é morto pelos colonizadores > sua filha mais velha, Vu, engravida-se de Zernike (presa de Cabiroba, holandês) > as filhas e mulheres de Capiroba tornam-se escravas.

A unidade de cada uma dessas personagens, selecionadas a título de ilustração, resulta do andamento que as projeta como núcleo da unidade narrativa que habitam e, simultaneamente, a referencializam, segundo a força temática que as justifica, ou seja, o povo brasileiro. Por um lado, vítima do opressor, por outro,

8 Motivos arquetípicos (temáticos) são micro-enredos que contém um predicado (ação), o

agente, o paciente e que veiculam um sentido mais ou menos independente e bastante profundo. (...) os deslocamentos, as transformações das personagens, seus encontros, e tanto menos seus atributos e suas características isolados, não são por nós considerados motivos (Meletínski, 1998, p. 125).

ingênuo e indefeso, mas povo que busca a sua pseudo heroicidade: germe dos revolucionários da Irmandade da Casa das Farinhas.

Ao se instituir como signo narrativo, Capiroba assumiu um dos fios da história na construção da narrativa. Tal escolha norteou o andamento da voz narradora e não apenas outros fios da narrativa, além dos

nós, conjunto de motivos que viola a imobilidade da situação inicial

(Tomachevisk, op. cit., p. 178), que Meletínski chama por tijolos de enredo. Não fosse o título do capítulo dois: Vera Cruz de Itaparica, 20 de dezembro de 1647, a primeira informação sobre Capiroba já expressaria um de seus traços: transformou-se em canibal, ao ser obrigado a aprender os ensinamentos dos padres, isto é, passou a apreciar carne humana. Seis dias depois, é enforcado, tendo deixado sua filha Vu, grávida do holandês Zernik. Vu é neta de índia e preto fugido.

Por seus atributos (antropófago), pela força de suas ações (prende autoridades, engorda-as e as devora) realiza a prova glorificadora9.

Ao final, é derrotado pelos seus oponentes, contudo aos trinta anos de idade ainda não era sujeito, isto é, os dados de sua vida não são revelados. Dessa

9 Desenvolvendo a teoria de Greimas (apud, Preface à Courès, p. 16) combinada com a de

Claude Bremond (apud, La logique des possibles narratifs, in Communications 8, Lê Seuil, p. 60-76), N. Everaert-Desmedt (op. cit., p. 17-56) desenvolve relação entre três provas para uma classificação dos “papéis” encontrados numa narrativa, analisada a partir do modelo actancial: a prova qualificadora ou aquisição de competência (o sujeito adquire a sua competência: sujeito de fazer ou de estado), a prova principal (o objeto principal, investimento da performance:sobre o objeto, o sujeito competente, sob forma de enunciado, quer/deve e pode/sabe), a prova glorificadora (o reconhecimento do valor do sujeito).

sua condição, tem a fatalidade de ver sua história ligada, metafórica, irônica e, indiretamente, ao martírio a que se submetera Cristo, porque a morte de Capiroba é associada, circunstancialmente, à do Alferes Brandão que, por sua vez, deixa entrever a de Cristo.

Outro eixo de relações de personagens centra-se em Perilo Ambrósio Góes Farinha (PA), o barão de Pirapuama, que é posto em cena em Pirajá, 8 de novembro de 1822, formando unidade narrativa em que se inicia “vítima de seus pais”, para tornar-se herói forjado. É símbolo da brutalidade, da indiferença e da vaidade. Do modo de construção a que se sujeita, pode ser explicado, segundo o critério da autonomia e funcionalidade

diferenciais. Sabe-se da história de Perilo, por sua riqueza, sua astúcia, seu

egocentrismo e por sua maldade. É também fio condutor de motivos temáticos formadores de tijolos do enredo de que trata Meletínski.

