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Processos de representação do herói coletivo

O herói coletivo é uma personagem que também se constrói, por meio de imagem verbal, estruturada na arena romanesca. Acha-se implicado no jogo discursivo em que se circunscreve. No processo de significação de que participa, evoca imagens de agentes, funcionaliza-os ou desfuncionaliza-os na

sintagmatização da narrativa. Estes agentes narrativos representam, portanto

transfiguram, ações situadas fora do lugar onde ocorrerem. Por isso, a correspondência entre o fenômeno – o acontecimento representado – e o signo verbal é a verdade, a sua ausência é a falsidade, no jogo entre a verdade e a falsidade. Duas classes sociais identificam-se segundo duas realizações: uma pelo caráter imitativo, portanto representativo, ficcional, outra pelo ethos mimetizado. Dandão, Budião e Merinha dão origem à Irmandade da Casa das Farinhas, que se opõe aos senhores/patrões. Funcionalizadas, são fios condutores da diegese e do discurso narrativo, determinadas pelo enredo e determinando-o.

Em contrapartida, nas tragédias greco-romanas, o herói revelava forças individuais e sentimento coletivo, decaía inocentemente, mas elevava-se em humanidade. Constituía-se em referência para determinada comunidade, nas suas relações com a personagem antagônica, dela distinguindo-se: todos estes heróis eram de descendência nobre. Os seus feitos e a sua origem asseguravam-lhe sucesso na façanha que lhe cabia cumprir. A expressão da força da ação dessa personagem de ficção, dotada de poderes

superiores, segundo o modo trágico e épico, situava-se entre o divino e o humano, cujo destino era marcado pela fatalidade e pelo mistério.

Desse modo, acha-se situado em sua condição de signo narrativo, pela possibilidade de, antes, ter sido símbolo na sociedade em que atua. Desse ponto de vista, para que uma personagem receba a função de protagonista há que se inventar antagonista ou antagonistas que, numa perspectiva ético-antropomórfica, têm sido designados por “vilões”. Ambos, herói e “vilão”, são fios narrativos que se embaraçam, para dinamizarem a diegese e funcionalizarem-se.

Ocupam posições centrais na diegese porque exercem função nuclear na unidade narrativa de que eles se tornam referência e centro de convergência, na sua relação com as demais personagens. Assim, a ficção precisa de protagonista e de antagonista, sejam eles funcionalizados ou desfuncionalizados: a) em sua condição de agentes narrativos, por seu caráter, por estarem sobrecarregados de um determinado ethos; b) por seus atributos; c) pelas funções que têm de cumprir realizando façanhas, persuadindo para efetivar as suas conquistas; c) pela centralidade que exercem como fonte de elos que se ligam em busca da coesão das informações narrativas.

Na verdade, o arquétipo do herói coletivo, também ele, tem início nas representações que a personagem realizara na tragédia grega, por meio da manifestação do coro reforçando o arquétipo da busca representado pelo herói. O coro não é a voz da consciência do herói (...) mas encoraja-o

em sua hýbris ou instiga-o à ação (Frye, 1973, p. 215). Acrescente-se que é

próprio da epopéia grega, narrar a ameaça ou salvação do destino de uma comunidade. Nela, o herói contava com adjuvantes. Quando a representação centra-se na força da ação justificada pelo desejo de mais de uma personagem, temos o que chamamos por herói coletivo. Esta concepção baseia-se nas formulações de Segolin (op. cit., pp. 45-7) ao teorizar sobre a personagem no romance do realismo literário, em que, segundo ele, arma-se o conflito situando-

se entre o actante-sujeito e o actante-oponente referencialmente identificado com o grupo social ou parcela. Esta é a personagem que reúne papéis ou os

dispersa, isto é, esfera de ação que compreende várias personagens.

Por outro lado, é no messianismo e no sincretismo religioso desenvolvido como cultura brasileira que vemos a base do arquétipo do herói de Ubaldo Ribeiro, como caminho percorrido pelos motivos temáticos em que se situa a Irmandade Secreta, em que Dafé assume o núcleo das relações mantidas entre as personagens situadas no mesmo eixo do desejo, depois Irmandade do Povo Brasileiro: agente que acolhe os oprimidos, compostos por descendentes miscigenados, mas classe trabalhadora. É, pois, na fusão dos arquétipos míticos da mitologia africana, messiânica, e grega que se situam os heróis harmonizados com a camada popular. Além disso, este é o locus em que, de um lado está Dafé e, de outro, Patrício Macário, cuja síntese não passa de utopia, fruto do estado de delírio, de onde brota a figura evanescente, Lourenço, melhor dizendo, a difusa perspectiva de

transformação da utopia em realidade. Evanescentes passam a ser também a Irmandade do Povo Brasileiro e a Irmandade do Homem (VPB, p. 608).

