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Dr. House : o anti(herói) no texto televisivo

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Academic year: 2017

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ALINE IZABEL ALVES

DR. HOUSE: O (ANTI)HERÓI NO TEXTO TELEVISIVO

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DR. HOUSE: O (ANTI)HERÓI NO TEXTO TELEVISIVO

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras.

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A474d Alves, Aline Izabel.

Dr. House : o anti(herói) no texto televisivo / Aline Izabel Alves – São Paulo , 2016.

112 f. : il. ; 30 cm.

Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2015.

Orientador: Prof. Dr. Alexandre Huady Torres Guimarães Referência bibliográfica: p. 111-113

1. Texto televisivo. 2. House M. D.. 3. Herói. 4. Mito. I. Título.

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Agradeço, primeiramente, a Deus pela minha vida, pela oportunidade de

conquistar esse sonho e, sobretudo, por ter permitido que meu caminho fosse cruzado por

pessoas de coração e alma tão bondosos para me apoiar e ajudar nesse processo.

Agradeço ao meu marido, Douglas, pelas horas de sono perdidas ao meu lado,

revisando texto, marcando referências, inserindo imagens. Obrigada por seu

companheirismo e seu amor.

Agradeço aos meus pais por desde sempre me incentivarem a buscar o

conhecimento como meu bem maior e, principalmente, por me ensinarem os valores que

hoje regem minha vida e fazem de mim a mulher que sou.

Agradeço às amigas, que compreenderam minhas ausências, compartilharam

todas as minhas angústias, prontificaram-se sempre a me ajudar no que fosse necessário e,

principalmente, acreditaram que eu conseguiria.

Por último, mas não menos importante, agradeço aos professores do Mackenzie,

que me ensinaram muito mais que conteúdos e me despertaram para a importância do

conhecimento como instrumento libertador. Agradeço, especialmente, ao meu orientador,

Alexandre Huady, pela dedicação, disponibilidade, compreensão e paciência com que

sempre me atendeu.

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RESUMO

Esta dissertação de mestrado se ocupa por observar a projeção da figura heroica, considerando sua concepção mítica, na construção do protagonista em um gênero televisivo em particular: o seriado. Para tanto, toma-se como base a personagem Gregory House, que inclusive, confere nome à série. House não somente se configura como um homem excepcional, capaz de ter um raciocínio lógico para além dos parâmetros do indivíduo comum, como também apresenta, em sua trajetória, várias das etapas da jornada do herói, conforme os esquemas desenvolvidos respectivamente por Joseph Campbell (2000) e, com base neste primeiro, Christopher Vogler (1997). O estudo se justifica pela recorrência, que parece ter se tornado tendência neste gênero específico, de personagens que, embora apresentem heroicidade em sua essência e percurso, apresentem também desvios de conduta que os caracteriza, ao mesmo tempo, como heróis e anti-heróis. Estão entre as principais características de House a ousadia, a obstinação por respostas aos enigmas médicos e pela verdade, bem como a irreverência quanto às normas éticas e morais, quando estas representam empecilhos para a conquista de seus objetivos. Vale destacar também que o referencial teórico compreende, entre outras, à produção intelectual de autores como Roland Barthes (1989) e Edgar Morin (2006), na medida em que estes apresentam ricas contribuições para os exames relacionados, nesta ordem, à noção de mito e de complexidade. Assim, este estudo pretende observar estes conceitos na estruturação da personagem com base na trajetória do herói mítico, destacando as influências literárias na criação das histórias atuais destinadas ao gênero estudado.

(6)

ABSTRACT

This particular Masters Research deals with the observation of the heroic figure, considering its mythological conception, in the attempt to comprehend the main character construction inside a specific television genre: the series. In order to make so, the leading figure Gregory, after whom the series was named, was taken as the primary basis. House, in this regard, not only appears as an exceptional individual who is able to employ great logical thinking far beyond the general parameters of common sense, but also represents many aspects of the hero’s journey in his trajectory, according to the schematics outlined by Joseph Campbell (2000) and Christopher Vogler (1997). This study is justified by a pattern that seems to have been established in the genre, whose characters, although they’re driven by a heroic sentiment both in their essence and in their path, also present a misleading conduct, characterizing them as anti-heroes at the same time. Among House’s general attributes are boldness, obduracy in the search for answers to the medical riddles and the truth, as well as bawdry in relation to Ethics and Moral codes, whenever these last principles threaten the achievement of his objectives. It’s worthy mentioning, moreover, that the theoretical review gathers, aside many other important thoughts, the intellectual production from authors like Roland Barthes (1989) and Edgar Morin (2006), once they’ve brought significant contributions to the sum of related examinations concerning the myth and the matter of complexity. Therefore, the present study aims to observe these concepts under the mythic hero’s trajectory of character formalization, drawing attention to the literary influences in the creation of modern plots given to the analyzed genre.

Key words: Televisual text; House M.D.; Hero; Myth.

