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A construção do herói em viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro

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Academic year: 2017

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A CONSTRUÇÃO DO HERÓI EM VIVA O POVO BRASILEIRO, DE JOÃO UBALDO RIBEIRO

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A CONSTRUÇÃO DO HERÓI EM VIVA O POVO BRASILEIRO, DE JOÃO UBALDO RIBEIRO

Texto apresentado, para efeito de avaliação final de Tese de Doutoramento em Letras: Teoria da Literatura, à Banca Examinadora integrada por professores da UNESP/São José do Rio Preto e UNESP/Marília, sob a Orientação do Professor Doutor Ismael Ângelo Cintra, convênio UNESP/UCG.

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___________________________________ Prof. Dr. Ismael Ângelo Cintra

Presidente

___________________________________ Profa. Dr. Aguinaldo José Gonçalves

___________________________________ Profa. Dra. Lúcia Osana Zolin

___________________________________ Profa. Dra. Regina Célia dos Santos Alves

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Dedico esta tese à minha família, chão e céu de minha vida.

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Pelo apoio e incentivo, agradeço aos meus colegas do Departamento de Letras.

Pela colaboração, agradeço às minhas colegas: Maria Teresinha Martins do Nascimento, Brígida e Keila.

Pela disponibilidade e orientação segura, agradeço ao ProfessorIsmael Ângelo Cintra, em nome de quem agradeço a dedicação e o empenho de todos os professores e coordenadores do curso.

Pelo trabalho paciente e criterioso, agradeço ao Almir da Costa Brito e à equipe da Vieira Multimídia.

Agradeço, particularmente,

ao meu marido, Garibaldino Felipe Machado, por sua compreensão, seu despojamento e companheirismo;

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O corpo morto de Deus, Vivo e desnudo.

Fernando Pessoa

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RESUMO ... 9

ABSTRACT ... 10

INTRODUÇÃO ... 11

1 A TRAJETÓRIA DA PERSONAGEM NA HISTÓRIA ... 22

1.1 A personagem: componente linearizador da história ... 29

1.2 A unidade do enredo ... 51

1.3 A unidade da personagem ... 72

2 A PERSONAGEM COMO SIGNO NARRATIVO... 85

2.1 A personagem como signo ... 88

2.2 A personagem como signo narrativo relacional ... 107

3 O HERÓI E SUAS REPRESENTAÇÕES ... 154

3.1 O herói: entre o arquétipo e a história ... 157

3.2 Motivações e arquétipos temáticos do herói ... 162

3.3 Processos de representação do herói coletivo ... 182

CONCLUSÃO ...201

BIBLIOGRAFIA ... 207

ANEXOS...216

A - Eventos narrativos: convergência espacial...217

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Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Câmpus de São José do Rio Preto.

RESUMO

Este estudo procura conhecer os processos de construção da personagem de ficção e do herói, em sua marcha, do ponto de vista mimético e antropomórfico, cuja realização se dá na obra Viva o povo brasileiro de João Ubaldo Ribeiro. Parte-se da hipótese de que o título da obra tem caráter sinedóquico, onde se identifica e realiza o herói coletivo na sua relação com as demais personagens, entendidas na sua evolução de máscara para signo narrativo. Considerou-se que, pela interlocução entre história e historiografia, na desfuncionalização e dessintagmatização dos elementos constituintes da história, constrói-se a personagem-temática e o herói coletivo representando a relação tensional entre colonizadores e colonizados; classe senhoril/patronal e escrava/ laboral. Para isso, foram utilizados conceitos como: arquétipos e motivos temáticos; personagem como sujeito virtual, atualizado, realizado e glorificado.

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The aim of this study is to get to know the processes involved in building the fictional and heroic character, on its journey, from both the mimetic and anthropomorphic points of view, as it occurs in João Ubaldo Ribeiro’s Long Live the Brazilians (Viva o povo brasileiro). It starts with the hypothesis that the title of the work has a synecdochic character, where the collective hero is identified and realized in his relationship with the other characters, understood in their evolution from mask to narrative sign. By means of the interlocution between history and historiography, in the defunctionalization and dissyntagmatization of the constitutive elements of the story, it was deemed that the thematic character and collective hero were constructed, representing the tensional relationship between colonizer and colonized; between the lord/master and slave/worker classes. In order to achieve this, the following concepts were used: archetypes and thematic motives, character as virtual subject, modernized, realized and glorified.

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Teorizar sobre o herói, do ponto de vista literário, pressupõe deslindá-lo em meio aos problemas do contar a história, situá-lo no contexto do qual emerge, delimitando-o segundo duas dimensões: a sócio-cultural e a literária nas suas relações com disciplinas que lhe são conexas. Isto significa dizer, situá-lo segundo as regras narratológicas trabalhadas pelo autor. Neste sentido, podem-se encontrar concepções, fundamentadas na literatura de caráter filosófico, sociológico, religioso, antropológico, psicológico.

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Mas onde encontrá-las senão no seu habitat – a obra – e no olhar das diferentes correntes críticas de que fora alvo, ao longo de sua evolução histórica? Esta convergência especular é também objeto predominante deste ensaio. Nele, procuramos situá-la no papel que lhe cabe representar em seu espaço determinado, de acordo com o código cultural em que se circunscreve. Assim vista, deve ser reconhecida como categoria narrativa. Deste modo, no primeiro capítulo, será identificada a partir de dois aspectos: enredo e tema, como tentativa de identificarmos a unidade da história e a da personagem; no segundo capítulo, buscamos identificá-la como signo narrativo relacional e núcleo de unidade narrativa; por fim é estudada como herói, a partir de suas representações.

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tais índices estejam dispostos. E, do nosso ponto de vista, é em direções como tais que a descrição da personagem deve ser situada. Entretanto, na obra em que se verifica ser mais importante o modo como se conta a história do que a observância a tais índices – causalidade e temporalidade -, estes índices passam por um processo de desfuncionalização e

dessintagmatização.

De ambas as visões – aristotélica e formalista -, portanto, recolhemos a compreensão de que, em se circunscrevendo, as personagens situam-se em meio ao jogo enunciativo no qual ou são o sujeito das ações que imitam, ou têm caráter predominantemente atributivo relevante, ou meramente decorativo, conforme seu enfoque no discurso narrativo e na história que o justifica. Isto sugere levantar questões como: Quem é a personagem que a crítica denominou por herói coletivo, em Viva o povo brasileiro? O Brasil, O Recôncavo baiano? O Sentimento de brasilidade? Ou o povo brasileiro, enquanto imagem sinedóquica?

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cruze com um outro, de movimento linear: o sintagmático, segundo as regras discursivas próprias do enunciado narrativo, instaurador do processo de enunciação, de acordo com as regras narratológicas trabalhadas pelo escritor.

Philippe Hamon, ao procurar o estatuto semiológico da personagem, defendeu-a como um signo narrativo que se vincula a centros privilegiados e, no plano do significado, atua como suporte da conservação e da transformação do sentido (Hamon, 1979, p. 110). Para identificar e descrever esse estatuto é necessário fundamentar-se no entendimento de que, segundo suas palavras, o herói e o espaço moral valorizado tornam o texto narrativo legível, dada à pluralidade de códigos culturais de referência (idem, p. 93), contexto em que se podem encontrar traços constantes, a partir dos quais o herói se diferencia conforme cinco condições básicas: qualificação diferencial; distribuição diferencial; autonomia diferencial; funcionalidade diferencial; pré-designação convencional.

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para nós por meio do discurso, melhor dizendo, por meio de determinações discursivas. Ainda assim, vale ressaltar que, para Todorov, a história não existe sequer ao nível dos acontecimentos, pois é uma abstração que, para materializar-se, requer um ato que lhe antecede: tem de ser apreendida e contada por alguém. Dois procedimentos constituem-se em marcas do projeto narrativo de Viva o povo brasileiro: o modo como se conta é mais importante do que o ato de contar; é a voz narradora que modula a informação narrativa da qual emergem as personagens.

Enquanto narrativo, o discurso vive da relação que mantém com a história que conta. Enquanto discurso propriamente dito, vive da sua relação com a narração que o profere1

.

