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Motivações e arquétipos temáticos do herói

Uma das explicações sobre a personagem de ficção, investida no papel de herói, tem por base algum traço do arquétipo desse agente narrativo. Diferentes realizações são consideradas estruturalmente muito parecidas porque o conceito que as referencializa baseia-se na compreensão de que mito é uma representação coletiva, gestada e transmitida ao longo de várias gerações que relatam uma explicação do mundo (Brandão, 1988, p. 38, v. I). Os arquétipos do mito e do herói evoluem, mantendo as suas raízes. No mito das idades, consta que a humanidade, desde a sua origem, decaiu, degenerou-se até chegar à idade do ferro. Antes, passou pela idade dos heróis – semideuses. É de Hesíodo o mito genealógico das idades. Essa genealogia percorre cinco etapas: ouro, prata, bronze, heróis e ferro (idem, pp. 169-182).

Para o homem grego, como já assinalamos, o herói é, em

princípio, uma idealização e (...) talvez estampasse o protótipo imaginário da (...) “suma probidade”, o valor superlativo da vida helênica (Brandão,

1987, p. 52, v. III). A mitificação do herói representa, pois, a idealização de um mundo sonhado. Na sua origem, liga-se à consciência mágica sobre as forças naturais, sociais e divinas, desde a Idade Antiga, embora Meletínski (1998, p. 40-1) demonstre que a sua fonte está nos primeiros ancestrais demiurgos, os heróis culturais. São encontrados na narrativa folclórica e teriam

encarnado em si mesmos o primeiro coletivo da tribo (...), o socium como reunião de ‘pessoas verdadeiras’ (à diferença das ‘não-pessoas’ que ficavam além dos limites do coletivo da tribo nativa).

Frye (1973, p. 39) fundamenta-se nesses pressupostos, mas desdobra os três modos de representação formulados por Aristóteles (as personagens podem ser superiores, iguais, ou inferiores a nós); em cinco possibilidades de representação: a) o herói será mito, quando, nas suas relações com os outros homens e com o meio, a sua condição for de

superioridade, por representar um ser divino; b) o herói será de caráter lendário quando desenvolver ações de caráter maravilhoso e as leis da

natureza lhe atribuírem ações e atitudes inaturais, mediante presença de talismãs miraculosos, gigantes e bruxas apavorantes, animais que falam; c) o herói correspondente ao que Aristóteles classificou como herói do modo

for superior apenas a eles, liderando-os; d) o herói será imitativo baixo, quando, nas suas ações, a personagem revelar-se igual a nós e mostrar-se destituída de superioridade em relação ao seu meio. Realizando-se assim, transgride a concepção clássica atribuída ao herói literário; e) e, por fim, trata do herói de modo imitativo irônico quando, por suas ações, revelar-se inferior a nós, em inteligência ou em poder.

Nessa perspectiva, Meletínski demonstrou que a primeira personagem dotada dessa condição é o primeiro ancestral que exerce a função de herói cultural ou demiurgo e se encontra no folclore dos povos primitivos do mundo inteiro. Os primeiros ancestrais teriam sido, no geral, seres totêmicos unidos zoo e antropomorficamente, gerando grupos de pessoas e de animais, introduzindo leis matrimoniais, fabricando instrumentos primitivos de trabalho, encontrando o fogo escondido no ventre de um animal. Esses ancestrais totêmicos antecederiam também as imagens dos deuses celestes mais altos e daqueles chamados por heróis.

Se deificado ou antropomorfizado, no entanto, o herói é a personagem que, além de estabelecer uma relação emocional relativa à sua vida moral e social, nucleariza tanto o feixe de funções das personagens como o feixe das relações que ambos mantêm entre si, seja na formação do tecido social de que fazem parte, seja no aspecto mítico que representam. Com essa perspectiva, Meletínski assim classificou o herói: o herói mítico que era um

baixo, de quem nada se espera, dado ao seu status social, mas que,

gradativamente, manifesta a sua essência heróica.