Esta personagem é projetada pelo narrador, inicialmente, como sujeito de sua própria história: tem dinheiro (usurpou de seus pais) e anseia o poder. Por isso, é, simultaneamente, personagem oponente e pseudo- adjuvante. Por um lado, ela se opõe à mobilidade instituída pelos escravos e ao projeto de seu pai; por outro, agrada a força da política institucional vigente. É personagem instauradora de um conjunto de motivos temáticos acompanhados de outras personagens, condição que o caracteriza como núcleo de unidade narrativa. O motivo temático de base, ou seja, de onde esta personagem emerge, carrega traços que a mostram como não mediadora

e, sob esta ótica, será o oposto de nego Leléu, personagem que, por sua vez, é mediadora porque resolve as contradições que lhe são interpostas.

Os motivos temáticos, que conferem mobilidade a Perilo Ambrósio, funcionam como operadores; proporcionam mudanças de situação e mudança do destino de personagens de sua convivência, embora, neste caso, tais motivos não suponham que o herói tenha de se submeter a provas capazes de convencerem a comunidade de que participa, quanto à grandiosidade de seus atos, conforme se poderá inferir pela seqüência esquemática de motivos selecionados por nós, que a seguir se apresentam:

Motivo 1: PA10

PA quer consagrar-se herói de guerra;

PA mata Inocêncio e lambusa-se com o sangue dele;

PA corta a língua de Feliciano, única testemunha de seu fazer; PA apresenta-se ao Coronel Barros Falcão, sujo do sangue de Inocêncio, passando por vencedor de guerra.

Motivo 2:

PA quer consagrar-se barão;

PA promove recepção ao Imperador acompanhado da Imperatriz e do Cônego, em comitiva;

PA exibe suas posses, seus bens, seus negócios e seus escravos ao Imperador, à Imperatriz e ao Cônego.

Motivo 3:

PA quer estuprar a jovem escrava Vevé, neta de Dadinha, que, por sua vez, é neta de Vu;

PA manda buscar Vevé; PA a estupra e a engravida. PA doa Vevé ao Nego Leléu. Motivo 4:

PA é vítima de seus escravos (Merinha, Budião, Júlio Dandão, Feliciano);

PA adoece e morre mudo;

PA é proclamado herói pelo padre.

Este movimento narrativo constrói-se pela realização da regra da trapaça e contratrapaça, reproduzindo arquétipos de farsas e chvankas11 a que se refere Meletínski, ao tratar dos contos novelísticos, que apresentam heróis voltados para interesses de caráter predominantemente individuais. Se estes heróis lutavam por seus interesses sob a proteção divina ou demoníaca, Perilo Ambrósio crê em duas outras forças, objetos de sua busca: poder econômico e poder institucional.

Pela seqüência de motivos apresentada, constata-se que a trajetória do herói, explorado como signo narrativo, participa da

11 Meletínski (op. cit., p. 99). Do alemão (Schwank) designação dada ao conto ou peça satírica ou

moralizante, produzidos na Renascença: o esperto se faz de bobo, num jogo entre astúcia versos parvoíce, inteligência versos simploridade ingênua.

composição da trajetória da narrativa, mediante relação entre sujeito e objeto, de modo que o sujeito sabe que quer e deve fazer – é o sujeito que deve realizar a sua busca; a ele compete fazê-lo. Esta sua trajetória qualifica um de seus papéis actanciais e materializa as provas: qualificadora – quer, pode e deve fazer –; principal – faz, conquista aquilo que é objeto de sua busca –; glorificadora – a concretização da busca do herói é reconhecida. Com esta realização, funcionaliza-se a personagem.

Os três primeiros motivos temáticos atribuídos a Perilo Ambrósio situam-no como personagem do fazer, porém, na sua intersecção com os seus escravos, o papel temático de cuja dinâmica participa é elaborado para transformá-lo em personagem-objeto. Perilo Ambrósio deve ser punido e, portanto, perde a sua mobilidade, embora persista no papel de fio condutor do motivo temático que representa. Transforma-se em personagem que sofre as conseqüências de seus feitos. Amleto, o comendador, submete-se às mesmas regras narrativas aplicadas a Perilo Ambrósio, contudo Bonifácio Odulfo inova-a.