Desse modo, os processos representativos que privilegiam as personagens tornam-se fundamentais, pois se fazem entrecruzando, tecendo, destecendo e entretecendo histórias próprias das personagens – povo brasileiro – que manifestam uma determinada consciência de sua história e um determinado sentimento de brasilidade. Sob esse ponto de vista, é o povo brasileiro a personagem coletiva. Nesse projeto narrativo, a fabulação privilegia uma voz narradora que quer se passar por pseudo-heterodiegética, por fingir-se escondida na consciência da personagem narrada. A este procedimento damos o nome de recurso irônico.

1GENETTE, Gerárd. Discurso da narrativa; ensaio e método. Trad. de Fernando Cabral Martins.

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Com essa compreensão, não pretendemos abandonar ou substituir as regras próprias de uma provável gramática do discurso narrativo, embora entendamos que elas se constituam como fato e norma não apenas discursiva, mas também estética, portanto, uma concepção e um conjunto de conceitos adotados como verdade absoluta por e para uma determinada comunidade científica ou artística. Isto significa admitir tais regras, de um ponto de vista contraditório, porque entendidas como absolutamente dinâmicas, e, na sua especificidade, contextualizadas. Em se materializando, na obra, tais regras resultam dos procedimentos de construção artística escolhidos pelo autor.

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Desse modo, o romance que suportará este estudo é entendido como instância em que o ato narrativo produtor é empreendido por vozes dotadas de diferentes graus de participação: narrador e personagens. Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, esparrama-se em um livro de 673 páginas. Compreende duas partes, vinte subunidades a que poderíamos denominar capítulos, subdivididos em quarenta e seis unidades textuais, demarcadas por títulos que evocam o espaço geográfico e a data em que os eventos narrados situam-se, designando-os. A sua primeira edição data de 1984.

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está centrada no empregado-escravo e não nos donos das terras, do dinheiro e do discurso de poder das pessoas.

Se considerarmos o título conferido ao romance de que se trata, notaremos o seu caráter plurívoco, em que se toma o todo pela parte. Interpretá-lo, nessa perspectiva sinedóquica, pressupõe identificar também o valor de sentido resultante do procedimento, que demonstraremos realizar-se por meio de recurso metafórico hiperbólico, irônico e plurívoco. Esta sinédoque referencializa o sistema narrativo de que faz parte, mas que preside: povo brasileiro ou personagem temática.

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Dentre os três padrões narrativos - espaço, pessoa

(personagem) e acontecimento – privilegiamos, portanto, a personagem, tomando-a como signo narrativo literário, a partir de seus traços dominantes, face ao tema genérico pertinente à história e ao discurso, na sua relação com sub-temas, mas a partir da visão do narrador e do nível de relação entre este e as personagens. Apreendidas como signo narrativo literário – no romance –, ou em partes dele – a unidade narrativa -, a personagem remete a uma realidade ou conceito transfigurados pelo discurso.

Procuramos confirmar a hipótese de que o herói se realiza por meio de faces funcionais e situações de estado, reveladas de acordo com o jogo de relações que os agentes narrativos estabelecem entre si na unidade narrativa em que o herói se constitui em fio condutor de motivos temáticos. Tentamos demonstrar que, de acordo com a relação das personagens nas unidades discursivas elaboradas pelo autor, elas – as personagens – são signos narrativos da unidade em que se desenvolvem e se projetam, podendo denominar-se signos livres ou associados. Por sua força temática e como agente narrativo, a personagem de nível macro, formulada a partir da noção que se atribui a povo e a história, ao longo do romance, será conceituada como

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Todo começo é involuntário Deus é o agente.

O heroe a si assiste, vário E inconsciente.

Fernando Pessoa

É uma história complicada, meio sem pé nem cabeça. João Ubaldo Ribeiro

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A opção de recontar, transfigurando dados do sentimento e da cultura nacional adotada por Ubaldo Ribeiro, segundo Lúcia Helena (1994, p. 528) integra narrativas de fundação e revisita três tempos da História do Brasil: a) o da colonização, relativo ao século XVII; b) o do mito heróico do discurso de fundação; c) o da reiteração das ditaduras na política brasileira, símbolo da alegoria das narrativas. O processo de representação simbólica do mito heróico do discurso de fundação aparece também, segundo a sua argumentação, nas narrativas de Alencar (Iracema e O Guarani) e de Mário de Andrade (Macunaíma), cujo procedimento descortina (...) a construção ideológica que subjaz ao mito heróico e à visão de herói como um símbolo, vale dizer, como

um universal concreto.

Frye (1973, pp 33-72), por outro lado, adotando critérios da crítica histórica, classifica as narrativas ficcionais em três modos de ficção, assim denominadas: o modo imitativo trágico, subdividido em cinco modos; o modo cômico e o modo temático. Esta classificação e o tratamento dado ao herói que nela se realiza proporcionaram-nos base para entendermos que, pelo modo imitativo, há, genericamente, três classes de heróis: trágico, cômico e temático. Na Teoria dos Mitos, o modo trágico subdivide-se em romanesco, trágico, cômico, irônico e satírico.

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Pela época social representada, nesse romance, constatam-se os dois critérios que caracterizam o modo trágico de Frye (p.47): a ingenuidade (imitação primitiva ou popular) e a exigência (recriação de um modo antigo que inclui a ironia sutil, porque apenas sugerida), muito embora haja diversas situações narrativas em que a acentuada dose de ironia atinge o nível do sarcasmo.

A interlocução entre História oficial, historiografia e história1 é a regra narrativa básica em que os eixos temáticos se instituem para que Ubaldo Ribeiro ficcionalize as suas personagens classificáveis como individuais e coletivas, uma vez que, de um lado, representam a sua própria história e, de outro, mimetizam o conflito entre colonizador e colonizado, interpretando a relação tensional entre duas classes sociais: a senhoril/ patronal e a escrava/laboral – todas elas realizam-se compondo o povo brasileiro em marcha.

Neste capítulo, procuramos, portanto, situar o herói identificado na história que justifica o discurso narrativo. Para isso, primeiro, apresentamos a síntese da trajetória do herói, buscando-o em seu status de personagem localizada na unidade da história de que participa e constrói, por caber-lhe representar ações. Nos demais capítulos, buscamos a unidade da personagem, por ela mesma, em sua evolução de máscara para signo narrativo relacional.

1 Inicialmente, este conceito está aplicado conforme delimita G. Genette: significado ou conteúdo

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Para compor Viva o povo brasileiro, Ubaldo Ribeiro privilegiou a história e o modo de contá-la, instituindo a intriga2, índice do código narrativo, que costuma referir-se à ação mais do que à personagem, ou seja, centrar-se menos na personagem e mais no encadeamento dos episódios, no agregado da estrutura narrativa (Bourneuf e Ouellet, 1976, p.46). Nessas instâncias narrativas, a personagem desse romance desliza-se para se projetar pela história. Assim procedendo, a intriga centra-se no interesse de grupos de personagens como escolha intencional pelo autor, cuja enunciação é transferida a Stalin José: A História até aqui conhecida é a história das lutas de classe, plebeu contra

patrício, escravo contra senhor, proletário contra ... (VPB, p. 636). A luta entre as classes senhoril/patronal, escrava/laboral e o conflito entre colonizador e colonizado, prolongados ao longo do discurso narrativo, atenua a percepção da intensidade tensional que lhe é inerente, para fazer sobrepujar a relevância da história e do modo de contá-la, dessintagmatizando-a e transformando-a em elemento temático privilegiado pelo autor, no jogo mimético que tece.

De um lado, uma das teses desenvolvidas em Viva o povo brasileiro é a das três raças e culturas formadoras da nação brasileira. De outro lado, tem-se a simbolização do marco histórico inaugurado em busca

2 Segundo Tomatchevski, a intriga consiste no desenvolvimento de ação, o conjunto de motivos

que a caracterizam (1970, p, 177). A este respeito, Carlos Reis argumenta: o envolvimento das personagens na intriga tem que ver com atitudes de subversão e rebeldia, dando como exemplo o

romance Amor de perdição, de C. Castelo Branco, contrapondo-o à obra, A brasileira de Prazins, do mesmo autor, em que a intriga serve para demonstrar teses científicas sob a égide do Naturalismo

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da desvinculação do Brasil do domínio de seus colonizadores, em 1826, cuja representação se dá projetando o Alferes José Francisco Brandão Galvão como vítima inocente dos portugueses, quando da chegada ao litoral brasileiro da

famosa corveta Regeneração, que trazia de volta, agora anistiados,

importantes heróis (VPB, p. 10).