Segundo Meletínski, os deuses e os diferentes espíritos (...)

são os que modelam o mundo exterior, enquanto à sociedade humana correspondem as personagens a partir das quais é formado o arquétipo do herói (1998, p. 46). De outro modo, o herói encarna a sociedade que os deuses

protegem e os reis governam. Mas, de acordo com Meletínsk, esta não é a primeira fase da formação do arquétipo do herói, é, entretanto, uma das razões pelas quais ele figura em primeiro plano, determinando o desempenho das demais personagens nas suas relações com o enredo, pois:

o aprofundamento dos traços específicos do herói dão-se (sic), paulatinamente, de modo que a personalização (enquanto emancipação do herói que se distingue do coletivo) pode ocorrer relativamente tarde e até aquele momento o herói permanece na órbita do subjetivismo coletivo (op. cit., p. 46).

A presença dos mitos da mitologia greco-latina, mesmo no período renascentista, eleva ou rebaixa a força das ações da personagem, tornando-a superior aos homens comuns e, além disso, fio central não apenas de um motivo, mas da diegese e do discurso narrativo. Depois, em conseqüência do mundo renascentista, da ascensão da burguesia e queda da realeza, a presença dos deuses distanciou-se daquele herói que antes estava entre os deuses e os homens. A sua força, a sua inspiração passou a ser sustentada por outros deuses:

a noção de mito amplia-se. Vê-se que a ficção absorve aqueles mitos e os re- elabora. Passam a habitar a narrativa também outros mitos, além daqueles transformados em arquétipos míticos e temáticos, mas sem perder de todo a inspiração mítica, no sentido delimitado por Meletínski.

Para ele, em narrativas ocidentais, desde a sua origem, as personagens inscrevem-se em uma espécie de caldo cultural, de natureza mítica e arquetípica, subsidiadora da formação daquilo que chama por arquétipos temáticos. Analisando-os aponta: no plano dos mitos, o do nascimento do herói, o da busca, o da criação, o escatológico, o heróico. Tais mitos subsidiam, como demonstrou, a formação de arquétipos temáticos tais como criação, liberdade, interesse, gradualismo, regressividade, democracia e alienação. De natureza arquetípica, encontrou como constantes os arquétipos da busca e da iniciação, embora percebesse que os mais freqüentes são o da expulsão, da ansiedade, da identidade, da relevância. Entende haver outros tipos de arquétipos que se realizam, a partir de elementos imagéticos. Eles se expressam por imagens, ilustrando-as com a escuridão, cegueira e as trevas.

Compondo o enredo de Viva o povo brasileiro, o retorno a 1647, trazendo o pai de Capiroba, que vivia nas trevas e via pelos ouvidos, representa não apenas retorno ao arquétipo do mito da busca, mas também expressão de saudosismo do contato com a Natureza (idade de ouro), roubado pelo avanço do processo civilizatório. Expressa, sobretudo, a

busca das raízes como quem necessita encontrar a sua identidade, a sua referencialidade, ou seja, sua essência. A idade de ferro vincula-se a um mundo ambíguo em que coexistem os contrários. A lógica interna e a organização do enredo do romance em estudo permitem a vinculação da sua temática ao mundo mítico. A fuga do pai do caboco Capiroba – negro fugido –, é repetida pelo filho; vincula-se à idade de ouro e ao mito da busca do paraíso atribuído pela mitologia grega a essa idade. Pai e filho procuram a liberdade que lhes fora roubada, e, concomitantemente, praticam a fuga da escravização que lhes era imposta. Nisto residem as demais buscas representadas pelo “povo brasileiro”, mimetizando o herói identificado como classe escrava/laboral.

O caboco Capiroba, por outro lado, traz resíduos do mito da criação, evolui para mito escatológico e associa-se ao do arquétipo do herói cultural. Emerge de um locus que Meletínski denomina órbita do subjetivismo

coletivo2, onde permanece. Este recurso traduz-se no retorno às suas origens.