Antes antagonistas, Dafé e Patrício Macário descobrem- se e se completam como projeto utópico, circunscrito na diferença inconciliável, porque na singularidade de cada um. Representam a metáfora do povo brasileiro, em outras palavras, a ventura do pensar, pregar e fazer sem horizonte e caminhos definidos – dificuldade de acesso às representações simbólicas:

... praticamente sozinhos na Ponta de Nossa Senhora, o que ela contava lhe parecia fragmentário e desconexo, sem que ele jamais conseguisse juntar direito todas essas peças. Mas, quando lhe dissera dessa sua perplexidade, ela lhe respondera que também não sabia como juntar as peças, que sua vida era mais uma procura. Ela sentia como se houvesse uma espécie de canastra, uma arca, onde as respostas, pela obra de gente como ela, da qual existia mais do que se pensava, se acumulariam, até que alguém pudesse entretecer num todo único. A única coisa que ela sabia era a força do povo (...) daquilo que se produzia, com suas mãos, cabeças e vozes, pois o povo era o verdadeiro dono do país (...). Tinha certeza de que um dia seria reconhecido, de que haveria liberdade e justiça (...). Não era uma invenção poética, mas uma realidade... (VPB, p. 510).

O mito da procura está simbolizando regras que se vinculam à contradição de perspectiva representada por Patrício Macário e Dafé, porque contraditórios e inconciliáveis são os caminhos e os caminhantes. Embora a situação de ambos seja distinta, o mito de Édipo repete-se, pois há sempre um obstáculo intransponível que se interpõe sobre a vida individual e coletiva.

Dafé (Ela sentia, sabia, daquilo que se produzia, com suas mãos, cabeças e

vozes) contenta-se com o mundo traduzido empiricamente, Patrício Macário,

procura-se na representação simbólica da existência. Para ele, a busca explicava-se no rito da travessia e do eterno retorno. Tudo indecifrável, como indecifrável é a vida: O povo brasileiro ainda nem sabia de si mesmo, não

sabia nada de si mesmo! (VPB, p. 661) e você só pode ser você depois que você for você (...), depois, Patrício Macário soprou como quem sopra a fumaça de um cigarro e não se mexeu mais (VPB, p. 663).

Como a diegese narra a história do povo brasileiro durante quase dois séculos, realiza-se por meio de quatro personagens coletivas, ou seja, quatro atores compondo os agentes narrativos: de um lado está o colonizador e o colonizado; de outro, está o escravo e o senhor, que mais tarde evoluem para empregado e patrão, situados na História e na Pátria/ Nação. O espaço de atuação de tais atores desdobra-se para que ambos desempenhem o papel de coadjuvantes, durante mais de um século. Esta traduz-se na expressão de uma busca fundamental que aproxima os opostos, por se tratar de um conflito maior que ambos: tornarem-se independentes do colonizador.

Na relação actancial, é na confrontação dos sujeitos coletivos que se vislumbra a intensificação e superação do conflito, o agón, instância da tensão e do desejo, do querer e prova qualificadora. A competência para o enfrentamento, o desempenho do ator, é o movimento em que se dá a

transferência de objetos, situações ou estados: é o páthos, ou prova principal. O resultado desses dois momentos realiza-se na instauração da sansão dos feitos do ator, pela manifestação do reconhecimento ou prova glorificadora, momento da anagnórisis.

Inscrito nesse percurso, está o do herói coletivo e do herói de cada unidade narrativa, realizando-se no discurso em que se dá o modo representativo irônico de que trata Frye (1973, p. 136). A ausência de liberdade e de justiça social é o conflito, o ágon, em que “nascem” os heróis coletivos de Viva o povo brasileiro, como também é o componente gerador da relação antagônica estabelecida entre os diferentes agentes narrativos: colonizador, classe escrava/laboral, senhoril/patronal, ou seja, relação antagônica entre povo e elite dominante, fazendo a história (ficção), historiografia (escrita da história) e a História oficial, no discurso narrativo.