Por seu ethos, Capiroba simboliza a resistência à implantação da cultura do mundo civilizado. Desnorteado pela catequização que os padres impunham aos habitantes da Ilha de Vera Cruz de Itaparica, desempenha dois papéis fundamentais: a) foge para as brenhas, transforma-se em antropófago e defende o seu espaço sagrado ameaçado pelo invasor. Desse ponto de vista, é deus, enquanto o colonizador é o demônio – forças inconciliáveis; b) por isso, também por não se subjugar aos dominadores e ao processo de civilização, o caboco Capiroba, em sua maloca, devora-os. É procurado e encontrado pelos colonizadores, seus opositores. Vê-se enforcado. É morto como vítima de representantes da Igreja aliada ao poder público instituído, mas a sua história permanece.

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espiritualmente, embora, do ponto de vista ficcional, a primeira unidade do discurso fundamente-se na teoria da reencarnação: nunca foi bem estabelecida a primeira encarnação do Alferes José Francisco Brandão

Galvão (VPB, p. 9). Esse procedimento funciona como recurso irônico, pois a sua alma, antes de se tornar brasileira, teria passado, por sete vidas:

Nasceu índia fêmea por volta da chegada dos primeiros brancos, havendo sido estuprada e morta por oito deles antes dos doze anos, (...) outra barriga a chupou (...) eis que a almazinha nasce índio outra vez e outra e outra, não se pode saber exatamente quantas até (...) que depois de ter vivido como caboclo no tempo dos holandeses, enfurnado nos matagais (...) comendo carne de gente (...) terminou por revoar (...) achou-se por dentro das vísceras da mulher franzina que logo iria parir, no corpo do futuro Alferes Brandão Galvão, herói da Independência (VPB, p. 19).

Percebe-se, pois, que antes de ser alferes Francisco Brandão foi caboco (viveu como caboclo, no tempo dos holandeses) e as ações a ele conferidas destacam um atributo, que é também do caboco Capiroba. No tempo e no espaço da história e da personagem, o caboco Capiroba, que tem por pai alguém mais morcego do que gente, é quem o autor inventa para assinalar o início da história e da cultura do povo brasileiro, quando este já conta com um século e meio de trajetória, por meio da qual o mundo civilizado e organizado, sob o princípio da fragmentação, sobrepõe-se ao mundo tribal e o subjuga.

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porque o destino já lhe trançava sobre a cabeça a coroa de louros e espinhos

que ia assinalar sua condição de herói (VPB, p. 13). Este enunciado, proferido por uma voz deslizante – a voz do narrador de nível extradiegético3 – institui uma linguagem de realização polissêmica que interfere na leitura por nós pretendida, cuja significação complementa-se com o enunciado que lhe sucede: Ali à Ponta das Baleias, com grande sanha e fúria, os portugueses desferiram seu primeiro ataque contra os revolucionários da

Ilha de Itaparica (VPB, p. 13).

Cabea esta personagem: a) representar a imagem dos heróis de cujos nomes e ações são narrados pela História oficial, a respeito das circunstâncias históricas vividas pelos brasileiros, em busca de sua independência de Portugal; b) constituir-se na base da construção alegórica, por meio da qual fica instituída a interlocução entre historiografia e história; c) ser reconhecida como herói inspirador e (...) primeira encarnação de uma almazinha nova, (...) gerada para cimentar fortemente o orgulho de

todos e exibir a fibra da raça (VPB, p. 17), já que é uma personagem que se identifica como filho de pai português (que nunca vira) e mãe negra. Dessa condição é também uma das matrizes da formação étnica e cultural do povo brasileiro: sua alma reencarnara diversas gerações. Como seu contraponto

3 Conceito adotado por Genette ao tratar das relações entre o narrador e a história, desenvolvido a

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ou como sua complementação, mas já indiciado na primeira unidade do discurso narrativo, está o caboco Capiroba, filho de negro com índia. Ambos simbolizam, portanto, a origem e raiz étnica do povo brasileiro, na formação de um novo povo e um novo mundo (Ribeiro, 2001, pp. 11-26).

A alma da história é a alma da personagem. Como tal, carrega a essencialidade do discurso narrativo, segundo regras de construção que o individualizam: a da causalidade e as de natureza poética próprias do romance, pois instaura o inefável como característica daquilo que se aceita como arte. As bases da história, centradas em Capiroba, instituem dois fios de tal modo entranhados que mais se mostram como um fio saindo do outro. A alma, assim vista, precisa reencarnar-se, para aprender a viver, revivendo, no escuro e ignorando fronteiras; subsidiando o autor e o narrador extradiegético, entretecendo o enredo4.

1.1 A personagem: componente linearizador da história

O caráter polissêmico das unidades narrativas iniciais e finais de Viva o povo brasileiro, bem como a sua pertinência ao objetivo

4 O herói de Tomaschevski (1971, pp. 193-5) compreende duas características: de um lado, resulta da

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deste capítulo, indicam que esta leitura inicial da história seja realizada a partir do caboco Capiroba, isto é, buscada na seqüência lógica dos acontecimentos narrados. Assim, na linha do tempo da história, tem-se Capiroba, localizado em 20 de dezembro de 1647, numa circunstância em que o seu esconderijo (brenhas escuras) já não lhe proporciona segurança. Emergindo da consciência e pela voz do narrador extradiegético, essa personagem representa o papel de quem deve morrer por três razões fundamentais: a) não trabalha como escravo, isto é, não obedece às regras do jogo social de seu tempo, pois vive foragido por herança de seu pai; b) oferece resistência à colonização; c) transforma-se em antropófago, a partir dos trinta anos, porque ficara maluco.

A unidade narrativa em que a história do caboco Capiroba se concentra encerra-se em 26 de dezembro de 1647, depois de saber que a sua filha, Vu, havia amado Zernike (Sinique), holandês em fase de engorda para ser devorado. Com o enforcamento de Capiroba, as suas mulheres e filhas foram perdoadas e aproveitadas como escravas, inclusive Vu, que se apresentava grávida do holandês. Aparentemente, Vu é signo narrativo que se enquadraria na categoria que Philippe Hamon define como distribuição diferencial5 por figurar apenas quase ao final da unidade narrativa que tem o caboco Capiroba

5 A distribuição diferencial é a designação dada a um dos cinco traços distintivos de realização da

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como núcleo. Entretanto, a força de seus traços de realização persistem no espaço narrativo e na história, isto é, o seu ethos transcende gerações.

Na organização do projeto narrativo em estudo, essas duas unidades do discurso desempenham funções como: a) caráter temático, porque a História do Brasil é mimetizada, focalizando diferentes tempos sociais e, nela, a luta entre classes sociais, explorando a noção de herói, o sentimento do povo brasileiro, o conceito de povo e de alma; b) elo entre as histórias vividas pelas personagens representadas; c) elo entre as personagens. Esse procedimento repete-se, pois, quando se narra o nascimento de Venância, Vevé ou Daê, em 26 de fevereiro de 1809, nascem outras histórias: a da Roxinha, de Turíbio Cafubá, de Dadinha – neta de Vu e Sinique –, de Perilo Ambrósio e dos pais deste, na versão de Dadinha, escrava da família Farinha. Dotada de sabedoria mística e cultural, Dadinha, já com cem anos, em 10 de junho de 1821, é a ancestral da geração de escravos do tempo de Perilo Ambrósio, século XIX, mas que conhece e conta histórias de Vu, do caboco Capiroba, de Sinique, de Perilo Ambrósio, de Dom João e Dom José, para, depois, morrer como previra e quisera.

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única testemunha, deste seu ato, o Feliciano. Suja-se do sangue de Inocêncio, para fazer-se passar por herói, junto ao comando de guerra. Denuncia a sua família e toma posse de todos os bens de seus pais. Casa-se com a viúva rica, Sinhá Vitória, única filha de pais ricos. Consagra-se Barão de Pirapuama, ou seja, Barão das Baleias. Estupra a jovem e escrava Vevé, Venância, filha do bisneto de Vu, Turíbio Cafubá, com Roxinha, por isso, é mulher de coragem. Doa Vevé ao Nego Leléu. Por tradição de família, Perilo Ambrósio é cruel nas suas relações com os seus escravos negros. Agrada a Igreja e bajula a Corte. Perilo Ambrósio morreria de morte doída e presa, sem poder confessar os pecados (VPB, p. 158), segundo praga de Budião e ódio de Feliciano. Em menos de três meses, o Barão morre, sem que o médico descubra a causa. Sinhá Vitória fica viúva, com seus três filhos do primeiro casamento. Não se sabe que idade Perilo Ambrósio e Sinhá Vitória têm. Depois de morto, Perilo Ambrósio é consagrado herói, torna-se Centauro de Pirajá.