Durante o processo de colonização, muitos gentios sofreram o mesmo mal por que passara o caboco Capiroba. A diferença é que este resistira, porque fugira e voltara às suas raízes. Realizando a metáfora de filho de morcego, representa o retorno à origem da formação da vida do povo brasileiro:

2 É no coletivo que a definição dos traços específicos do herói ocorre, gradualmente, até que adquira

singularidade e se emancipe. Enquanto isto se forma, o herói permanece na órbita do subjetivismo

... depois de se enervar até ranger os dentes e andar de um lado para o outro como se quisesse costurar o chão, ... ele amanheceu febril (...) mastigando palavras só ouvidas no tempo em que seu pai ainda falava (...) e sempre usava antes de virar bicho ... (VPB, p. 40)

Capiroba carrega traços de pai morcego, ave que simboliza a multiplicação da vida, porque é o único pássaro que possui mamas; simboliza, igualmente, a morte porque é tido como destruidor da vida, por suas mandíbulas abertas; representa a perspicácia, por ver no escuro. Este jogo simbólico intensifica os traços diferenciais de Capiroba: a) pela quantidade de mulheres e filhas - roubou duas mulheres e fugiu (...). No segundo ano, roubou mais

duas e teve muitas filhas, só filhas (VPB, pp. 42-3); b) se antes, Capiroba era

pessoa franca, cordata e de boa paz, com a degradação de seu espaço, passou a exercer os seus poderes, sob o pretexto de que sofrera moléstia da cabeça. João Popó, de outra parte, vincula-se ao arquétipo representado por Capiroba nos seguintes aspectos: a) comunhão com a natureza; b) virilidade; c) superioridade sobre o ambiente social em que ambos atuam.

A singularização dos traços predominantes do herói e da heroína distancia-os de referências pré-literárias divinizadas, exceção a Zé Popó. A sorte e o ethos dos deuses, como o destino da criatura humana, vistos em sua historicidade, são objeto de representação inspirada segundo diversas fontes míticas. No romance em estudo, força divina é uma fonte que ora se distancia ora se aproxima da força da ação da personagem, conforme a situação narrativa

que lhe cabe representar, no tempo e no espaço da diegese. O percurso do herói é, então, o mesmo da personagem, ocorre tanto no espaço da obra quanto no da crítica literária; na intencionalidade de sua realização, ainda que ironicamente:

Mas pensar que o alferes foi a primeira encarnação daquela alminha solta no nordestal que vem baixando é mais coisa de vaidade humana, a qual busca mudar o mundo à feição de sua necessidade. Sim, que maior glória haveria para o povo do que ter sido esse herói inspirador e eloqüente a primeira encarnação de uma almazinha nova ... gerada para cimentar (...) o orgulho de todos e exibir a fibra da raça? (VPB, p. 17).

Para desmitificar o herói e desvelar a consciência do povo brasileiro, o narrador finge-se povo e matiza a sua relação com a história que conta; critério introduzido na unidade narrativa que abre o romance. Embaralha fantasia e realidade, corpo e alma, elementos que confundem percepções e desvelam a diversidade do nível de consciência do povo brasileiro, na busca fundamental: a da sua identidade. O Alferes Brandão é herói passivo, resmungava

com aspereza: Gonçalves Ledo, traidor cobarde! (...) grunhia uma imprecação ininteligível e voltava a seu silêncio quieto. (VPB, p. 11). Diante da hostilidade

do colonizador e da inconsciência do colonizado, o herói da Independência (p. 19) é alvo do primeiro ataque dos portugueses contra os revolucionários da Ilha

de Itaparica (p. 13), nem chega a submeter-se à prova, pois lhe cabe representar

o modo narrativo irônico, ou seja, a ironia temática de que trata Frye, que consiste em dizer uma coisa e significar outra muito diferente (1973, p. 66).

Institui a ironia de que os heróis são agentes de transformação do mundo que quer ser mudado, porque, ironicamente, são superiores aos homens comuns. Contrapondo a essa idéia, projeta-se por meio das personagens, conforme ilustra o recorte de diálogo entre Vevé e Nego Leléu, sobre Dafé. Ao fazê-lo, desenha o contraste de percepção de mundo representada por Alferes Brandão e Leléu. Nesse jogo, Júlio Dandão entra para que se estabeleçam elos entre personagens que germinam o locus de convergência de forças para a realização das mesmas buscas. Neste caso, enquadra-se a Irmandade da Casa das Farinhas (semente revolucionária), depois denominada Irmandade do Povo Brasileiro e, posteriormente, Irmandade do Homem:

Coisa talvez de Júlio Dandão (...) coisas daqueles negros desgarrados das propriedades do Barão de Pirapuama, coisas de gente que, em vez de trabalhar, queria mudar o mundo que não podia ser mudado. (...) existirão sempre as leis da vida que não mudam (VPB, p. 263).