Do ponto de vista da diegese, Perilo Ambrósio subordinou- se ao pai até o momento em que foi expulso de casa. Esse evento, entretanto, integra o mundo narrado por metalepse, para assegurar unidade e totalidade ao ethos da personagem. Ao nível da narrativa, no entanto, Perilo Ambrósio, primeiro, relaciona-se com o seu pai. Mas o conjunto de informações, sob

as quais é narrado, ocorre segundo cinco ângulos, formando a associação por contigüidade: aquele que se refere ao narrador; aquele próprio da personagem; o formulado por Dadinha; o de Sinhá Vitória e o dos escravos, segundo dois planos em contraponto. Um refere-se ao tempo em que era vivo e o outro é narrado após a sua morte. A relação que estabelece a associação por contigüidade e intersecção, pode ser assim didatizada:

D

PA N E SV

A realização das diferentes personagens, a partir das quais se pode apreender a unidade de Perilo Ambrósio, promove a alternância do jogo opositivo entre os critérios estático e dinâmico de que se desdobram e se confirmam os traços do ethos dessa personagem. A trajetória das demais personagens provoca a intersecção e a contigüidade das informações narrativas referencializadoras do mundo narrado, desdobrando-se da memória do narrador. Dadinha informa ter sido ela a mucama, a que criou Perilo Ambrósio. Apesar de ter cuidado dele, teme-o. De seu ponto de vista, ele possui o mau espírito (VPB, p. 79). De onde se infere que o Barão de Pirapuama representa forças demoníacas; ele mesmo assim se avalia: Entre a Pátria

e a família, minha boa mulher, Deus há sempre de me dar forças para escolher a

Legenda: D – Dadinha N – narrador E – escravos SV – Sinhá Vitória PA – Perilo Ambrósio

primeira, eis que vale mais o destino de um povo que a sina de um só (p. 35).

Completando a opinião dos escravos, Faustino (Budião), ao final da narrativa, o define por suas ações e por suas posses:

... esse barão foi herói na guerra da Independência (...) depois da guerra todos os heróis foram muito recompensados, recebendo terras e presentes do rei Imperador Dão Pedro. ... O heroísmo dele na guerra foi que ele, sem ninguém ver, matou um cativo (...) com o sangue desse cativo lambuzou e fez muitos curativos para dizer que tinha sido ferido na batalha. (...) O barão teve a maldade castigada (pp. 516-7).

Além da força dos motivos temáticos que proporcionam a configuração da unidade do herói, ao se deslocar do esquema actancial em que é a personagem funcionalizada para aquele em que se torna personagem-

estado, incide sobre outra força a que passa a submeter-se: é a força coletiva

caracterizadora da personagem dispersa12 de Segolin. Neste caso, vemo-la

representada pelos escravos que se unem em função do extermínio lento, silencioso, articulado e gradual do herói. Com essa modificação, o seu papel inverte-se, de ativa a passiva, ou seja, sujeito destinatário.

Ao nível da história, a situação original de Perilo Ambrósio inicia o processo de sua qualificação diferencial, ele se destaca pela gula e a

12 A partir da noção greimasiana conferida a ator, Segolin retira bases para propor as

personagens: estado, feixe de atributos e predicados modalizados; sincrética, com papel múltiplo, mas resultado de determinação individual (herói-auxiliar-oponente); dispersa, quando o conflito entre actante-sujeito e actante-oponente – identificado com o grupo social, feito por agentes funcionalmente idênticos – der-se na esfera de funções, como força opositiva exercida por co-agentes (o herói se decompõe em agentes).