A grandiosidade das ações representadas pela personagem, em narrativas de ficção da natureza de Viva o povo brasileiro, está, desse ponto de vista, associada ao choque das diferentes classes sociais, cujas forças são atribuídas às instituições, às injunções de ordem psicossocial, sócio-econômica e sócio-política, bem como a fatores de ordem étnica. Fatores que vinculam os agentes narrativos a aspectos temáticos que se movem em meio às lutas sociais, historicamente determinadas, fundadas em motivação mítica e histórico-social. Interpretando a relação tensional, o agón, representada por duas classes sociais: a senhoril/patronal e a escrava/ laboral, pode-se constatar

que essas classes ligam-se a outros fios constitutivos da organização da sociedade representada pelo poder público, em nível macro, que chamamos por elite dominante e que, mimeticamente, “assume” o papel de responsável pelos destinos da nação. Destes segmentos emerge tanto o herói individual quanto o coletivo, conforme determinações histórias narrativizadas pela historiografia no discurso narrativo ficcional, a partir das relações entre colonizador e colonizado, conforme tentamos didatizar pelo diagrama, em que os heróis coletivos são situados em suas relações antogônicas:

humanidade humanidade Pátria Pátria/nação Corte colonização Colonizado povo Irmandade da Casa das Farinhas

senhor governo exército

História historiografia ?

No lugar de deuses e bruxos, outras forças que se opõem são mimetizadas por meio da motivação temática explorada, em Viva o povo

brasileiro: a) ao representar os escravos contra os colonizadores, no século

XVII; b) na primeira metade do século XIX, os escravos contra os senhores (a elite dominante: Igreja, Estado, intelectuais e sistema produtivo); na segunda metade do século XIX, os movimentos revolucionários populares em busca da liberdade e da justiça contra o movimento dos senhores monarquistas (Bonifácio Odulfo/Henriqueta, o sistema bancário, o de segurança nacional) – retrata a dependência nacional, a valorização do prestígio tecnológico e científico conquistado pelo mundo europeu; c) na segunda metade do século XIX, os grandes proprietários aliados ao poder público republicano absolutista; d) no século XX, o poder monetário, da lógica capitalista (Luiz Marreta, Ioiô Lavínio) contra operários e funcionários de esquerda (Teodomiro da Estiva). Esse procedimento ocorre sob duas realizações fundamentais, em que a primeira é o germe da segunda. Dandão, Merinha, Budião organizam a estratégia para matarem Perilo Ambrósio, senhor dos escravos, sem que ninguém descobrisse. O plano do querer fazer desloca- se para o de poder fazer cujo êxito só é possível mediante ação coletivizada. Performance e desempenho completam o seu percurso e o barão morre sem que ninguém soubesse a causa. Como se trata de ação representada por escravos, o resultado da busca coletiva, isto é, a sansão do plano executado tem de ser abafada, pois o sujeito funcionalmente situado realiza

o status de oprimido e a ação é caracterizada pela sociedade como criminosa. Por isso, a personagem dispersa, ela mesma, reconhece e sanciona a ação, com a insurreição cometida: Não só tinham matado o

barão, como matariam muitos mais barões e fariam outras coisas igualmente portentosas (VPB, p. 209).

A motivação temática própria dos senhores do século XX tem como contraposição o povo que vive o conflito entre o cosmos e o caos, mito da criação. A “elite” representada centra a dinamização de suas buscas em favor da monarquia. Desse modo, contrapõe-se ao povo, cujas ações são motivadas, tematicamente, pela procura de liberdade e justiça, como preservação não de status social, mas da vida. Em sua consciência mágica, a força de suas ações está na utopia.