(7)

SUMÁRIO

Apresentação 7

Capítulo 1 – O herói: um mito poderoso 12

1.1 A jornada do herói: um chamado à aventura 29

1.2 O herói como instrumento de poder 51

1.3 O herói na série televisiva

1.4 Gregory House

53

Capítulo 2 – O complexo, a narrativa e a narratividade 61

Capítulo 3 – A série: a narrativa em torno da personagem 78

3.1 O nascimento do protagonista 80

3.2 Aspectos inerentes à estrutura da série da TV em relação a House M.D 85

3.3 Uma análise do papel da personagem Gregory House na série 93

Considerações finais 106

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LISTA DE IMAGENS

Fig. 1 Estrutura do Mito P. 17

Fig. 2 Denotação e conotação P. 17

Fig. 3 Trecho de diálogo entre House e uma freira em que o médico expressa sua característica ironia e ceticismo

P. 21

Fig. 4 Diálogo entre House e uma paciente em que ele reforça seu ceticismo P. 21

Fig. 5 House e sua debilidade física P. 32

Fig. 6 Dependência de analgésicos P. 33

Fig. 7 Travessia do segundo limiar P. 37

Fig. 8 Enfrentamento da morte P. 39

Fig. 9 O herói parece morrer P. 42

Fig. 10 O herói é recompensado P. 43

Fig. 11 A ressurreição do herói P. 47

Fig. 12 Diagnóstico tedioso P. 49

Fig. 13 Redenção P. 49

Fig. 14 Dr. Chase assume a equipe P. 51

Fig. 15 Dra. Cameron reconstrói sua família P. 51

Fig. 16 Dr. Taub torna-se um bom pai P. 51

Fig. 17 Dr. Foreman percebe que House está vivo P. 51

Fig. 18 Ben Casey P. 61

Fig. 19 Dr. Changley P. 62

Fig. 20 House ao promover o levantamento de hipóteses em seus diagnósticos P. 65

Fig. 21 Cena em que o médico defende com veemência o valor do relacionamento P. 66

Fig. 22 Lost (2005) série televisiva que também adota o panorama da complexidade P. 69

Fig. 23 Variação da estratégia narrativa na série House MD P. 70

Fig. 24 Série televisiva que recorre a um conjunto de tramas paralelas P. 71

Fig. 25 Contemplação do pensamento complexo P. 78

Fig. 26 House discute com Sebastian P. 87

(9)

Fig. 28 Perplexidade do rapaz ante a explicação de House P. 98

Fig. 29 House ao lembrar do enfarte sofrido na perna esquerda P. 101

Fig. 30 Questões éticas da medicina na série House M.D. P. 106

Fig. 31 A expressão da descoberta representada visualmente P. 106

Fig. 32 Tom de humor na série House M.D. P. 106

(10)

                                                                     

John Henry Giles: How many of those pills are you taking?

House: I'm in pain!

John Henry Giles: Well... aren't we all?

(11)

APRESENTAÇÃO

O presente estudo visa, por meio de uma pesquisa bibliográfica, discutir a construção da figura

heroica contemporânea no texto televisivo. Para isso, tomar-se-á como objeto de análise a personagem

House, protagonista da série homônima transmitida pelo canal Universal no período de 2004 a 2012.

Inicialmente, esta pesquisa toma como propósito avaliar a relação entre o herói mítico e as

características mais marcantes que permeiam a construção da personagem Gregory House, o qual,

inclusive, dá nome ao aclamado seriado da televisão House M.D.

Assim, considerando-se o evidente sucesso de público e crítica das atuais séries de TV e,

consequentemente, de suas personagens, busca-se compreender o fenômeno de constituição destas,

bem como em que medida personagens centrais de obras clássicas da literatura ou da própria tevê

exercem influência em seu processo de criação.

A saber, desde o terceiro ano em que foi ao ar, em 2006, o ator Hugh Laurie, que interpreta o

papel do médico excêntrico, nas ocasiões em que não recebeu o prêmio “Golden Globes” na categoria

Performance by an actor in a Television Series – Drama” foi, ao menos, nomeado como potencial

merecedor do troféu e isso ocorreu consecutivamente até 2011. Ademais, a lista de premiações que

justifica a escolha desse texto televisivo em particular como objeto de estudo para essa pesquisa é

notavelmente longa.

No ano de 2009 o seriado obteve o estatuto de “Best Television Series” na categoria Drama;

dois anos mais tarde, obteve no quesito “Outstanding Lead Actor in a Drama Series” o Emmy Awards.

Porém, não somente a série e o ator Hugh Laurie chamaram a atenção dos avaliadores, como também

grande parte da equipe técnica envolvida no projeto, em termos de trabalho com os aparatos da mídia

televisiva que requerem cuidados específicos. Os responsáveis pela trilha sonora foram nomeados mais

de uma vez, até que ganharam a preferência dois anos seguidos, 2008 e 2009, quando o prêmio “BMI

Film & TV Awards” para melhor trilha sonora foi concedido a Robert del Naja, Grant Marshall e

Mushroom Voweles.

Consoante ao grupo de diretores e roteiristas, também eles foram contemplados com titulações

de mérito. Greg Yaitanes, diretor do episódio “House's Head” (penúltimo da 4ª temporada), foi

(12)

David Shore, criador da série, conseguiu também reconhecimentos importantes, entre os quais se pode

destacar dois: o “Primetime Emmy Awards”, como roteirista na categoria “Outstanding Writing for a

Drama Series” pelo 21º episódio da 1ª temporada, “Três Histórias”, e o “Humanitas Prize”, no ano

subsequente, 2006, para o qual concorreu na categoria “60 Minute”.

