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O nascimento do protagonista

3. A SÉRIE: A NARRATIVA EM TORNO DA PERSONAGEM

3.1 O nascimento do protagonista

Após aceitar trabalhar com a temática médica, atendendo à empolgação da emissora, David Shore iniciou um processo de criação que duraria meses. Nesse decurso, principiou a elaboração de uma personagem bastante peculiar, o que lhe deixou preocupado com a opinião da emissora, que desejava um programa processual.

Eu estava muito preocupado porque era mais uma obra girando em torno de um personagem do que algo processual. Minha preocupação era a de enganar a emissora, vendendo-lhe uma coisa processual e entregando-lhe algo que girava em torno de personagens. (JACKMAN, 2010, p. 29)

Sua aflição foi solucionada por Paul Attanasio, que, acreditando no potencial da história, aconselhou-o a não mostrar o esboço à emissora, mas sim o roteiro concluído. Isso lhes rendeu o consentimento para a gravação do episódio piloto.

Para Shore, a origem da personagem House deu-se a partir de pequenas experiências pessoais, em um aspecto de sua própria personalidade. Embora não se considere tão esperto ou engraçado como o médico, consegue identificar grandes semelhanças entre as suas atitudes.

Segundo Antônio Cândido (1976), uma obra literária, e aqui cabe estender seus preceitos também ao texto cinematográfico e televisivo, só se realiza plenamente quando prima pelo princípio da verossimilhança, ou seja, quando a narrativa, por meio de suas personagens, convence o leitor de que tudo o que se apresenta é passível de ser verdadeiro. Estabelece-se, desse modo, inevitavelmente, uma relação entre o romance, o público e a realidade e, consequentemente, entre as personagens daquele com as pessoas dessa. Nessa perspectiva, um romance é ainda mais verossímil ao apresentar personagens que carreguem em si a mesma complexidade ou densidade psicológica que as pessoas do mundo real.

Isso, especialmente a partir do século XIX, passou a ser não apenas uma tendência na criação literária, mas principalmente uma preocupação dos autores em aproximar suas personagens o máximo possível dos homens e das mulheres do mundo real, a fim de torná-las mais complexas (no sentido atribuído ao termo por Edgar Morin (2008), que consiste em um lapso de compreensão por parte do indivíduo comum em relação às ciências naturais e as teorias sociais); misteriosas e, por conseguinte,

mais intrigantes; atraentes e convincentes para os leitores.

Nesse sentido, o criador de House demonstrou preocupação com esse preceito particular de constituição da personagem, já que o médico carrega em si, conforme veremos, conflitos e interesses passíveis a qualquer ser humano moderno. Apesar disso, o próprio David Shore conta que se baseou também em pressuposições para atribuir o caráter ácido de House. O idealizador da série imaginou como seria uma personagem que, diferentemente da maioria das pessoas, não agisse com polidez, tampouco de acordo com o contrato social, cuja natureza é subjetiva, mas ao invés disso dissesse tudo o que pensa sem qualquer cautela quanto ao tom e modo de se expressar.

Em certa ocasião, o criador da série lesionou o quadril e só conseguiu agendar uma consulta médica para três semanas à frente. Quando chegou o dia da consulta, já estava recuperado da lesão, mas compareceu mesmo assim. Nessa circunstância, Shore conta que descrevia a cada médico que o examinava o local onde sentia dor, mas nenhum deles conseguia diagnosticá-lo. Entretanto, eram todos muito educados e respeitosos. Diante disso, o roteirista pensou que, uma vez que os fazia desperdiçar tempo, os médicos certamente reclamavam dele ao sair do consultório e essa ideia o inspirou a criar uma personagem que não esperasse até sair da sala e não se deixasse procrastinar.

Assim surgiu House, um médico inegavelmente competente; com uma habilidade peculiar para diagnósticos; capaz de, em grande parte das vezes, identificar o problema de um paciente apenas olhando-o. Ele é, acima de tudo, um grande conhecedor de condições e sintomas, além de ser extraordinariamente culto. Todavia, seu interesse em salvar vidas limita-se a solucionar o enigma. No episódio piloto, ao ser questionado por Foreman sobre a finalidade de terem se tornado médicos, House esclarece que o fizeram para tratar doenças, e não pacientes. Os médicos que se concentram em tratar as pessoas são, segundo ele, infelizes.

No 6º episódio da 1ª temporada, “O método socrático”, Wilson explica de modo mais explícito a Foreman o interesse de House pelos enigmas, ao que o médico reage com espanto. “Pacientes são enigmas?” – questiona ele. “Você não acha?” – retruca Wilson. “Acho que são pessoas.” – responde. (MANKIEWICZ, 2004, ep.6, 9’40’) Para David Shore, na obra de Jackman (2010, p. 384), esse modo de agir de House é justamente o que o torna um médico melhor.