Se o herói coletivo é formado de personagens que vivem um mesmo ágon, é a elas que cabe representar as ações, carregar os atributos e viver os estados que engendram o páthos, para que se concretize a prova glorificante, o anagnórisis, cujo percurso contraria os sonhos de Dafé, vivificados no delírio de Patrício Macário. Esse percurso narrativo iniciado por Dafé chega a Teodomiro da Estiva, que se situa no embate entre revolucionários como os da Confederação Operária Brasileira, da Revolta da Chibata, tendo como antagônicos a Polícia Federal e a Ação Integralista. O diagrama a seguir apresentado quer demonstrar o percurso narrativo das relações antagônicas representadas pelo herói coletivo, ficcionalizado. O

191

a)

b)

c) prova

qualificadora Alferes Brandão morre: é vítima

Perilo Ambrósio mata: faz vítima

Luta pela Independência do Brasil Proclamação da Independência do Brasil prova

principal conspiraçãoda casa da farinha

Conspiradores matam Perilo Ambrósio: é “herói de guerra”

Amleto apropria-se dos bens do Barão Perilo Ambrósio. Provas de Horácio Bonfim contra Amleto

Bonifácio Odulfo assume os bens do pai e isola os irmãos; casa-se com Henriqueta

Henriqueta apaixona-se por Patrício Macário que ama Dafé

prova

glorificadora Transformação dos conspiradores emIrmandade Secreta

Programa narrativo 2 a) b) c) prova qualificadora prova principal prova glorificadora

Exército persegue a Irmandade Secreta

Irmandade Secreta aprisiona o tenente Patrício Macário

Irmandade Secreta vence e transforma-se em Irmandade do Povo Brasileiro

• Patrício Macário identifica-se com a Irmandade

Os irmãos, Patrício Macário e Bonifácio Odulfo, rompem-se

Patrício Macário e Zé Popó lutam contra os Paraguaios.

192 b) c) prova principal prova glorificadora

Guerra dos Farrapos (1835-1845)

• A Irmandade do Povo Brasileiro, Milícia do povo... • O Exército luta contra o Paraguai.

• Os Voluntários da Pátria, • Budião é preso e torturado.

• O exército brasileiro e os voluntários da Pátria ganham a “Guerra”

• Budião é solto por cinco homens, um é a Dafé.

El vação dee Patríco Macário a general

Programa narrativo 4 a) b) c) prova qualificadora prova principal prova glorificadora

• Críse do regime oligárquio / monárquico • Queda do Marechal Deodororo

• Movimento republicano

• A Irmandade do Povo Brasileiro luta na Guerra de Canudos

• Libertação dos escravos

Patrício Macário apóia republicanos; Bonifácio Odulfo, os manarquistas: encontram-se e desentendem-se. Dafé morre e transforma-se em lenda

Em delírio, Patrício Macário fala com Lourenço sobre a Irmandade do Povo Brasileiro e a Irmandade do Homem

Revolução de 1964

Popó: operário comunista e profissionais da classe média

Descendentes de

desdobramento dos quatro programas, organizados para caracterizarem o percurso do herói, passando por três provas (qualificadora, principal e glorificadora), é entendido como equivalente à classisficação de Frye (op. cit., pp. 185-6) ao tratar dos três estágios da jornada perigosa por que passa essa personagem (ágon, páthos e anagnórisis):

Após tais programas narrativos, a funcionalização do herói coletivo, em nível diegético, fragmenta-se, embora o jogo antagônico entre as classes sociais persista, confirmando a interpretação de Lúcia Helena, ao classificar Viva o povo brasileiro como narrativa

de fundação, cuja proposta é a de refletir a dissolução da hegemonia

política que caracteriza os romances “Iracema” e “O Guarani”, de José de Alencar.

A formação e o desenvolvimento do herói coletivo, da forma como estamos concebendo, no ramance em estudo, iniciou-se, então, por Capiroba cuja realização relaciona-o a portugueses e holandeses, em 1647, além de vincular a obra a narrativas de fundação. Bem assim, institui um “fato” da História oficial: data da invasão holandesa no Brasil e, concomitantemente, destaca este herói, germe do herói popular de caráter messiânico, inscrito na obra. Então, tais episódios são o sintoma de tudo o mais que se desenrolará ao longo da obra, quanto à mimetização do desenvolvimento étnico e cultural do povo brasileiro, raiz da classe popular.