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auto-imagem de negro alforriado, que estabelece relações tensionais subjacentes

Leléu, que rejeitava Vevé e sua filha, encantou-se, aos poucos, com Maria da Fé e passou a tratá-la como se fora neta sua. Proporcionou-lhe estudos em Salvador, dando-lhe por professora Jesuína, mãe de Amleto. Leléu ganhou Vevé de Perilo Ambrósio. Ao ser acolhida, Vevé trabalha para o seu novo senhor, comandando barco de pesca e pescadores. Um evento muda os rumos da história de Vevé, Dafé e Leléu. Já com quatorze anos, Maria da Fé atrai forasteiros que a assediam, junto de sua mãe Vevé. Vevé protege a filha e, por isto, é assassinada por quatro brancos. Maria da Fé a tudo assiste. Fica traumatizada e entra em profunda tristeza, absoluta apatia e mudez. Buscando solução, Leléu organiza e anima uma festa de São João, em que se fizeram presentes os assassinos de Vevé, conforme esperava Leléu. Terminada esta festa, Nego Leléu prepara-se e vinga a morte de Vevé, matando os quatro forasteiros. Ao ser enterrado, Leléu foi consagrado como homem e estátua de glória.

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terras, gado, madeira, calcário, lavoura de fumo. Tem quatro filhos: Carlota Borroméia, Clemente André, Bonifácio Odulfo e Patrício Macário. Amleto, conforme projetara, apropria-se dos bens de Perilo Ambrósio, adota sobrenome nobre, transforma-se em comendador respeitado da mais fina estirpe inglesa; nega a origem e relação materna. Deixa as casas da herança para a viúva de Perilo Ambrósio sobreviver com os seus três filhos, dos quais um, Vasco Miguel, faz medicina, depois de formado, casa-se com Carlota Borroméia, por arranjo e conveniência de Amleto. Insatisfeita e impotente, Carlota suicida-se, deixando dois filhos.

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Com um ano à frente dos negócios já se comporta com maior austeridade que a do pai e está mais arguto e frio que ele. Sua esposa é Tereza Henriqueta Vianna Sá de Brito Ferreira-Dutton, com quem tem dois filhos: Luiz-Phelippe e Isabel Regina. Henriqueta apaixona-se por Patrício Macário, mas não é correspondida. Frustrada com este fato, Henriqueta diz ao marido que é assediada por seu irmão. Isto provocou a divisão entre os dois irmãos. Patrício Macário abre mão da herança e muda-se para uma casinha em Matacavalos. Rompidos, os irmãos não se vêem por mais de quinze anos. Reencontram-se por meio da mediação de Isabel Regina. O cunhado Vasco Miguel, filho de Sinhá Vitória e esposo de Carlota Borroméia, morre e deixa dois filhos. Patrício Macário Nobre dos Reis Ferreira-Dutton é filho de Amleto e Teolina. Como o seu próprio nome expressa, traz marcas do herói romântico, por seu temperamento rebelde, por seus vícios, por seu amor impossível. Para que evoque a imagem do herói romântico, deve viver um amor platônico. No exército, chega a Major. Se Bonifácio Odulfo (já com 60 anos) é adepto do movimento dos fanáticos Monarquistas da Independência, Patrício Macário (com 58 anos de idade), sofre saudades de Maria da Fé e defende os movimentos populares, contrariamente ao seu status profissional: general do Exército.

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reencontro dos irmãos concretiza-se, mas Macário e Odulfo desentendem-se em um debate político: tratava-se da queda do Governo Marechal Teodoro e dos movimentos populares em defesa do regime republicano repudiado por Bonifácio Odulfo, com os quais, entretanto, Patrício Macário se identificava, por influência de Maria da Fé.

Maria da Fé, a Dafé, aparece primeiro na memória de Leléu. É filha de Vevé com Perilo Ambrósio, neta de Turíbio Cafubá e bisneta de Dadinha que, por sua vez, é bisneta de Capiroba. Além disso, é muito bonita, guerreira astuta, corajosa, mágica. Conheceu o mudo Inocêncio e compreendia o que ele dizia. Criada por Nego Leléu, Dafé construiu o seu próprio destino: saiu de casa e ninguém soube direito para onde. Corriam notícias de que havia se transformado em bandoleira. Acreditou-se quecompareceria ao enterro de Leléu. Seria capturada por mais de trinta homens do Exército, em meio aos quais estava o tenente Patrício Macário, filho de Amleto, entretanto, os bandoleiros venceram os homens do Exército. Patrício Macário Nobre dos Reis Ferreira-Dutton é prisioneiro do bando, vê Maria da Fé como se fora uma visão. Ela apaixona-se por Macário, mas determina que lhe sejam dadas gotas de duas ervas - a ele e ao capitão Vieira; após dormirem, teriam de ser despidos e transportados para o Largo da Glória, da Ponta das Baleias: esta vitória do bando foi denominada: a Derrocada de Baiacu.

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ano do movimento, Dandão morre. A semente visível do bando germina num solo que lhe é fértil. É instigada pelo sentimento de dor vivida e sofrida pelos escravos: o assassinato de Inocêncio, o de Vevé, o do Alferes, o corte da língua de Inocêncio, o estupro de Vevé. A maldade e intolerância tanto de Perilo Ambrósio, quanto de Amleto, que representam todos os exploradores dos escravos, alimentam ressentimentos conseqüentes dos maus tratos a que eram submetidos. Tudo isto contribuiu para que a união de Budião, Merinha, Dandão, Feliciano e os planos por eles organizados, tornassem-nos coesos, de tal modo que, juntos, pudessem praticar a mesma ação heróica: com as ervas colhidas por Dandão, passadas a Budião e pela ação de Emerenciana, envenenaram, lenta e gradualmente, o opositor de seu grupo de forças, Perilo Ambrósio. A coesão da intencionalidade dessas personagens que, mimeticamente, representam pessoas de função social escrava, transforma-as em um único herói, que vence o patrão, seu senhor.

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Postos em cena em 30-6-1871, os dois – Dafé e Patrício Macário – amam-se por cinco dias. Maria da Fé mistura gotas à comida de Patrício. Ele dorme, ela desaparece e se torna lenda. Durante o delírio de Patrício Macário, provocado pelo escaldado de baiacu, Lourenço entra na história como resultado desse amor. Inventado como Faustino Costa, no capítulo nove da primeira parte da narrativa, Budião, reaparece no capítulo 19 da segunda parte, identificado como o cego Faustino contador de histórias: reconta a história de Perilo Ambrósio, Feliciano, Vevé e Macário. Também comenta que Maria da Fé herdara duas canastras contendo segredos sobre mandingas: uma de Dandão e outra de Budião. Segundo o cego Faustino, ela sumiu por algum tempo como guerreira e líder da Milícia do Povo. Dafé e Patrício Macário teriam deixado: Lourenço, para continuar a busca iniciada por Dafé.

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comunica-lhe a decisão: participaria das lutas contra o Paraguai, em vez de somar com o bando de Maria da Fé. Para a glória de João Popó, seu filho volta vitorioso, mas não profere o discurso que o pai ficou elaborando ao longo de dois anos. A descendência de João Popó traz como núcleo narrativo duas personagens: Stalin José e o velho comunistão, Teodomiro da Estiva, enforcado por ordem de Getúlio Vargas, em 1938 ou 1939.

Encerrado o período revolucionário alusivo a Canudos (1871 a 1874), à Guerra do Paraguai, Revolução Federalista do Rio Grande do Sul e à Revolta Armada, as personagens referenciais, que descendem de Bonifácio Odulfo, como Isabel Regina, José Eulálio Venceslau de Almeida Braga Ferraz, Eulálio Henrique, ocupam espaço. Assim, a personagem negra cede lugar à branca miscigenada. A riqueza acumulada por Perilo Ambrósio (1826), Amleto (1830 a 1866) e Bonifácio Odulfo (1867 a ...) esfacela-se. Isabel Regina, Filha de Bonifácio Odulfo, conta aos seus netos que a sua tia Carlota Borroméia morrera acometida por colapso. Prepara uma celebração para seu tio, Patrício Macário, por seus cem anos de idade. Terminada a celebração, o herói morre. A canastra que guarda profecias acumuladas por Dandão e Dafé é roubada.