Na outra extremidade, por seu turno, no que se refere à parte teórica da pesquisa, pretende-se

observar a questão do herói sob o prisma de um dos mais significativos pensadores que sistematizaram

o conceito de mito e mitologia, sobretudo de acordo com o panorama da cultura, Joseph Campbell. O

estudioso se consagra como um dos principais acerca do mito e tem seu pensamento reconhecido como

argumento de autoridade. Corroborando para isso, comenta Phil Cousineau (2004, p. 10):

Desde a primeira publicação deste livro, em 1990 [A jornada do herói], eu tenho recebido cartas literalmente do mundo todo, de pessoas dos mais variados estilos de vida. Se há algo em comum entre elas, é o desejo de expressarem gratidão a Joe Campbell por ajudá-las a descobrir a jornada de suas vidas. Eu ouvi um pintor de paredes, de Michigan, dizer que o modelo da jornada do herói o ajudou a ver cada novo projeto de casa como uma nova aventura. Um homem na prisão de Folsom, na Califórnia, escreveu-me para dizer que agora ele se sentia infinitamente menos só “no labirinto de sua jornada”. Um médico de São Paulo, Brasil, me mandou um e-mail dizendo que havia relido o livro várias vezes, pois ele o ajudara a encontrar o significado mítico do trabalho voluntário, que ele vinha realizando.

Campbell motivou outros autores na empreitada de examinar grandes narrativas modernas,

como Christopher Vogler (1997) e, inclusive, foi o responsável por aproximar a gama de perspectivas

de estudos literários a outras áreas do conhecimento e mídias. Ele não apenas soube relacionar as

semelhanças formais entre histórias da Religião e da Filosofia, mas também aplicou seu raciocínio ao

âmbito do Cinema, que tinha seu momento de notoriedade com o épico projeto de ficção científica

“Star Wars”, referente à primeira trilogia, de 1977 a 1983, criado por George Lucas, de quem Campbell

se tornou amigo. Nesse sentido, Campbell assumiu a importância de ser um autor que conferiu uma

nova roupagem à ciência literária em função de lhe mostrar novos horizontes para o olhar da crítica.

Cabe destacar, por conseguinte, que os mitos possuem um valor humano bastante significativo e

expressivo, sobretudo naquilo que fundamenta os costumes de um povo. Na mesma medida, ele

possibilita que se repense a direção possível na trajetória do próprio homem no mundo. O papel que os

livros sagrados preenchem nas civilizações, em dada instância, aponta para a importância de

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humanidade na criação. Logo, o mito exorbita a esfera da Literatura de modo a permear a base de

diversas crenças religiosas.

O valor do mito na cultura se nota já na Antiguidade Clássica, visto que em sua obra A

República, o filósofo Platão (2002, p. 290) apontava que “o mito foi salvo do esquecimento e não se

perdeu. Ele pode, se lhe dermos crédito, salvar-nos a nós mesmos.” Logo, não somente se constata seu

significado na vida dos indivíduos como um todo, mas também se pode perceber que ele está em

constante renovação. O mito acompanha, pois, a desenvoltura cultural e os meios de expressão na

comunicação humana.

Outro ponto que se pretende abordar neste estudo concerne ao componente estrutural que

esclarece o poder do mito a figurar na construção artística da personagem heroica. Em outras palavras,

faz-se essencial ressaltar a contribuição de Roland Barthes, semiólogo francês, como referência no

universo da teoria literária e, principalmente, na análise do conjunto de mitos circunscritos na

sociedade francesa. O que interessa para esta análise, nesse sentido, é que Barthes se valeu de uma

articulação de base linguística, isto é, da configuração do sistema de signos formulada por Saussure,

para aplicar a outros modelos de significação, tais quais a fotografia, a propaganda, até mesmo, a

política.

Em síntese, Barthes concebe o mito como uma fala específica, um discurso cuja estrutura se

compreende à medida que a relação entre o signo e o significante ganha traços conotativos e adquire

dessa forma uma dimensão mitológica na cultura em que está inserida. Ainda, as considerações

históricas e ideológicas se associam ao modelo mítico da observação do signo a fim de melhor avaliar

as condições em que os mitos se formam nas diversas sociedades e desse raciocínio emerge sua

qualidade de ato político (BARTHES, 2010, p. 248-249), em termos de operar a liberdade da

linguagem e sobrepor-se à alienação do sujeito.

(14)

Einverständnis1, simultaneamente inteligência do real e cumplicidade com ele).

Assim, aplicar-se-á essas acepções ao objeto de estudo: à personagem Gregory House, com o

intuito de provar que ele se constitui como um herói mítico, porém num sentido mais moderno,

contemporâneo. A figura do médico está estritamente calcada numa tendência dos protagonistas de

séries de TV que apresenta uma personagem principal carregada de problemas pessoais, psicológicos e

que não se encaixam nos padrões sociais e comportamentais do nosso século, porque o vemos como

um herói, mas um herói problemático, os quais já aparecem em primeiro plano nos folhetins do final do

século XIX, inerentes à estética literária do Realismo brasileiro.

Do ponto de vista metodológico, este estudo visa seguir os seguintes passos: delinear, em

primeira instância, os principais pontos das teorias que consubstanciem as ideias que se pretende

justificar, enfatizando a dimensão da literatura e seu diálogo com outros meios de expressão e

comunicação. Em seguida, pretende-se demonstrar as perspectivas do mito em trechos dos episódios

cuja trajetória do herói e sua mensagem se evidenciam. De modo particular, esses trechos serão

extraídos da extensão da narrativa, ou seja, de todas as temporadas a fim de que melhor se possa

constatar o projeto televisivo e suas propriedades mitológicas.