esperteza. É fonte da informação de que o seu pai é opressor e que, uma vez denunciado, foge com a família para a sua Pátria, Portugal. Beneficiado pelo critério da sucessão, Perilo Ambrósio apropria-se dos bens da família, inclusive escravos. Casa-se com uma viúva rica, filha de pai rico, comerciante. Carente de prestígio político, ao retornar da guerra, mata seu escravo e passa-se por herói de guerra. Obsessivo por prestígio social, ele conquista o título de barão. Insaciável quanto ao poder sobre as pessoas, estupra Vevé, todavia de opressor passa a vítima: é envenenado por seus escravos, suas vítimas e morre. Ao morrer, consagra-se Centauro de Pirajá, herói da independência e mártir da economia. A unidade dessa personagem está tecida mediante três instâncias: a da narrativa, a do “povo brasileiro” e a da motivação temática.

No conjunto das unidades narrativas, configuram-se os episódios da obra em questão, multifacetados em unidades narrativas que ora se articulam ora se alternam, mas quase sempre são retomadas. Deixam aquele conjunto vácuo ou preenchem-no. O critério da unidade, em nível de dominante, ou seja, em nível macro-narrativo expressa-se pelo próprio título da obra, objeto de freqüentes reiterações, ao longo da narrativa, numa relação de implicação com um outro critério: o da totalidade da obra, do discurso narrativo e da história, segundo dois planos – o da História oficial e o da ficção.

À espada em tuas mãos achada Teu olhar desce.

‘Que farei eu com esta espada?’ Fernando Pessoa

... Amleto, levantando o lenço da boca para que todas as belas palavras pudessem voejar desimpedidas.

Belas palavras essas que, debaixo do grande caramanchão entrelaçado de mimos-do-céu e maracujazeiros machos farfalhando e ostentando uma flor lilás aqui e ali, entre cantos de passarinhos e marulhos das águas, eram a mesma coisa que as frutas, os doces e os pastéis que se desmesuravam pela mesa abaixo,abarrotando as peças de faiança esmaltada e pondo toda sorte de estampados sobre a toalha branca. Eram assim tão sólidas essas palavras, talvez mais. Eram até mais palpáveis que as frutas de comidas, pontuadas pelo mastigar geral e às vezes perdurando muito tempo no espaço.

João Ubaldo Ribeiro A corrente aristotélica proporciona-nos leituras a que a personagem como categoria da narrativa já se submetera e nos dão conta de que, se tratada como Aristóteles, é vista sob duas faces: uma é a da representação (imitação, invenção), a da personagem-máscara e, outra, é a de caráter antropomórfico, significa entender, a da personagem-pessoa

evocada pelo discurso narrativo. A primeira face é a semente que a faz

germinar no espaço ficcional, como categoria narrativa que evoca e representa ações ou estados, cujas relações se tecem por meio de índices do código

narrativo, segundo fatores construtivos, isto é, mediante emprego de elementos estruturantes.

Os conceitos básicos atribuídos a tais fatores e elementos são, genericamente, os acontecimentos, as personagens e o espaço-tempo, que se elevam à categoria de índices narrativos estruturantes da diegese. Sem estes índices a linguagem própria ao ato de narrar giraria tão somente sobre si mesma. Eles atuam como bases sob as quais se organiza o discurso narrativo e, nele, a história: constituem-se em dados do ato produtor de linguagem.

O enredo é o traço ou o componente indispensável à composição do sintagma narrativo, quando a personagem é

funcionalizada (Segolin, p. 90). A implicação entre enredo, tema e

personagens, no entanto, passa a se constituir em procedimento estruturante essencial, quando se trata da invenção de personagem

desfuncionalizada e discurso narrativo dessintagmatizado (idem, p. 96),

em que os índices temporais sejam distribuídos difusamente. Neste caso, ainda que o tempo e o espaço percam relevância, organizam-se em rede de relações, numa lógica distinta daquela caracterizada pelo princípio da linearidade, tanto no plano da história como no do discurso narrativo. Ocorrem por meio de índices do código narrativo justapostos, dotados