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primo Luiz-Phelippe Ferreira-Dutton Filho. Nesta unidade discursiva, reconta-se a história das famílias descendentes de Amleto.

Por meio de Eulálio Henrique, sabe-se que Bonifácio Vicente contratara empresa estrangeira para desenhar a árvore genealógica da família Dutton: recurso composicional com que se metaforiza a mimetização do mito destes tempos em que a força do capital torna abstrato e falso o sentimento e a imagem do herói rebaixado de sua superioridade divina para ser elevado em sua humanidade. O herói é elevado em sua maldade ficando rebaixado em sua humanidade. O Alferes é herói passivo, Perilo Ambrósio, Amleto, Bonifácio Odulfo são usurpadores, segundo diferentes percursos históricos, mas movidos por razões afins. Patrício Macário, Budião, Merinha, Dandão, Zé Popó e Dafé mimetizam motivos arquetípicos distintos daqueles outros, de tal modo que o primeiro bloco de personagens mantém relação actancial com o segundo. Enquanto o primeiro é impulsionado pelo mito do poder, o segundo o é por outros mitos: justiça, liberdade, verdade, conhecimento.

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pouco exploradas, de que se destaca o Dr. Eulálio Henrique Martins Braga Ferraz, empresário.

Para terminar o discurso narrativo, mas não a história (pois a história não tem fim, segundo o cego Faustino), retorna-se a Itaparica, em 1939, quando o general Patrício Macário recebe a visita de Isabel Regina, para celebrar os cem anos do tio. Ao final da homenagem, Patrício Macário morre. O seu baú é roubado. Dentro dele estavam o livro que escrevera (só poderia ser publicado após a sua morte) e a canastra que herdara de Dafé. Assim, levaram suas memórias, os segredos seus e o que nele fora guardado por Dandão, Bundião e Dafé.

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Em virtude de sua força mimética, o caráter antropomórfico que a personagem representa carrega outros, dentre os quais se ressaltam dois: o histórico-social e o antropológico propriamente ditos. Ambos os caracteres se interpenetram do mesmo modo como a história e o discurso narrativo constituem-se em duas faces de um mesmo rosto: a obra. Neste sentido, a obra não evoca um tema, pois este é a sua essencialidade. Como tal, o tema não se justifica por si mesmo, mas requer elementos que o suportem segundo a simbologia de que participa historicamente e representa. A história do povo brasileiro é personagem-tema e como tal cumpre o seu percurso.

A narrativa do modo imitativo em Viva o povo brasileiro centra-se numa história que revela, simultânea e contraditoriamente, amor e repulsa. Continuidade e descontinuidade. Conta-se a história para fazê-la pensar-se em si mesma, ou por meio de suas personagens, como se vê pela afirmação de Zé Popó, ao recontar a história do caboco Capiroba a Patrício Macário: Você tem razão, a história não tem pé nem cabeça (VPB, p. 494). Nela, a força da ação incide naquilo que é contado pelo narrador e no que as personagens rememoram, dentro da lógica que se traduz em fruto de observação do narrador extradiegético:

Budião não sabia por onde começar. (...) E, deixando a história sair na ordem

que ela quisesse, contou ... (VPB, p. 159).

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mas por incluir a evolução dos estados interiores, cuja exploração se dá pelo processo de enunciação por eles instituída. Pela expressão de Budião, infere-se um dos critérios de organização da narrativa que estamos estudando: a deslinearização da história. Este critério de organização das informações narrativas é um modo de contar e recontar histórias que se acham implicadas no contexto em que o narrador tem a sua liberdade de comunicação cerceada e poder para transferir a responsabilidade da enunciação à personagem. No entanto, quando este componente do mundo que narra, transfigurando-o, tem também a sua voz vigiada, vê-se na contingência de adotar artifícios que violam a sintagmatização daquilo que conta.

Por outro lado, este exemplo expressa que o escritor e Budião vivem experiências análogas. Sendo enredos e intrigas os mesmos desde que o mundo é mundo, cabe ao contador de histórias estar atento aos critérios:

Muitas coisas neste mundo não podem ser descritas, como sabem os que vivem da pena (...). Nas minudências da intriga e do enredo, amores dificultados, maldades contra inocentes, dilemas dilacerantes, azares do Destino, coincidências engenhosas, surpresas bem urdidas, arroubos de paixão e tudo o mais que constitui justa matéria dos romances e novelas, nisto sai-se ele menos mal conforme a destreza do ofício, sendo esses enredos e intrigas os mesmos desde que o mundo é mundo (VPB, pp. 108-9).

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outra são mentira e, concomitantemente, podem ser verdade: não são fatos, são histórias. Esta é uma proposta do autor. Dizendo com outras palavras: são ilusão da realidade. Uma linguagem sobre outra linguagem as antecede e também as realiza. A história assume-se como linguagem e se busca na própria linguagem. Nelas, reside a salvação do sujeito que se busca, pois são fundamentadoras do sujeito. De algum modo garantem-lhe o que dele se escapa, inclusive a certeza de que nisto sai-se ele menos mal conforme a destreza do ofício. A história, como a linguagem, é a promessa de que a liberdade perdida pode ser um dia resgatada pelo sujeito, na forma de consciência histórica ou transformar-se em lenda.

Herdeiros das formulações aristotélicas, Anatol Rosenfeld e Antônio Cândido (Cândido et al., 2002) estabelecem ligação entre enredo e personagem, situando-a como ficção e sinônimo de mímese. Para Rosenfeld, estes elementos circunscrevem-se em dois campos: o lógico e o ontológico. Argumenta que as relações da personagem com a obra enquanto arte literária são instâncias restituidoras da liberdade que a vida e a convivência nos rouba. De outra parte, Antônio Cândido as vê na rede de relações de intencionalidade do romance, em que, segundo seu ponto de vista, há fatos organizados em enredo, e personagens que vivem esses fatos. E defende:

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A personagem vive o enredo e as idéias, e os torna vivos. (Cândido, pp. 53-4).

Cândido sugere deduzir que a construção estrutural da história e do discurso narrativo é a maior responsável pela força e eficácia de um romance. Nesse sentido, não apenas o herói, também qualquer outra personagem constituem-se investimento ideológico. A ficção é um lugar privilegiado: lugar em que o homem pode viver e contemplar, através de personagens variadas, a

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Tanto a narrativa historiográfica quanto a ficcional situam-se no mesmo locus, ou seja, emergem da mesma órbita temática e carregam heróis dotados do mesmo estigma caracterizado por Ubaldo Ribeiro: falsos heróis. Uma é movida por interesses “científicos”, outra por opção estética, mas ambas reapresentando a vida que se vive, pois o que para um é importante, para outro não existe (VPB, p. 515). Tais modalidades narrativas movem-se segundo o interesse e o papel que lhes cabe representar: só se bota no papel o que interessa

(idem). Nesse sentido, o cego Faustino, contador de histórias compridas, assegura:

A História não é só essa que está nos livros, até porque muitos dos que escrevem livros mentem mais do que os que contam histórias de Trancoso.

... cada geração que chega resolve o que aconteceu antes dela e assim a História dos livros é tão inventada quanto a dos jornais (VPB, p. 515).

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na história quanto no discurso narrativo, como jogo mimético. Esta característica é também parte da saga do herói individual e coletivo.

Nesse jogo, a história é compreendida como resultado da imaginação de seu autor. O discurso narrativo é um ato que manipula experiências ficcionalizando-as, por meio de um determinado modo de contar técnico narrativo (Reis, 1988, p. 29). Constitui-se na morada da história, cuja realização, enquanto discurso literário, funda-se na relação entre os dados: o pré-literário e o imitativo, isto é, o literário. Realiza-se mediante diálogo entre dois níveis de representação interpenetrantes: evoca a vida que se vive em seu devir; participa do processo enunciatório, pelo ato produtor de linguagem, no espaço narrativo. A linguagem narrativa historiográfica também reproduz outra linguagem, mas não a transfigura, nem a poetiza quando se realiza em seu espaço próprio. A história construída e identificada como historiográfica persiste seguindo um percurso, inerente à lógica “científica”, de caráter unívoco e linear, por exigência de sua natureza e função. Embora privilegie acontecimentos em que se circunscrevam as ações ou os atributos de “heróis”, estes, uma vez verbalizados são imitação do processo sócio-político, de significação ideológica, cuja concepção, assim se resume: A história só ama aqueles que a dominam: é uma relação de escravidão mútua (Hucheon, 1983,124).