Além disso, para cumprir com esse objetivo, partir-se-á de uma síntese acerca do mito e do

herói, abordando as etapas de sua jornada em um primeiro capítulo a afirmar que herói e mito são um

par poderoso na criação de narrativas originais. Posteriormente, o segundo capítulo terá como foco o

estudo do pensamento complexo, o qual consiste, em linhas gerais, no ponto de convergência entre os

diversos ramos da ciência, pois tal vertente promove uma série de ferramentas para a compreensão da

personagem em sua pluralidade de características.

Ainda nesse capítulo, será abordada também a questão da narratividade, que, como qualidade

maior da narrativa, permite ao expectador ter a sensação de que uma história está sendo contada e,

assim, possibilita que outros gêneros, provenientes de meios de comunicação distintos, possam também

adotar propriedades narrativas.

No terceiro capítulo, discorrer-se-á acerca da produção da série, bem como sua popularidade

entre críticos e público. Ademais, a análise da personagem receberá uma maior atenção, o que dará

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margem ao quarto capítulo, no qual se realizará a reunião dos fatores centrais para uma reflexão mais

profunda a respeito da personagem, tanto no contexto dos sistemas míticos, quanto no âmbito do valor

particular do texto televisivo.

Nessa perspectiva, o principal objetivo seria resgatar a mensagem que o mito encerra em seu

interior. Há, pois, nas grandes narrativas do mito um espetáculo da imaginação humana, no simples

esforço de compreender a existência. Assim indagou Bill Moyers (1988) a Joseph Campbell na série de

entrevistas que promoveram o pensamento de Campbell no seu estado mais maduro:

Bill Moyers: deixe-me dizer como me sinto quando leio essas histórias, seja qual for a sua cultura de origem, fico maravilhado ao ver o espetáculo da imaginação humana simplesmente tentando entender esta vida, isto também lhe acontece?

Campbell: Eu vejo a mitologia como a pátria das Musas. As inspiradoras da arte, da poesia. Ver a vida como um poema e ver a si próprio participando de um poema. É isso que o mito nos dá.

Bill Moyers: O que quer dizer com poema?

Campbell: Quero dizer, um vocabulário não em forma de palavras, mas de atos e aventuras, que é conotativo, que conota algo transcendente da ação imediata e que inspira todo o conjunto de modo que você sempre se sente em sintonia com o ser universal.

Bill Moyers: O que me interessa nisso tudo é que em vez de abalar minha fé, seu trabalho com a mitologia libertou minha fé das suas prisões culturais.

Campbell: Libertou a minha também. Sei que ele tem esse efeito com as pessoas que realmente entendam a sua mensagem. Cada mitologia, cada religião é verdadeira nesse sentido. Como uma metáfora do mistério humano e cósmico.

[…]

Bill Moyers: Agora a ciência e a medicina fizeram uma faxina geral na fé. E eu me pergunto o que acontece às crianças que não têm essa estrela fixa, esse horizonte conhecido, esses mitos para apoiá-las.

Campbell: Basta ler o jornal, é uma confusão. Mas o que o mito tem que nos dar, esse nível imediato da instrução sobre a vida, no aspecto pedagógico, são modelos de vida. Os modelos têm que ser adequados às possibilidades da nossa época. (30'-36')

Enfim, o universo televisivo está marcado pela comunicação de massa e pela avaliação do gosto

popular. Isso não quer dizer, entretanto, que se deva rejeitar o exame de sua estética, pois,

principalmente a partir da década de 1960 com o estudo das mídias e o papel que vieram a ocupar, os

produtos culturais edificados por técnicas de reprodução e seus respectivos aparelhos eletrônicos

articularam a manutenção tanto do seu processo criativo e narrativo, quanto a necessidade de serem

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1. O HERÓI: UM MITO PODEROSO

Entre a gama de estudos que se ocuparam por observar o mito e a mitologia, destaca-se a

premissa, comum à grande maioria, de que o mito faz parte de um sistema, além de ter função histórica.

O historiador Richard Slotkin, por exemplo, aponta que são tomadas como mito as “histórias criadas a

partir da história de uma sociedade que, repetidas ao longo do tempo, adquiriram o poder de simbolizar

a ideologia daquela sociedade e de dramatizar sua consciência moral” (SLOTKIN, 1998, p.5). Por

outro lado, no universo da Filosofia, o mito é compreendido como uma “narrativa sobre a origem de

alguma coisa (origem dos astros, da Terra, dos homens, das plantas, dos animais, do fogo, da água, dos

ventos, do bem e do mal)” (CHAUÍ, 2002, p. 28).

A etimologia da palavra remonta ao grego (µύθος) e provém da junção entre dois verbos, cujo

significado varia de designar a contar. Os antigos concebiam o mito como um discurso, proferido em

público por um poeta de garantido reconhecimento social, cuja ordem é não somente narratológica

como adquire, em função da confiança dos ouvintes, o estatuto de verdade. Isso se deve à crença de que

o poeta fora escolhido pelos deuses por causa de seu dom para transmitir a palavra dos acontecimentos

como se houvessem sido por ele testemunhados, por isso o mito é entendido como algo sagrado,

incontestável.

