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O herói na série televisiva

Aristóteles, na Antiguidade Clássica, elege a Tragédia e a Poesia Épica como modelos de criação da arte escrita pertencentes aos gêneros maiores no universo da literatura de valor para os gregos, ao passo que deixa, em contrapartida, a Comédia e a Sátira Menipeia para as camadas mais baixas da sociedade, de modo que integrariam, por essa razão, gêneros literários de valor inferior, isto é, mostrariam-se como gêneros menores. Essa concepção perdeu sua força, dentre outras razões, devido ao surgimento de novas formas artísticas e ao advento de suas linguagens, sobretudo em termos de mídia e tecnologia, a partir das quais figuraram novos processos de criação (uma nova poética ou, ao menos, uma revisão desta) e recepção das obras da cultura.

Nesse sentido, o herói foi provavelmente o item que mais sofreu uma alteração no decorrer de tal mudança inferida ao tratamento das narrativas. Assim, o herói clássico gradativamente cedeu seu lugar enquanto protagonista da história para os heróis problemáticos, os quais são mais humanos e menos endeusados. No entanto, o mais importante desse amadurecimento está atrelado ao fato de que a divisão de Aristóteles tinha como critério a esfera social que aparece em primeiro plano nas Epopeias (o que hoje parece não proceder ou fazer sentido, principalmente nos textos televisivos e a discussão acerca de sua qualidade estética): se os gêneros maiores tratavam dos aristocratas. Os gêneros menores, por seu turno, ocupavam-se dos indivíduos comuns, das pessoas do povo. Enquanto aqueles eram enaltecidos por força dos feitos incríveis; estes costumavam ser rebaixados em função da caricatura

bizarra de sua condição social.

A esse respeito, comenta Kothe (1987, p. 10-11) que:

a poética clássica […] teria passado, no século XVI, a dois gêneros: o alto, tratando dos aristocratas, na tragédia da honra; e o baixo, a comédia, tratando de escravos, pícaros e burgueses pretenciosos. O que aí se procurava, de modo todo especial, era mostrar a classe alta como elevada e a classe baixa como inferior, colocando-se essa diferença como diferença entre o mundo com a honra e o mundo sem honra. Subjacente à questão da “honra” esta, contudo, não só a legitimação da classe alta como naturalmente superior, mas também a “honra” como expressão qualitativa de um maior poderio quantitativo financeiro (que, por sua vez, necessariamente é baseado na exploração do trabalho alheio). Por outro lado, nesse deslocamento para um puro mundo axiológico afloram elementos que não são mera falsa consciência.

Não obstante, a vasta gama de autores que se preocuparam com o estudo sistemático, e complexo dos gêneros, há de se reconhecer que, em termos de argumento de autoridade, Mikhail Bakhtin possui uma abordagem mais completa a esse respeito. Assim, ao compor Problemas da

Poética de Dostoievski, Bakhtin (1984) se ocupou do exame dos chamados gêneros maiores e gêneros

menores, embora essa não seja a melhor designação para tais acepções. Antes, o ponto central do estudo dos gêneros, em que pretendemos inserir a questão do herói mítico no universo televisivo adota como princípio maior o pressuposto de que o gênero se baseia na concepção socrática da natureza dialógica da verdade e do pensamento humano sobre ela. O método dialógico de busca da verdade se opõe ao monologismo oficial que se pretende dono de uma verdade acabada, opondo-se igualmente à ingênua pretensão daqueles que pensam saber alguma coisa. “A verdade não nasce nem se encontra na cabeça de um único homem; ela nasce entre os homens, que juntos a procuram no processo de sua comunicação dialógica.” (BAKHTIN, 1981, 94).

No cerne do debate acerca do juízo de valor do texto televisivo, é coerente afirmar que a TV encerra, por um lado, um componente tecnológico voltado a um conjunto de ventos audiovisuais, no qual imagem e som se constroem eletronicamente, bem como são transmitidos de igual maneira; por outro lado, a televisão possui uma variedade de temas e conteúdos que trazem à luz a discussão a respeito de sua qualidade estética. A enunciação dos textos televisuais tangencia, sobretudo, fatores de ordem econômica, pois a cultura fez do funcionamento um mercado comercial, a inferir um novo tratamento da narrativa, da informação e de tudo que reside no seu código televisual. Esse campo de significação resgata, em sua essência, a problemática dos gêneros.

Mais especificamente, há a constante indagação de se os gêneros do discurso que figuram no interior do universo televisivo seriam inferiores em vista da preocupação com a difusão de conteúdo para um público massificado, priorizando o aspecto quantitativo dos produtos textuais que lhe competem. Isso significa que, em primeira instância, convém limitar o estatuto da matéria televisual com o intuito de, subjacentemente, lhe abordar por um prisma centrado no campo dos gêneros do discurso.