O conflito das forças opositivas indiciado pelo diálogo de nego Leléu com Vevé, mãe de Maria da Fé, mimetiza tanto o sentimento de impotência e inconsciência política, por parte do escravo “livre”, como um tipo e estágio de consciência do povo brasileiro, instituindo o critério da disjunção. O fato de Nego Leléu opor-se a Vevé e a Dafé indicia também a previsibilidade do destino de três personagens – o seu próprio destino, o de Vevé e o de Maria da Fé – guerreira e heroína virtual –, em rota para

novas intrigas. As pistas por meio das quais se instituem o processo de gradação tensional desinstalam o sentimento do avô:

... também aqui Leléu cheirava alguma coisa diferente, sentia que essa coisa se estava desenrolando de alguma forma que não podia ver, o ar não era o mesmo de sempre, havia alguma coisa, alguma coisa ( p. 262).

O nego Leléu vincula-se ao “mito do trabalho”. Entende impossível buscar-se em um outro mundo e soma com a classe senhoril/ patronal. Revela-se destituído de poderes superiores, porque não se libertara dos valores culturais implantados pelos colonizadores, melhor dizendo, absorveu-os, para representar e difundir um dos tipos de definição de povo:

... nós somos o povo desta terra, o povinho. É o que somos, o povinho. Então te lembra disso, bota isto bem dentro da cabeça: nós somos o povinho! E povinho não é nada, povinho não é coisa nenhuma, me diz onde é que tu viu povo ter importância? Ainda mais preto? Olha a realidade, veja a realidade! Esta terra é dos donos, dos senhores, dos ricos, dos poderosos, e o que a gente tem de fazer é se dar bem com eles, é tirar o proveito que puder deles (...) mas povo é povo, senhor é senhor! (p. 373).

Com o diminutivo povinho e com o acréscimo de preto, ele se indefine: povinho não é nada. No entanto, indefinindo-se ele se situa: povo

é povo, povinho não é coisa nenhuma. Leléu inicia o seu percurso vinculando-

se ao arquétipo do herói picaresco. Transforma-se em herói épico e termina como picaresco. Herói e anti-herói na mesma personagem, caos e cosmos, mal e bem, no mesmo Leléu vivendo num beco sem saída do começo ao fim:

dois Leléus (...) um lado da cara rindo e o outro fazendo careta, um lado do coração despejando amor e o outro rubro de ódio, uma orelha ouvindo e a outra surda, uma perna fugindo e a outra correndo dentro (VPB, p.344).

Neste sentido, distingue-se de Amleto, que se restringia ao papel de aproveitador, que mais se vincula à situação arquetípica da figura mitológica do trikster, porque mentiroso, trapaceiro, que gosta de negociatas (Meletínski, op.cit.p.208). As ações que Nego Leléu representa associam-se a um de seus atributos: a alforria obtida e que ele praticava por imitação aos brancos, apesar de classificar-se como muito trabalhador: por imposição do barão Perilo Ambrósio, acolheu Vevé (Venância/Daê) grávida de Maria da Fé, adotando-a por neta. Como resultado, encheu-se de sensibilidade e ternura. Em conseqüência, elevou-se em grandeza humana, porque matou os assassinos de Vevé por amor de avô e por vingança.

É, entretanto, com a inserção da história de Perilo Ambrósio que se instala o ágon, instituindo-se a organização de uma das faces da personagem coletiva, ou seja, a formação da Irmandade da Casa da Farinha – elemento dinamizador da diegese. Da seqüência de unidades narrativas nuclearizadas por Capiroba, pelo Alferes e por Perilo Ambrósio decorre o herói que se move segundo três representações temáticas básicas, conforme já antecipamos: concepção de povo; de “herói” e “ação heróica”; de alma sob duas visões culturais, a afro-brasileira e a judaico-cristã. Estes três eixos temáticos são referências, marcas em que se pode perceber a unidade do percurso do

povo brasileiro, cuja obsessão é a de desmitificar o herói individual, particularmente aquele que se realizara no romance cortês e se aperfeiçoara em romances do período romântico.