No sentido clássico da palavra mito, a origem do mundo é narrada em vista de três principais

fatores. São eles: o encontro sexual do pai e da mãe, das coisas e dos homens, a atribuir sentido

cronológico ao universo, pois tais relações geram os deuses e os seres que os sucedem; a rivalidade ou

aliança entre os seres de diferentes planos, como um acordo entre uma deusa e um mortal, isso faz com

que as coisas existam no mundo; e, por fim, as conquistas e sanções que os deuses inferem aos homens.

Todavia, não é nessa última perspectiva acerca do conceito de mito que pretendemos enfatizar a

relação da personagem Dr. House e o herói mítico. A visão dos antigos da Grécia por vezes se

confundia com as acepções da Filosofia enquanto ciência no estado embrionário, salvo algumas

distinções que cabe a este estudo destacar. Com efeito:

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admite contradições, fabulação e coisas incompreensíveis, mas exige que a explicação seja coerente, lógica e racional: além disso, a autoridade da explicação não vem da pessoa do filósofo, mas da razão, que é a mesma em todos os seres humanos. (CHAUI, 2002, p. 31)

Ademais, ao passo que o mito se ocupa das coisas em um passado imemorial, intangível,

remetendo a um tempo anterior a tudo o que existe no presente, a Filosofia, ao que lhe cabe, se

interessa por promover uma explicação razoável à totalidade do tempo, no passado, no presente e

conjecturar o que ocorrerá no futuro. Portanto, se por um lado a Filosofia explora a natureza dos

objetos de exame em função de elementos e causas também naturais, o mito, por outro lado, narrava a

origem da existência por intermédio de genealogias, rivalidade e alianças entre entidades sobrenaturais

personificadas na figura dos Titãs, dos deuses e heróis.

Ao passo que o pensamento filosófico aborda o estudo do mito de acordo com as tradições da

cultura ocidental, Roland Barthes (1989), semiólogo francês, afirma que o mito é uma fala. Sob o viés

da semiologia, ele define mito como um sistema de comunicação determinado historicamente, ou seja,

um tipo de fala que se define muito mais pelo modo como é proferido do que pelo objeto de sua

mensagem. Assim, há, para ele, limites formais, mas não substanciais, uma vez que tudo, em alguma

medida, pode se tornar mito.

A partir disso, o crítico enfatiza que a fala mítica é composta de um objeto já conhecido, pois

tem por intento uma comunicação adequada, e, por isso, situa-o em uma relação de dependência à

Semiologia, ciência extensiva à Linguística que estuda as significações apartadas de seu conteúdo.

Nessa perspectiva, o mito se configura como um esquema tridimensional constituído por

significado; significante e signo. No sistema linguístico, entende-se por signo a totalidade associativa

de um conceito (significado) e de uma imagem (significante), já no sistema semiológico transforma-se

apenas em significante.

(18)

Toda essa visão coincide, em parte, com a corrente de significação, a ideia-chave do movimento

que ficou conhecido como Pós-estruturalismo2, o qual se desenvolve com base na corrente

estruturalista que o antecede. Na Linguística saussuriana, em princípio, o signo apresenta dois

constituintes: um de natureza conceptual; outro da ordem da imagem acústica, isto é, ao se observar

uma unidade linguística como a palavra, pode-se reconhecer que uma parte diz respeito ao som,

enquanto a outra remonta à ideia que determinado som está arbitrariamente atrelado, significante e

significado respectivamente. Juntos, ambos os elementos configuram a totalidade do signo.

O que Roland Barthes faz, na verdade, é se valer da noção do signo para identificar a dimensão

do mito frente àquilo que os indivíduos produzem no decorrer da História. Com efeito, Barthes (2010,

p. 200) afirma que é próprio do universo mitológico o caráter histórico, “pois é a História que

transforma o real em discurso […] a mitologia só pode ter um fundamento histórico, visto que o mito é

uma fala escolhida pela História: não poderia de modo algum sugerir a natureza das coisas”.

Consequentemente, a relação entre o signo e sua propensão a se tornar mito se deve ao fato de que as

imagens subjacentes denotam um esquema muito aberto à interpretação, à leitura em função de

adquirirem tanto novas ordens de percepção, quanto dados tipos de consciência.

Para o interesse deste estudo, que observa o herói inserido no texto televisivo, a imagem

caminha ao lado do componente verbal de modo a adotarem o mesmo valor para a narrativa. No

entanto, diferente da palavra falada ou da palavra escrita, a imagem transmite sua significação de uma

maneira mais dinâmica, mais direta.

Em outro texto, Barthes (2010), ao examinar a retórica da imagem publicitária, postula que o

signo imagético encerra uma estrutura idêntica à do signo verbal, no entanto, a significação na imagem

é muito mais enfática e, igualmente, possui uma qualidade denotativa e outra conotativa. De fato, o que

      

(19)

mais se percebe é sua substância icônica, a salvaguardar o entendimento da denotação; por outro lado,

permeia-lhe uma mensagem de ordem simbólica que opera o campo da conotação. Consequentemente,

a propriedade retórica da imagem se dá uma vez que “o sistema que adota os signos de outro sistema,

para deles fazer seus significantes, [trata-se de] um sistema de conotação; [pois…] toda imagem é

polissêmica e pressupõe, subjacente a seus significantes, uma cadeia flutuante de significados”

(BARTHES, 1990, p. 31-32).