Acho que House pensa que tratar as pessoas como objetos mecânicos mais do que com sentimentos o torna um médico melhor... Ele está mais interessado nas próprias questões. Acho que o comentário dele foi que, se nos preocuparmos com cada morte

na sociedade, não conseguiremos funcionar.

Em “Resignação”, 22º episódio da 3ª temporada, House, sob o efeito de antidepressivos colocados secretamente em sua bebida por Wilson, diagnostica Addie, uma garota de dezenove anos, que, embora não apresente boas perspectivas, deixa o médico satisfeito por solucionar um enigma particularmente complicado. Ao ser questionado por Foreman e Cameron, House ressalta que achou o diagnóstico incrível, por não ser identificável em qualquer exame realizado, mas por sua perspicaz observação e que, além disso, não era sua culpa o fato de a paciente estar condenada à morte. “Ela morreria de qualquer jeito. Agora, graças a mim, pelo menos, ela saberá por quê.” (HOUSE M.D., 2007, ep:22, 29’56’)

Quando o médico dá à paciente a notícia de que está morrendo e tenta explicar a ela o porquê, a menina rejeita a explicação, o que o deixa intrigado e leva-o, em meio à discussão, a perceber que Wilson o dopou. House, então, procura Wilson para confrontá-lo e é durante o diálogo travado com o amigo que tem seu momento de revelação. Quando Wilson alega que a garota rejeitou sua explicação porque se sentiu infeliz, House retruca que ela não ficou mais infeliz do que já estava antes e percebe que a paciente sofria de depressão e havia tentado o suicídio.

O episódio em questão representa um ponto importante para a compreensão dos traços marcantes da personalidade do protagonista, porque o argumento do médico problemático a seu amigo de profissão, Wilson, indica que House está sempre atento ao processo de raciocínio que o conduz às respostas para os enigmas. Em função disso, a personagem principal da série lida com os temas humanos (como morte ou felicidade) explorados pela série de modo exacerbadamente racional. Nesses termos, independentemente do fato de não haver uma possível cura para seus pacientes, House crê ter cumprido seu papel com eficiência ao chegar a um diagnóstico.

Exatamente por isso, para o excêntrico Dr. House, colocar a vida de um paciente em risco faz parte do processo da tentativa de salvá-lo: “Assumo riscos. Às vezes, os pacientes morrem. Então, acho que meu maior problema é ter sido amaldiçoado com a capacidade de fazer contas” (HOUSE M.D. 2005, ep.11, 26’)

Contudo, embora ressalte a importância de fazer todo o possível para salvar um paciente, a ele não interessa salvar vidas em larga escala. House e sua equipe salvam em torno de cinquenta pessoas por ano. No 4º episódio da 2ª temporada, “Tuberculose?”, esse conflito é evidenciado quando chega ao

hospital o Dr. Sebastian, um carismático médico que faz campanhas contra a tuberculose na África e que ganha a antipatia de House. Wilson chama a sua atenção para o fato de a origem de sua implicância dever-se ao fato de o médico humanitário estar muito mais próximo de receber o prêmio Nobel do que ele. House lembra-o que Nobel foi o criador da dinamite, desprezando assim o valor do prêmio. Wilson insiste em ressaltar que o outro salva milhares de vidas todos os anos, ao passo que House salva bem pouco, ao que este responde metaforicamente, comparando o hambúrguer do McDonald’s, umas das maiores redes mundiais de fast food, ao da mãe do amigo, fazendo-o refletir acerca do valor qualitativo de seu trabalho em detrimento do quantitativo.

A isso podem-se associar as acepções de Greimas (2008) acerca da estrutura narrativa, que partem do princípio de que esta é essencialmente uma sucessão de fatos, isto é, a passagem de um estado anterior para um estado posterior. Nesse sentido, para o estudioso, devido à natureza lógica de seu modelo, as relações estabelecidas caracterizam-se especialmente pela ausência de cronologia, ou seja, são desvinculadas do conceito de tempo e, por isso, possuem alcance e penetração gerais.

Assim, a partir de uma interpretação do modelo funcional de Propp (1928), o semioticista conclui que as narrativas inventariadas pelo folclorista russo não tratavam apenas da história de um herói, mas, também, ainda que com menor ênfase, da história de um vilão. A narrativa constitui-se, desse modo, como uma estrutura polêmica em que há dois percursos narrativos opostos que visam um mesmo objeto-valor; em outras palavras, ocorre uma disputa de objeto-valor ente um sujeito e um antisujeito.