Entretanto, dentro da globalidade da diegese, Capiroba é, inicialmente, uma personagem singularizada por seus atributos, identificados por duas situações que se complementam, das quais decorrem os traços que aproximam diferentes personagens, em interface com as marcas que as distinguem. Esses traços são definidos por meio dos motivos temáticos que cabem a essas personagens representar. Interpretando Capiroba, nota-se que, pela força de seus atributos e de seu desejo (quer comer carne de colonizador) pode realizá-lo (prender autoridades, engordá-las e devorá-las) e, ao final, tornar- se sujeito glorificado. Obtém sucesso ao fugir dos colonizadores. Seu sucesso repete-se ao roubar mulheres. Depois, prende e come gente por repetidas vezes. Entretanto, como na tragédia grega, há algo inexoravelmente inevitável de que não se livra - a punição pela subversão à ordem, conforme a regra: tem de se submeter à fatalidade a que se liga a sua história: metafórica, irônica e, indiretamente, é objeto do mesmo martírio a que subjugaram “Cristo”, pois a morte de Capiroba é associada, circunstancialmente, à do Alferes Brandão que, por sua vez, deixa entrever a de Cristo.

De outro ângulo, para atender a obsessão de João Popó, Zé Popó torna-se guerreiro. Do ponto de vista da organização da diegese, é índice que se liga à história de Rufina Popó, Rita Popó, Patrício Macário, Maria da

Fé e Lourenço, contribuindo para o desfecho do enredo que, por sua vez, une Patrício Macário a Dafé e seu bando, como símbolos de ousadia e esperança. É, no entanto, para João Popó que convergem os índices do código narrativo, vinculando-o ao arquétipo representado por Capiroba, pois, como ele, tem muitas mulheres; muitos filhos; participa de movimento patriótico e o celebra em cada dia Sete de Janeiro. Se Capiroba tem filha que submete colonizador aos seus desejos, João Popó tem filho herói de guerra e distribui alimento para todas as famílias pobres de Itaparica, durante toda a semana dessa “importante data”. Não se livra, entretanto, do inevitável.

Ao contar e recontar a história, Dadinha, Zé Popó, cego Faustino e Dr. Eulálio Henrique, revivendo o que sabem, são signos narrativos que se vinculam ao rito do retorno, porque retomam a história que conhecem. Esse seria o início da elaboração do arquétipo do herói a quem cabia submeter- se a provações e dominar o mundo, estruturá-lo, em forma de narrativa de suas origens, harmonizando-o com as exigências humanas, isto é, assumindo lutas contra forças demoníacas do caos. O cego Faustino (VPB, pp. 514-21) narrador intradiegético mimetiza a origem de nossa História e nos remete à nossa origem:

A história do cego Faustino era de fato comprida, porque começava quando o mundo foi feito, antes do descobrimento do Brasil. Contou que já existia mundo antes de existir o Brasil, existiam portugueses, franceses, galegos, alemães e muitos outros

(VPB, p. 514).

A evolução dos arquétipos do herói, nos processos de representação literária, indica que a tentativa atual é a de se lhe atribuirem marcas que o confundam, do ponto de vista ético, com o vilão, isto é, o antagonista. Dizendo de outra forma, eleva-se o status daquele que é mais hábil em trapaças, pois herói é aquele que se enriquece, conquista o poder, ainda que seja a qualquer custo. Este vai para a História, como Perilo Ambrósio, reconhecido como Centauro da Independência; João Popó, herói insuperável, Bonifácio Odulfo, lendário banqueiro.

Estes acham-se, no entanto, tão distantes do herói mítico, quanto do herói messiânico – beneficiário do povo pobre e humilde – bem como do herói épico, pois, neste, o núcleo da imagem arquetípica indica que sua fúria não expressa caos social dada à coincidência dos seus impulsos pessoais e sociais, diferentemente do herói romântico (Meletínski, op. cit., p. 83). Maria da Fé é a personagem que se vincula ao arquétipo do herói épico, enquanto Zé Popó, ao do “herói mítico”, embora procure afastar-se de atributos que lhe são inerentes:

João Popó (...) perguntou sobre qual era o sentimento que dominava o soldado na hora de combater pela Pátria (....) Zé Popó respondeu: medo. (...) queria que vissem que não existem homens especiais e que o herói pode ser qualquer um, a depender de onde esteja, do que faça e de como o que