De fato, imagem e o signo verbal funcionam em uma relação complementar, com a diferença

de que, na escrita, a disposição das unidades de significação dependem de sua sequência, enquanto os

signos imagéticos organizam relações sintagmática espacialmente. Em outras palavras, a leitura da

imagem ocorre em vista de suas propriedades iconográficas, segundo a Semiótica pierceana (2008).

Após essas considerações primeiras, Barthes (2010) prossegue para a análise do mito tratado como um

sistema semiológico, na medida em que o signo mítico se transfere ao nível do discurso.

Assim, a Semiologia examina nas figuras do mito suas “ideias-em-forma” (2010, p. 203),

porque ao postular a relação entre termos distintos, um significado e um significante, busca equacionar

seus valores, ou seja, procura uma equivalência, distanciando-se da linguagem comum. O signo é pleno

por carregar um sentido, adquirido na dialética da História, diferente do significante que se configura

como uma categoria mutável. O mito advém, portanto, da correlação que perpassa o desdobramento da

cultura, a que se sobrepõe, sobretudo, aos paradigmas de leitura. Isso justifica conjecturar acerca da

natureza estética, bem como mitológica dos roteiros da televisão.

Adrienne L. Mclean (1998), ao discutir o pensamento de Mcluhan, estudioso do universo

midiático, discute as implicações da televisão na cultura sem, contudo, cair em julgamentos

depreciativos da ordem dos gêneros menores, massificados e de baixo grau intelectual. O artigo em

questão, intitulado Marshall Mcluhan, Television Culture and The X-Files (1998), traz a ideia de que o

sucesso das séries populares de hoje apresenta uma conexão com o passado da mídia televisiva de

outrora, em termos de prática interativa. Logo, é cabível afirmar que em detrimento dos aparatos

tecnológicos, a gama de espectadores se encontra obrigada a se situar diante dos novos fenômenos não

somente interativos, mas também, principalmente, diante dos novos processos narratológicos que eles

promovem.

Os seriados de TV são tão polissêmicos quanto qualquer outro gênero do discurso. Levi-Strauss

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de se estruturar segundo um eixo axiológico (o bem e o mal, a crença e o ceticismo etc). Isso aponta

para a justificativa do folclore popular estar presente no universo midiático devido à motivação de fazer

o público se identificar com os arquétipos que se personificam nas séries. Trata-se de se estar diante de

uma autoconsciência mitológica do espetáculo televisivo, com sua estrutura popular e seu sistema

mítico particular.

John Fiske determina que o show da TV adota relação de subordinação ou oposição com os

sentidos dominantes propostos pelo texto.” (1986, p. 93)3 John Thorton Caldwell, por sua vez,

“identificou uma tendência, uma estratégia da transmissão televisiva americana desde a década de 1980,

a qual ele denominou televisualidade (1995, p. 233)4. Esse pensamento promoveu uma mitologia

particularmente concentrada no componente visual de significação, de enquadramento cuja estética

compreende a uma extrema autoconsciência dos produtos da TV.

Não obstante, ainda no que se refere ao tratamento de Barthes, acerca do signo mitológico, seu

esquema pode ser aplicado a outras esferas e, dessa forma, toma-se como objetivo aqui aplicar o

estatuto do mito à trajetória do herói na televisão.

[…] o significado é constituído pela crise original do sujeito […]. A Literatura, como discurso, forma o significante; e a relação da crise com o discurso define a obra, que é uma significação […] a semiologia só pode comportar uma unidade no nível das formas, e não dos conteúdos, o seu campo é limitado, tem por objetivo apenas uma linguagem e só conhece uma operação: a leitura ou o deciframento. (BARTHES, 2010, p. 204)

Nisso reside a dimensão literária que fundamenta a construção da personagem a ser discutida

posteriormente. Por ora, concentremo-nos no esquema tridimensional do signo (significante;

significado e signo) a fim de sustentar a tese de que o protagonista da série, à medida que a narrativa é

apreciada pelo público, que por sua vez submerge na complexidade psicológica de House, tangencia o

potencial do herói problemático moderno, em sua qualidade mitológica.

Consequentemente, se o mito decorre de uma cadeia semiológica, o que se deve compreender,

então, é o processo que se percorre. Ao mito concerne ao termo final da cadeia semiológica, pois “tudo

      

3 Tradução proposta pela pesquisadora de: “relations of subordination or opposition to the dominant meanings proposed by the text”.

4

(21)

se passa como se o mito deslocasse de um nível o sistema formal das primeiras significações”

(BARTHES, 2010, p. 205). A figura abaixo ilustra a transposição que se inicia na língua e emerge ao

nível do mito:

Figura 1: Estrutura do Mito

Fonte: http://www.scielo.br/img/revistas/osoc/v20n67/a04fig01.jpg

Existem dois níveis do sistema semiológico que se fazem mister: um deles consiste nos modos

de representação (i), na língua em si (linguagem-objeto), pois ela é a referência da qual o mito extrai

sua construção; o outro compreende ao próprio mito (ii), que, por seu turno, fala de uma língua

primeira segundo um panorama metalinguístico. Nesse ponto, tanto o componente verbal (a palavra) no

seu registro escrito quanto o constituinte imagético recebem o mesmo tratamento formal, em virtude de

ambas serem signos que chegam ao limiar do mito no momento em que se revestem de função

significante.