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enquanto indivíduos e destemporalizam a sua existência, conferindo-lhes enredo feito da diversidade de motivos. Os fios da intriga ligam-se por diferentes regras. Sublinharemos três constatáveis no romance em estudo: a) a personagem é contextualizada, a partir do foco dela mesma sobre si e sobre a sua situação histórica: Eu sempre tive fama de esquentado e sou mesmo. (...) Não suporto que violem direitos meus que considero sagrados

(VPB, p. 496); b) a personagem é retirada da memória do narrador, que faz mover a sua consciência, por meio de recursos denominados por G. Genette como metalepse: O caboco Capiroba apreciava comer holandeses (...). E também nem sempre havia morado no meio das brenhas mais fechadas

(...). Isto só aconteceu... (VPB, p. 37); c) a personagem é evocada e apenas mencionada dentro das experiências daquela observada pelo narrador:

Lavindonor, o filho que veio depois de Lavínia Graça, foi o que deu mais

trabalho, porque fez mal a duas moças do povo (...) isso conta a negrinha.

(VPB, p. 618).

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Das relações entre o estar dentro e fora da memória do narrador –

locus que revela ou esconde – a personagem é capaz de projetar-se também como um

fio da memória do narrador ou do narrado, que puxa outro(s) fio(s) com o(s) qual(is)

ela, a personagem, torna-se parte da história. À medida que um acontecimento busca

o seu autor, a sua origem ou a sua causa, juntos, autor, narrador e personagem, puxam

outras personagens, entretecendo fios no e do mundo narrado. A inserção e o percurso

do Alferes Francisco Brandão e de Vevé são exemplos típicos para estes procedimentos.

Tem-se, primeiro, a narração da morte do Alferes e a sua transformação em herói da

independência, sem nada ter realizado. Depois é cogitada a sua vida e a sua origem, em

que fica indiciada como reencarnação da alma do caboco Capiroba.

Quando a personagem é submetida à dessintagmatização da

história e o seu fazer estiver desfuncionalizado, a apreensão da totalidade da

narrativa será possível, mediante identificação dos indícios do ethos da personagem

e de indicadores da intriga, no enredo. Isto, entretanto, pressupõe reconhecê-la nas

relações que mantêm com as outras personagens, segundo situações narrativizadas

em que figurem. Assim, um acontecimento e uma intriga são componentes a partir

dos quais se extrai o resumo tanto da história quanto da vida ou dos estados

representados pela personagem, que habita a memória do narrador, como recurso

dominante de elaboração do romance. Em personagens de estado, o tempo e a ação

são freqüentemente descontínuos. Neste caso, o enredo e a intriga adquirem

relevância, para a reconstituição da história. E esta passa a ser funcionalizada na

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descontínuo e no espaço definido, referencializando esse mesmo mundo de todos

esses elementos, confirmando a epígrafe do romance: ... não existem fatos, só

existem histórias (VPB, 1984, p. 7).

Também por isso o herói constitui-se em fio condutor da história e do discurso narrativo, independentemente de o narrador ser

homodiegético ou heterodiegético6, instituindo-se, ambos, reféns mútuos. Em Viva o povo brasileiro, a maior parte das personagens que se realizam como signos livres, ao nível da macro-narrativa são objeto de longa história narrada, sob o domínio da voz do cego Faustino. Como narrador intradiegético, fingindo não ser Budião (Faustino Costa, ex-membro da Irmandade da Casa das Farinhas, por quem Merinha se apaixonara) conta e reconta a história narrada até então, destituindo-a do interlocutor que desencadeava a interlocução e relação tensional entre duas personagens coletivas: colonizador e colonizado.

O papel que cumpre à historiografia e à história ficcionalizada representar, retematiza a concepção de ambas. Ao conhecer Amleto, o cônego defende as suas idéias sobre a vontade nacional e expressa a sua noção sobre este tema: ... levando este país (...) somos os únicos que têm essa responsabilidade (...), pois nos espreita e vigia a História...? (VPB, p. 124). Com o exercício da metalinguagem, a história-ficção vigia, isto é, interroga a

6 Conceito desenvolvido por G. Genette, para designar o nível narrativo em que se tem um narrador

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História, destacando duas dimensões conceituais: a) confirma-se a relevância temática centrada na noção de história e historicidade, sugerindo-nos pertinente classificá-la como personagem; b) revela-se a função social da história como algo que ultrapassa os limites da condição humana: Então toda a história dos papéis é pelo interesse de alguém. (...) O que para um é importante para

outro não existe (VPB, p. 515).

1.2 A unidade do enredo

Os princípios de construção narrativa transgridem o princípio estático inerente ao mundo da escrita. Podem ser compreendidos como princípios de construção da narrativa ficcional (Tynianov, 1971, p. 100-3), inerentes ao fazer e ao ser da personagem, adotados tanto para efeito de sua

funcionalização, como de sua desfuncionalização7e dessintagmatização na história e no discurso.

7 Desfuncionalização, sintagmatização e dessintagmatização são conceitos aplicados por Fernando

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Assim designadas por Segolin, essas três regras de construção contrastam duas esferas de unidades de construção da personagem: a) uma é a sua unidade estática instável no decorrer da obra; b) outra é a unidade da obra, quase sempre evocada ou representada pelo título que lhe é conferido: povo brasileiro. Significa considerar, pois, que haverá sempre um conjunto de índices adotados pelo autor, para assegurar a unidade no esfacelamento da personagem e dos eventos narrativos, quando a sua pretensão é a de dessintagmatizar uma ou outra categoria narrativa. Este recurso ocorre toda vez que o autor prefere privilegiar, em sua estética, o modo de contar, em detrimento daquilo que conta, segundo o princípio da unidade na dinamicidade, como princípio composicional.

Na organização de romances como Iracema e O Guarani, de José de Alencar, a ação e as personagens privilegiam os critérios da

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detém poder político e divino, pai de Iracema; ou antropológico, Peri, salvador de Cecília, como segmento da organização do poder grupal com disposição para aceitar e absorver a cultura e o domínio do colonizador/invasor.

Nesses romances, a linearidade está a serviço da linguagem e da história, de acordo com a relevância que a personagem desempenha como categoria narrativa. A unidade da ação temporalizada e espacializada tem apoio na personagem e, ao mesmo tempo, a justifica, funcionalizando-a. Esta é uma condição que referencializa a

sintagmatização da história: Iracema apaixona-se por Martin. Martin junta-se com os índios guerreiros. Iracema tem um filho do guerreiro Martin. Abandonada pelo guerreiro, Iracema morre. Martin assume o filho, Moacir, e este é o marco do início da civilização brasileira, cuja identidade étnica é povo mameluco.

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Enquanto Iracema e Martin, Cecília e Peri, nas suas relações com outras personagens, despontam claramente, desde o início da história como fios condutores da narrativa e da história e se recebem um capítulo particular em que lhes sejam atribuídos traços de qualificação diferencial, em Viva o povo brasileiro, os dois capítulos iniciais têm dupla função. Por um lado, tais capítulos são a tese que sustenta o desenvolvimento da narrativa e da história. Por outro lado, se acompanhados da voz narrante, revelam a inteireza da proposta da obra e, nela, o nível de funcionalização das personagens, além do nível de

sintagmatização da narrativa: o caboco Capiroba, o Alferes, Perilo Ambrósio, Amleto, Bonifácio Odulfo, Patrício Macário, Dadinha, Inocêncio, Feliciano, Emerenciana (Merinha), Júlio Dandão, Vevé, Maria da Fé e outros, obviamente, não se submetem às mesmas regras de construção.

A origem e o destino destas personagens embaralham-se preenchendo espaços narrativos aparentemente desconectados, pois a vontade do narrador prevalece sobre a das personagens e o discurso privilegia a voz narradora, dessintagmatizando a história de cada personagem nuclearizadora de relações, provocando uma estratégia discursiva, por meio da qual ora a personagem é dotada de funcionalidade, ora sofre ou vive estados, ou deixa a sua memória misturar-se com a memória do narrador, buscando-se no seu ser e estar situado em seu devir.