Logo, vamos assumir que a principal qualidade dos gêneros se encontra na diversidade, isto é, quanto mais diversificada a cultura e seus meios de comunicação, mais profunda será a dimensão dos gêneros no que diz respeito à variedade de modelos de enunciação. Dessa forma, ao passo que determinados discursos são privilegiados, adquirindo assim uma forma de prestígio; outros discursos se veem marginalizados, em contrapartida, recebendo com isso um rótulo de estigma, a culminar numa ampla apreciação negativa.

Por infelicidade, tal distinção acaba por criar um paradigma que por vezes se estende na desenvoltura histórica dos eventos culturais. Entretanto, os gêneros possuem uma natureza categoricamente mutável e apesar de determinadas estigmas são, pois, heterogêneos; capazes de se fundirem a outros gêneros pré-existentes a fim de formar novas ramificações discursivas. Afinal, “a riqueza e a diversidade dos gêneros discursivos são ilimitadas, porque as possibilidades de atividade humana são também inesgotáveis e porque se diferenciam e se ampliam na mesma proporção que cada esfera particular se desenvolve e se torna cada vez mais complexa” (BAKHTIN, 1986, p. 60).

De fato, o que se pode destacar é que os gêneros estão, de maneira intrínseca, calcados no diálogo e justamente nesta particularidade há um apontamento no qual Bakhtin sublinha o papel do diálogo na Grécia Antiga, cujo método se baseava em aproximar discursos concebidos como mais nobres a discursos tidos como populares, e por isso tidos como inferiores, mas tal procedimento não significa, hoje, que os discursos resultados foram menos originais na História. O exemplo mais substancial desse retrato é, com efeito, o diálogo socrático.

Sabe-se que no concernente ao debate de ideias e à prática do ato democrático, o método instaurado por Sócrates marcava o encarar das questões por diversos ângulos, atentando-se às contradições e asserções que levavam à conclusão lógica, revestida de verdade. Foi essa estrutura de raciocínio que construiu a base do pensamento na Filosofia ocidental, seja do ponto de vista formal, seja do ponto de vista da cosmovisão filosófica sobre a natureza da verdade.

Ademais, da miscelânea de gêneros inerente à essência dialógica do discurso advém algumas formas que embora estigmatizadas por seu valor e gosto popular, encerram uma qualidade notável e, mais tarde, tiveram um reconhecimento por força dos estudos culturais, abrindo margens menos preconceituosas, inclusive, no meio acadêmico. Bakhtin (2010) comenta que os gêneros sérios, por vezes, deparavam-se com gêneros cômicos, como a sátira menipeia; os chamados gêneros-cômicos remontam a abertura do olhar acerca dos produtos culturais, a excluir julgamentos negativistas.

Trata-se, pois, de uma escrita prosaica (semelhante à estrutura do romance) que figura a crítica a atitudes mentais em vez de se ocupar por rebaixar indivíduos que ocupavam certas posições sociais. Enquanto abordagem, a sátira menipeia recorre a tipos de paródia à medida que expõe certos valores contidos nos mitos da cultura tradicional. O gênero chamou, enfim, a atenção de Bakhtin em função de seu caráter polifônico e pelo papel sociológico que ocupou nas manifestações artísticas populares no período do Renascimento e da Idade Média, empregado por autores clássicos do patamar de Rabelais, Erasmo de Roterdã e, até mesmo, Voltaire.

Finalmente, o universo da televisão e a gama de seu potencial criativo estão claramente distantes da natureza da arte literária, portanto a maneira de observar seus textos, suas mensagens e suas metáforas devem adotar perspectivas diferentes. Em outras palavras, a relativa relutância da comunidade acadêmica acerca da comunicação de massa não se justifica por ela não tratar dos dilemas morais do homem no mesmo nível da literatura, afinal são meios de expressão distintos e o fato do conteúdo audiovisual se preocupar com uma gama maior de interlocutores, sem necessariamente elaborar o alto grau da metáfora, não faz da TV um gênero menor, no sentido depreciativo.

O seriado de TV e seu protótipo narrativo, enfim, são capazes de exprimir-se por recursos que naturalmente faltam ao romance; dessa forma, seus juízos de valor abraçam tanto as teorias literárias quanto a extensão de referências que fundamentam a esfera da comunicação e do entretenimento. Mais importante, a televisão e seus produtos culturais requerem mais aparatos teóricos que lhe possam compreender, visto que encerram dois sistemas de linguagem: o verbal e o visual e sua qualidade e originalidade independem de seu envolvimento com estratégias comerciais em maior ou menor grau.