Figura 2: Denotação e Conotação

(22)

No mito, denota-se que a presença do significado permeia o significante, seja como termo final

do sistema linguístico, seja como termo inicial do sistema mítico. Ademais, se o significante já se vale

dos signos da língua, o mito se concretiza no terceiro passo do diagrama proposto por Barthes, no

sentido de que o mito é de iminência de significação, por força de uma dualidade na qual se encontra

tanto a função de designar quanto a função de notificar, isto é, simultaneamente faz compreender e se

impõe, mas principalmente o mito é uma entidade ambígua: ao mesmo tempo, é sentido e é forma. Por

outro lado, o significante na língua possui um atributo psíquico; já o sentido do mito revela uma ordem

perceptual, cuja configuração de sua realidade preza pelo sensorial. Barthes (2010) reconhece o sentido

do mito como um valor singular, ímpar, intrínseco à história.

Há um jogo entre a forma e o sentido que articulam a definição do mito, que dá margem para o

significado de uma maneira que se pode estabelecer, portanto, uma cadeia de efeitos de significação.

No interior dessa representatividade de linguagem está o fato de que o conceito mítico, por natureza, se

apropria das realidades construídas.

O que se investe no conceito é menos o real que um certo conhecimento do real; passando do sentido à forma, a imagem perde parte do seu saber: torna-se disponível para o saber do conceito. De fato, o saber contido no conceito mítico é um saber confuso, constituído por associações frágeis, ilimitadas. É preciso insistir sobre esse caráter aberto do conceito; não é absolutamente uma essência abstrata, purificada, mas sim uma condensação informal, instável, nebulosa, cuja unidade e coerência provêm, sobretudo, da sua função. (BARTHES, 2010, p. 210)

É fundamental, pois, que por meio do mito se possam alegorizar determinadas abstrações,

conceitos, que remontem a toda uma gama de sentimentos humanos, tal qual a razão, o altruísmo,

narcisismo, responsabilidade, honra, verdade, humanidade, paixão, amizade, integridade etc. Tais

valores oscilam, acima do bem e do mal, no perfil psicológico que configura a personagem House e,

mais importante, os espectadores reconhecem e compartilham esse visão que resulta de uma imagem

perceptual frente ao ator Hugh Laurie e sua performance para a mídia televisiva.

Talvez, o mito mais consistente nessa perspectiva diga respeito à jornada empreendida pelo Dr.

House em busca da matéria escura do universo, em vista da qual surgem outras máximas racionalizadas

(23)

constantes mistérios com os quais o médico preenche sua vida aparentemente vazia e solitária se

desdobram em metáforas, o que ele próprio faz para encontrar respostas, sobre o sentido da vida, sobre

a verdade. Ou melhor, uma verdade conotativa, pois a denotativa não pertence ao estatuto do mito. Ele

faz isso de maneira obstinada, com um apego a um mundo egocêntrico que lhe é único e com regras

metafísicas por ele apenas dominadas.

Em verdade, no final da primeira temporada, deparamo-nos com uma parte da genealogia de

sua conduta, contada na forma de metanarrativa. Nesse episódio, intitulado Três histórias, House diz

haver uma verdade básica acerca da natureza humana: o fato de todas as pessoas mentirem, com a

diferença sendo apenas a respeito de quê, por isso ele crê, como um axioma, ser perto da morte o único

fator pelo qual as pessoas admitem estar mentindo.

David Shore, criador da série, comenta que:

Há uma contradição inerente em House, e, no entanto, uma verdade nessa contradição que não faz o menor sentido, sendo assim, em si, uma contradição. Ele acredita na verdade acima de tudo. Ele não acredita muito em emoções; ele acredita na verdade e em tudo que leva a ela, inclusive mentir (JACKMAN, 2010, p. 345).

O mito, de modo algum, envolver-se-á com o discurso factual, o herói se encontra na outra

extremidade do homem comum e para sê-lo, o conceito que dado signo encerra deforma o sentido, em

parte, com o intuito de, em seguida, significar uma contradição. Em síntese, o mito provém de um

ponto final no sentido, o qual abre caminho para seu duplo, de significante ambíguo, intelectivo e

imaginário, a dar uma impressão de ubiquidade.

Nessa qualidade do eterno, a função do mito promove uma ilustração do homem para que ele

mesmo possa se reconhecer por intermédio de arquétipos, porque traduzem as crises e ações do homem

no mundo, transformando-o e sendo transformado por ele. House é um médico que não se predispõe a

perder uma vida sequer, porém por vias questionáveis, que nenhum outro médico comum seria capaz

de arriscar. Além disso, não apenas sua conduta sofre descrédito, como também seu caráter moral e

ético: ele salva vidas incontáveis vezes, sem, contudo, tratar bem seus pacientes; como herói, House é

no mínimo contraditório.

Dr. House tem, em analogia, a mesma motivação que os iluministas do século XVIII, os

(24)

não vive mais num mundo de trevas. “A moderna tarefa do herói deve configurar-se como uma busca

destinada a trazer outra vez à luz a Atlântida perdida da alma coordenada” (CAMPBELL, 2000, p.

372). Os padrões e os temas da sociedade contemporânea, sobretudo ao se tratar da mídia televisiva,

aceitam outras abordagens e figuras, tanto que House renega a noção de fé como instrumento prático da

salvação e, apesar de seu ceticismo radical e, por vezes, ofensivo, pode ser admirado como salvador.