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necessária para que compreendamos ambas. Estes são componentes da armação do tecido narrativo, articulados indissociavelmente, pois, desde a sua origem, a personagem é o elemento que imita a ação e esta imita a vida do ser nas suas relações sociais, afetivas, existenciais, místicas e míticas, segundo determinações históricas.

Este enfoque é prova de que as duas faces da personagem de que tratou Aristóteles, em A arte poética, permanecem como referência para o desenvolvimento das formulações teóricas empreendidas pela crítica literária. Isto enseja lembrar que o romance é, por excelência, a arena em que se dá o processo de enunciação, por meio de atos dialógicos, em que as duas faces da moeda, de que tratou Saussure ao denominar signo, formam o dado romanesco, espaço no qual a personagem continua realizando a sua dupla função: a) a antropomórfica, pelo lado semântico-ideológico que evoca e representa; b) a face mítica, interpretada como imitativa. Desenvolvendo a percepção aristotélica, mas já no seu tempo, Muir complementa-a considerando que as qualidades atribuídas à personagem e os seus atributos determinam a ação e vice-versa.

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da obra – nela mesma – que emergem ou atualizam-se as regras narratológicas, de que participam as personagens, pelo menos quando queremos compreender as relações entre as possibilidades teóricas e as funções sociais instituídas em fenômenos de significação, mimetizados.

A informação narrativa historiográfica e a ficcional, configuram a unidade na diversidade apreendida por meio dos eventos narrativos temporalizados lingüisticamente, mas destemporalizados tematicamente, porque situados especialmente como regra de composição da narrativa, em foco. O diálogo entre essas duas naturezas discursivas - a historiográfica e a ficcional; a textualidade e o narrado – armam o esqueleto da história, ao mesmo tempo o esgarçam, mitificam-no e mistificam-no, estabelecendo o contraste entre a materialidade factual física e a imaterialidade metafísica transcendente, com a qual o autor abre a sua obra: Contudo nunca foi bem estabelecida a primeira encarnação do Alferes José Francisco

Brandão Galvão (VPB, p. 9), para fechá-la remete a atenção do leitor à mesma situação de desconhecimento com que iniciara a sua criação: Não se sabe, nada se sabe, tudo se escolhe.Tudo se escolhe, como sabem as alminhas agora

tiritando no frio infinito do cosmos (VPB, p. 673).

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integram o campo das possibilidades, já que, ao mesmo tempo, um e outro parecem ser em si e não o são: nada se sabe, tudo se escolhe. Ambos escapam-se de si mesmos, esfarelam-se para se imporem, vestidos de uma outra natureza: a desmitificação e desmistificação dos fatos, em que a história, como representação, ela e o mundo que evoca, buscam tornar-se possíveis tão somente enquanto articulação entre o texto e o ainda não-texto como mimetização pela linguagem, ou seja, por enunciados.

A narrativa historiográfica ficcionalizada era, antes, assumida como conhecimento que preenche espaços do processo de escolarização, conta acontecimentos tratados “cientificamente”. Como tal, torna-se referência para a vida das pessoas e da sociedade, passa a instituir o duplo do vivido de que fala Júlia Kristeva (1974, p. 89), ao delimitar o conceito dado à ambivalência,

resultante dos procedimentos por meio dos quais se estabelece a coexistência entre a linguagem e o espaço romanesco, portanto, realismo e épica, instituindo a ruptura e a transformação.

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Baseando-se nessa referência “científica”, a ficção também se arma de provas, mas não com o mesmo propósito que caracteriza a produção historiográfica. Em Viva o povo brasileiro, as provas arranjadas para justificar a atmosfera temática, que irriga o seu enredo, estão na canastra de Dandão herdada por Maria Dafé que faz de Lourenço e Patrício Macário os seus herdeiros, entretanto, ao final, roubada por três ladrões, que desvelam o segredo preservado, sob os olhos das almas brasileirinhas, tão pequetitinhas que faziam pena, tão bobas que davam dó, mas decididas a voltar para lutar ...

tinham aprendido tão pouco ... e tremeram outra vez quando lá embaixo três ladrões correram da velha canastra (VPB, p. 673).

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O livro como a canastra são o texto, arena em que se tece o discurso narrativo ficcional, contexto em que as categorias narrativas representam percepções, sentimentos, lembranças, crenças, por meio das quais se expressa o retorno ao passado em conseqüência da intensa inaceitação do passado e do presente. Por isso, o livro suporta os procedimentos de reapresentação de dois diferentes registros de dados da memória: o de natureza historiográfica e o ficcional. Ambos muito mais reveladores do estado atributivo das personagens do que das funções do fazer e do ser.

Desse ângulo, entendemos que o discurso narrativo, para se construir, estabelece as suas regras, isto é, o seu sistema, numa interlocução com narrativas que lhe antecedem. Define suas próprias regras poéticas, instituindo dois pólos comunicantes em interlocução, que se processam em quatro planos básicos: a) aquele inerente à relação entre dois sujeitos em comunicação – o que escreve e a escritura; b) aquele em que a historiografia e a história ora se comunicam ora se rompem; c) o estabelecido entre o romance e o leitor; d) aquele em que narrante e narrado empreendem uma profusão de informações, em rede de relações complexas próprias do processo de enunciação romanesca, de que fazem parte as personagens.

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aquelas duas modalidades narrativas articuladas, materializando-se por meio dos três segmentos básicos com os quais se arma a intriga e se formalizam processos representativos feitos em um discurso irônico: a) do Caboco Capiroba e Vu a Dadinha; de Dadinha e mãe Inácia a Rufina Popó e Zé Pinto; b) de Perilo Ambrósio a Amleto e Bonifácio Odulfo; de Bonifácio Odulfo ao Dr. Eulálio Henrique. Entre estes dois segmentos há o terceiro, representado por João Popó, suas muitas mulheres e filhos, evoluindo destes a Teodomiro da Estiva e Stalin José, de um lado, Lavinoel e Lavindonor, de outro. Seus sucedâneos têm, naqueles, a base nuclear da comunidade representada.

Por isso mesmo, a força metafórica instituída, que se projeta sobre a história, altera a distribuição e força relacional das personagens entre si, para instaurar-se a criação dos agentes narrativos, com que o autor mimetiza o conflito entre três classes sociais: a classe senhoril/patronal de nível superior – classe de nível sócio-econômico alto; a classe de nível médio, formada por descendentes de Popó que se bifurca, para que se tenha a mimetização dos problemas da classe média (Lavinoel, Lavindonor e Stalin José) e da classe laboral (Teodomiro), em contraposição com a classe escrava/laboral, de nível econômico baixo.

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tio, para a encomenda da organização da árvore genealógica de sua família, pretexto e justificativa para dois aspectos: um refere-se à consistência pretendida para o projeto narrativo de sustentação do romance em análise; outro, por se aplicar ao nível da história, corresponde à relevância da marca tradicional conferida ao nome da família, para assegurar-lhe prestígio social e nobreza destacados.

A mimetização da árvore genealógica da família Dutton é um índice que referencializa a seleção e distribuição do enredo e, nele, dos agentes narrativos. No nosso entender, é um dos componentes que estabelece coesão entre as personagens constitutivas do romance em estudo, ao lado daquele determinado pela representação da História e da historiografia como material do enredo, contrapondo possuídos e despossuídos, isto é, senhores e escravos.