Em outras palavras, Greimas (idem) examina o problema da narrativa do ponto de vista estrutural, isto é, observa o regime das regras segundo as quais uma dada narrativa se constrói. Por conseguinte, a organização de uma história se deve ao modo como um discurso é estruturado com base em personagens que realizam uma ação cujo ponto de início se dá a partir da quebra de um estado de normalidade. No que diz respeito à série, a trajetória da personagem House começa com a constatação do conjunto de distúrbios que se instalam tanto entre ele e Wilson, quanto em relação aos problemas físicos e morais do protagonista.

Nessa perspectiva, há de se considerar que, para House, o objeto-valor visado difere do que é apresentado por Wilson. Se para este último o critério que define um médico bem sucedido é a quantidade de vidas que este é capaz de salvar, para o outro, a habilidade de alcançar respostas não atingidas por outros médicos é o que o torna singular.

No episódio citado, particularmente, é possível constatar a dicotomia, situando de um lado o arquétipo do médico solidário e, do outro, o médico indiferente, uma vez que Sebastian, o médico humanitário, deixa House e, consequentemente, o telespectador em dúvida quanto a despretensiosidade de suas ações. Ao ser inicialmente diagnosticado com a suspeita de tuberculose e informado do valor de seus medicamentos, ele rejeita o tratamento, alegando que só seria justo caso os mesmos recursos fossem disponibilizados aos seus pacientes, na África. Entretanto, para comunicar tal decisão, convoca a imprensa para uma entrevista coletiva, elevando, desse modo, seu nome e fama.

Além disso, a confirmação do diagnóstico de tuberculose deixa House não apenas desapontado, mas, acima disso, intrigado. Ele tem certeza de que há algo mais, o que irrita os colegas da equipe. House, consequentemente, se envolve com a complexidade dos casos clínicos de forma tão obstinada, que para ele um diagnóstico simples não é algo de fácil aceitação. O paciente, na verdade, sofria de Nesidioblastoma, um tipo raro de câncer no pâncreas, o que torna a trama um exemplo típico do esquema proposto por Greimas (2008). House é o herói, que busca solucionar um enigma iniciado por uma série de sintomas que não se harmonizam completamente ao diagnóstico realizado por sua equipe; o vilão pode ser representado tanto por Sebastian, que, seja por um ideal seja por ambição, dificulta o tratamento da própria doença; quanto pela doença em si, que se camufla entre os sintomas de algo facilmente diagnosticável e tratável.

Fig. 26: House discute com Sebastian. Temporada 2, ep:4, 27’33 Fonte: Netflix

Outro aspecto da personalidade de House que se faz relevante a esta análise é o modo como este lida com o erro próprio e alheio. De acordo com Antônio Cândido (1976, p. 35-6),

a grande obra-de-arte literária (ficcional) é o lugar em que nos defrontamos com seres humanos de contornos definidos e definitivos, em ampla medida transparentes, vivendo situações exemplares de um modo exemplar (exemplar também no sentido negativo). Como seres humanos encontram-se integrados num denso tecido de valores de ordem cognoscitiva, religiosa, moral, político- social e tomam determinadas atitudes em face desses valores. Muitas vezes debatem-se com a necessidade de decidir-se em face da colisão de valores, passam por terríveis conflitos e enfrentam situações-limite em que se revelam aspectos essenciais da vida humana: aspectos trágicos, sublimes, demoníacos, grotescos ou luminosos. Estes aspectos profundos, muitas vezes de ordem metafísica, incomunicáveis em toda a sua plenitude através do conceito, revelam-se, como num momento de iluminação, na plena concreção do ser humano individual. São momentos supremos, à sua maneira perfeitos, que a vida empírica, no seu fluir cinzento e cotidiano, geralmente não apresenta de um modo tão nítido e coerente, nem de forma tão transparente e seletiva que possamos perceber as motivações mais íntimas, os conflitos e crises mais recônditos na sua concatenação e no seu desenvolvimento.

Nesta vertente, a personagem enfrenta, assim como qualquer ser humano, dilemas morais; situações em que confronta, em alguma medida, valores. Em termos de interação entre o público e o texto televisivo, é possível afirmar que o público tem contato com os aspectos pessoais retratados na figura das personagens à medida que acompanham às situações do cotidiano ficcional do médico durante o desdobramento narrativo da série como um todo. Assim, o conjunto de representações humanas se tornam familiar a esse público, de modo que ele pode, inclusive, se identificar com certas visões de mundo em razão de que o universo ficcional da série televisiva remonta aos dilemas da vida comum e, mesmo assim, há a possibilidade de haver conclusões surpreendentes que despertem o interesse do telespectador.