O arquétipo desse herói, em Viva o povo brasileiro, vincula- se, portanto, ao herói cultural mesclado de traços do herói messiânico, cujo papel é exercido, especialmente, por Zé Popó, Júlio Dandão, Faustino Costa (Budião), Maria da Fé, Zé Pinto, tendo como antagonistas os senhores e patrões. O arquétipo mítico buscado pelos primeiros é o mesmo: justiça e liberdade, mas a base mística distingue-se, ao nível da aparência, não ao da essência. Enquanto Zé Popó é de Ogum e ganha a batalha sob os olhos de Oxalá, pela ação de Ogum – dono do ferro, mestre das armas, ferreiro

incriticável, invencível (VPB, p. 452), Dafé haverá de transformar-se em

lenda, aos olhos do povo que representa e por quem luta: eu mesma, às

vezes, penso que não existo, penso que sou uma lenda, como dizem que sou. E tu, no futuro, talvez venhas pensar assim também, a pensar que sou uma lenda (p. 512). São duas faces do herói representado nesse romance.

Se João Popó, como os demais “heróis” cujo desejo sustenta- se na crença de que a grandiosidade da criatura humana está na elevação de seu prestígio social, político e financeiro, então a motivação temática para a construção do herói literário afasta-se, mas não se desgarra da mentalidade e do modelo mítico, cuja referência se baseava no processo de criação do mundo e se fundamentava no tema dos mitos mais antigos como o da iniciação do herói: decifração de enigmas da natureza, deglutição por um monstro e conseqüente libertação de seu ventre, prisão de crianças por canibais e libertação pelo herói. Também não se referencializa de forma totalizante, na

motivação temática em que a idealização esteja inserida em motivos como o da invisibilidade exterior ou da santidade oculta: João Popó aspira a

anagnórisis sem passar pelo páthos. Este é o espaço que lhe confere

centralidade na unidade narrativa em que atua como núcleo.

O herói assim identificado realiza-se em histórias nas quais um desejo ou um objetivo é compartilhado por muitos, pelas mesmas razões. A sua dimensão coletiva é anulada, especialmente em novelas de cavalaria, intensificando-se em narrativas de concepção romântica, pois, nestas, o papel do herói é de caráter individual. Peri, em O Guarani, de José de Alencar “salva” Ceci solitariamente, tendo de enfrentar a guerra e o dilúvio: a palmeira é a sua arca. A Irmandade da Casa das Farinhas lança mão de um outro símbolo apocalíptico, a canastra. No lugar de Peri está a Irmandade da Casa das Farinhas e de Ceci, o povo brasileiro, enquanto classe popular. A força da ação humana exercida como resultado da infusão das forças dos deuses da Idade Antiga e Média, divinizando o herói, reconhecido como semideus, também não tem relevância, nesse jogo mimético.

Para o narrador, Zé Popó não acreditava nessas coisas, mas

a verdade era que todos os que falavam pela deusa Ifá, a que tudo sabe, sempre disseram a Zé Popó que ele era de Oxossi (...) orixá perito no arco e flexa (p. 437). O teor irônico enunciado, no entanto, expressa o contrário:

o narrador deixa a voz de Zé Popó deslizar sobre a sua: Zé Popó dá corda

aconselhara Maria da Fé? (p. 438). O que está em foco é o ethos da

personagem, filho da “feiticeira”, Rufina Popó, tem definido o seu percurso de herói como: sujeito virtual e atualizado, que deseja fazer guerra; sujeito realizado, porque faz guerra, e a faz sob os olhos de Oxalá, atuação invisível de Oxossi; passa, finalmente, pela prova qualificadora. Assim, a ação de Zé Popó é reconhecida, completando o movimento actancial na instância narrativa: prova glorificante. Em nível de sentimento representado, no romance, a Guerra do Paraguai de que Zé Popó e Patrício Macário participaram carrega a mesma motivação em que se baseia a Irmandade da Casa das Farinhas, transformada em Irmandade Secreta e, depois, Irmandade do Povo Brasileiro, porque defendem a nação contra invasores.

A representação da vitória do Brasil sobre os Paraguaios resulta do apelo à hierarquia divina relativa ao mundo de Iorubá ou Nagô, interpretado como aquele que dá sustentação ao poder sobre-humano e assegura a vitória aos seus protegidos. Entram em ação Oxalá, Oxossi, Xangô, Ifá, Ogum, Exu e Iansã, formando o ambiente em que Zé Popó é herói inventado pelo autor para a mimetização dos poderes e das relações que estes deuses representam, na cultura afro e atualização do “mito heróico”, neste particular e irônico papel de herói mítico, expressão arquetípica dentro da cultura do povo brasileiro, para desmitificar o herói.