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estabelecido pela metaforização do processo de formação étnica, cultural e política do Brasil:

ÍNDIA

PRETO

Caboclo

Capiroba Muitasmulheres

VU Sinique Filha mais velha Negro baleneiro

Dadinha Turíbiocafubá Roxinha

Vevé

Maria

da Fé PatrícioMacário Titiza

Lourenço Carlota Barromélia Nhô Felisberto Goés Farinha Nhá Ambrosina Goés Farinha Perilo Ambrósio Antônia Vitória Negro Inocêncio Negro Feliciano Negro Budião Júlio Dandão Merinha Amleto Teolinda Jonh Malcon Dutton Dona Jesuína George Hutton Ana Teresa

Carlota Barroméia Clemente André Patrício Macário Bonifácio

Odulfo TeresaHenriqueta Isabel Regina Bonifácio Odulfo II Luiz Phelippe Ferreira Duton Filho Amleto Henrique

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João

Popó IaiáCandinha

Iaiá Menina Negra Laurinda Maria Zezé Rufina do Alto Maria Pataca Negrinho da Senzala Zé Popó Dionísio Popó Vavá Popó Germiniano Popó Rita Popó

Teodomiro StalinJosé

Labatut

Popó IoiôLavínio

Lavinette LavíneaGraça Lavinoel Lavindonor

Alga

Marinha Mônica MarcusVinicius Robson

Tatiana Érica Vanessa Rickson

Andréa PriscillaAlessandra Rockson

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Como já destacamos, a narrativa inicia-se pondo em cena o Alferes José Francisco Brandão Galvão, em 10 de junho de 1822, sob sol forte de inverno, para ressituá-lo nesta mesma data, registrada para revelar a sua idade (nascido dezoito anos, dois meses e vinte dias anteriores à sua morte). É, então, um jovem apresentado como ingênuo, de 17 anos, filho de brasileira com português. A sua inconsciência consiste na representação do grau de ingenuidade do povo brasileiro, nas suas relações com o colonizador, fazendo contraponto com a esperteza de Perilo Ambrósio que, neste aspecto, tem como contemporâneo e coadjuvante o Nego Leléu e os sucessores seus. Pela ordem cronológica, tanto no plano da narativa quanto no da história, Perilo Ambrósio é sucedido por Amleto, Bonifácio Odulfo e Dr. Eulálio Henrique.

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os mesmos componentes narrativos que abrem Os Lusíadas: As armas e os barões assinalados, uma das possíveis expressões evocadas por a glória em vida e a glória na morte, somente esta parece perseguir a alma sempre

encarnante do alferes, que assim se complementa: O povo brasileiro se levanta contra os portugueses. Isto do lado da narrativa historiográfica, no entanto, no da ficção, a tese sustenta-se na descendência do caboco Capiroba e na de Amleto, tendo Perilo Ambrósio e os seus escravos, Feliciano e Inocêncio, como eixos sobre os quais se erguem e mantém a narrativa e a história.

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que une e justifica a criação da galeria de personagens de que a obra é composta revela, sem dúvida, o conteúdo mítico que inspira a Guerra dos Canudos, liderada pelo Conselheiro, e a mística que alimenta a heroína Maria da Fé e seu bando.

Em contrapartida, o eixo do assunto, nessa obra, centra-se na relação entre opressor e oprimido, isto é, na luta de classes, enquanto o eixo temático central que desvela o sentimento de brasilidade fundamenta-se na compreensão de que o escravo, ou melhor, o operário, passa por um processo gradual de desenvolvimento da consciência de que o eu coletivo se constrói, historicamente, na formação da cultura e da historicidade do povo brasileiro, simbolizado pelos povos que iniciaram a civilização no recôncavo baiano, particularmente a Ilha de Itaparica, para derramar-se sobre os estados: Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo e afinal abranger o Brasil, como projeção do plano da contigüidade sobre o da similaridade, que a retórica denomina por metonímia e hipérbole, respectivamente.

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a) da terra; b) daquilo que ela produz e que a criatura humana transforma; c) do dinheiro; d) das pessoas enquanto objeto ou sujeito e das possíveis versões atribuídas aos fatos relativos ao comportamento humano nas suas relações de poder, no jogo de interesses pessoais e institucionais a que as pessoas que buscam ascensão social se submetem. Poder-se-ia levantar a hipótese de que o projeto narrativo com o qual se compõe Viva o povo brasileiro é um projeto pertinente a cânones estéticos neo-pós-realistas, uma vez que tematicamente vincula-se à proposta estética realista, que se realiza de acordo com um modo de contar, por meio do qual os eventos narrativos acham-se organizados deslinearmente.

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Há, assim, uma aparente dessintagmatização da história, que desliza infiltrada de elementos da narrativa historiográfica, instaurando a ilusão de que tanto a narrativa de ficção como a historiográfica são lendas: decorrem do interesse e da imaginação de seus narradores, bem como do caráter representado pelas personagens, ou pessoas ficcionalizadas, segundo a esfera de função ou estado que representam, naquelas duas linguagens.

O movimento histórico por que passou o “povo brasileiro”, ficcionalizado por João Ubaldo Ribeiro, aplica-se ao projeto narrativo adotado pelo autor. Desse ângulo, pode-se ver um processo de representação em que o eixo do desejo forja um outro: o do poder, situado em um contexto em que

todos podem, mediante o papel que lhes é conferido: o usurpador de sobrenome; o de prestígio social e político; o apropriador indébito de bens; o traidor; o pseudo-religioso; o herói ingênuo, o herói mítico – todos perpassam a memória do narrador e se misturam com a consciência do narrado.

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entre si, que nos são comunicados, no decorrer da obra. Ou interpretando como Meletínsk, é o conjunto de motivos em sua sucessão cronológica e de causa e de efeito, por isso, tais motivos traduzem a passagem de uma situação para outra. A trama, por outro lado, aplica-se ao que se refere à ordem, ou seja, à seqüência em que os acontecimentos aparecem no texto e como o leitor toma conhecimento disso.

São fundamentais estes dois conceitos para a análise e interpretação da obra em estudo, pois acontecimento, tempo, espaço e personagem relacionam-se no processo de fabulação, contudo regidos por um critério estético, que aqui, tomando por empréstimo a designação de Segolin (op. cit., p. 66), pode ser denominado por poética do modo de contar. Esta poética, na narrativa em estudo, privilegia a desfiguração da fábula e eleva o grau de evocação da voz narradora, manifestante. De tal modo, a temporalidade e a espacialidade postas em destaque funcionam, predominantemente, como índices de que essa desfiguração é intencional; constituem um dos traços de construção poética muito mais do que indicadores da relação de causalidade, espacialidade e sucessão cronológica, embora todos esses componentes existam.

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se atualizam os diferentes planos comunicantes – enredo, personagem, fabulação e tema – na realização do ato produtor do processo interlocutório, orquestrado pela memória narradora, entendida como estratégia de representação discursiva, ou utilizando o entendimento de Genette, como representação da informação diegética que se encontra ao alcance de uma determinada quantidade e qualidade de informação e de um certo campo de consciência, seja do narrador heterodiegético, seja da personagem – narrador autodiegético, seja do amálgama resultante da presença de diferentes vozes comunicantes ao longo do mundo narrado.

Temos, ainda, de perceber que o ethos e as idéias das personagens, ou seja, o caráter representado por elas, bem como os interesses sociais e econômicos em que se situam, são os componentes que mobilizam a história, muito mais do que a intriga (conjunto de motivos que caracterizam a ação) que lhes cabe imitar.

O desenvolvimento da narrativa e da diegese sob essa ótica, fundamenta-se em critérios por meio dos quais os conflitos tecidos a partir das relações estabelecidas entre as personagens, mediante certa relação de causalidade e temporalidade, cedem lugar a um procedimento discursivo em que se invertem a seqüência, a lógica cronológica e situacional dos acontecimentos narrativos.

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zigue-zague, por meio do qual se reconta o já revelado. Cada reiteração do acontecimento narrativo situa o componente narrado sob uma outra versão: Borroméia, filha de Amleto, morre, primeiro, por suicídio, depois, quase ao final da narrativa, teria morrido em conseqüência de ataque cardíaco. Este procedimento cria o conflito representando-o por meio do critério da contraditoriedade: contraste e confronto entre instituições e idéias a que se filiam as personagens: para que se proteja a imagem nobre de Amleto, também a de sua única filha tem de assim ser desenhada, pela posteridade. Observa-se que da evolução de seus papéis narrativos, ambos são e não-são o que são. Este é apenas um dos modos de realização do critério da contradição.

As estruturas do nível narrativo, enquanto dados integrantes do enredo (ação, seqüências, intrigas) justificam a construção de personagens compatíveis com o desenvolvimento e a proliferação de determinada opção temática. A força de índices espaço-temporais, situados em suas determinações sócio-políticas, sócio-econômicas, místicas e étnicas instaura implicações na organização da narrativa, instância significante da obra de ficção. Essa percepção é compatível com a compreensão de Yves Reuter (2002, p. 51), quando recomenda a necessidade de que se valorize um pressuposto: a personagem é um dos suportes essenciais do investimento ideológico e

psicológico dos autores e dos leitores.

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