À medida que vão se tornando visíveis, os novos símbolos não serão idênticos nas várias partes do globo; as circunstâncias da vida local, da raça e da tradição devem ser, todas elas, compostas de maneira efetiva. Por conseguinte, é necessário que os homens entendam – e sejam capazes de ver – que, por meio dos vários símbolos, é revelada a mesma redenção. “A verdade é uma só [todo mundo mente]”, dizem os Vedas, “mas os sábios falam dela sob muitos nomes.” […] O caminho para nos tornarmos humanos consiste em aprender a reconhecer os contornos de Deus das prodigiosas modulações da face do homem”. (CAMPBELL, 2000, p. 374)

Os mistérios da existência de outras eras já foram cientificamente esclarecidos, por isso House

se afunda na verdade pragmática. Seja na Medicina, na Genética, na Antropologia ou na Psicologia,

House é o homem que performa milagres. “O homem configura-se como aquela presença estranha com

a qual devem as forças do egoísmo chegar a um acordo, presença por meio da qual o ego deve ser

crucificado e ressuscitado e a cuja imagem a sociedade deve ser reformada” (CAMPBELL, 2000, p.

375). Esse pensamento concernente à concepção do herói de mil faces é o fundamento que dá à

personagem o direito de debochar da Teologia praticada por aqueles que não empreendem a jornada do

herói, na série, na permuta pela descoberta da matéria escura do universo e House o faz de acordo com

a estrutura do sofisma, o que cria argumentos bem fechados contra a fé cristã não obstante serem

(25)

Figura 3: Trecho de diálogo entre House e uma freira em que o médico expressa sua, característica, ironia e ceticismo.

Temporada: 1 Ep: 5 18'05'

Fonte: Netflix

Figura 4: Diálogo entre House e uma paciente em que ele reforça seu ceticismo. Temporada 3. Ep. 12 31’59

Fonte: Netflix

Esse é outro panorama da significação do mito: nunca é totalmente arbitrária, antes remete a

uma analogia a partir de uma motivação. O médico salva vidas, logo é um herói, porque faz milagres e

uma vez que tal retórica se mostra válida, adquire a dimensão de verdade, de modo a duplicar o sentido

(26)

Enfim, o que conta para se decifrar o mito se resume em três fatores, de acordo com Barthes

(2010, p. 219-220):

I. Com ênfase no significante, que é vazio, deixa-se que o conceito lhe preencha a forma do mito, contudo ausentar-se-á a ambiguidade e o que resta é apenas um sistema simples;

II. Ao se tomar o significante pleno, por outro lado, no qual se distingue o sentido da forma, rejeita-se a significação do mito.

III. Já a atenção ao significante do mito, como signo global, inextricável, salienta a ambiguidade de sua significação. Esse é justamente o mecanismo essencial do mito.

Sob tal perspectiva, esta última noção concerne ao leitor do mito, pois revela-se sua

configuração dinâmica e própria. Essa focalização diz respeito à sua própria estrutura de modo que o

leitor experimente a sensação, em virtude da narrativa de que integra, do verdadeiro e do surreal. Aqui,

inclusive, Barthes sincroniza a visão da semiologia com a óptica da ideologia, pois “o mito existe a

partir do momento em que […] adquire um estatuto natural: [afinal] o mito é uma fala excessivamente

justificada” (2010, p. 221).

Em síntese, a proposta semiológica de Roland Barthes se mostra aplicável, em geral, aos

produtos da cultura a respeito dos quais se é capaz de pensar, pois diz respeito a uma ciência das

formas. Dr. Richard Clarke, professor de Filosofia e crítico de Barthes, delineia num ensaio chamado

Myth Today (2014) o objetivo de Barthes com o livro Mitologias como uma tentativa consistente de

aplicar a lógica saussuriana do signo a qualquer ato de interpretação. Portanto, trata-se de uma

perspectiva que envolve a Linguística e o Criticismo Marxista, visto que o estudo se vale do exame das

funções do signo em detrimento de sua relação com o real.

Na série de ensaios para os quais “Mito Hoje” age como algo de estatuto teórico, Barthes aplica o modelo saussureano do signo à extensão dos produtos culturais franceses […] no esforço de compreender a função ideológica a perpetuar a hegemonia econômica e política da burguesia. Barthes descreve a função da ideologia no concernente à transformação da “realidade do mundo numa imagem da História cuja natureza faz a contingência parecer eterna.”5. (CLARKE, 2014, p. 1)

      

(27)

Se o mito pode ser concebido como todo o tipo de interpretação, o qual pode tomar formas

específicas da ordem da narrativa e/ou da natureza imagética, em virtude do fato de que os indivíduos

as impõem a si, a mitologia compreende os sistemas que resultam dessas interpretações, no sentido que

passam a conotar outras funções de sentido ideológico, deixando o sentido convencional do signo.

Por outro lado, a perspectiva de Campbell (2000) parece ser muito mais fenomenológica acerca

do mito e sua função na sociedade, bem como a respeito do perfil do herói em sua jornada ao eterno.

Em entrevista a Bill Moyers (1988), nota-se que o intuito maior do mitólogo era compreender em que

medida as grandes narrativas valorizam a vida dos seres humanos, bem como seu papel na cultura

contemporânea. Desde outras eras, dados temas que se repetem constantemente em novas figuras

moldam a concepção antropológica da criação do homem, o que ocorre de igual maneira na imaginação

dos sujeitos que buscam uma resposta para o mistério da existência.

O fundamento principal dessa busca remonta ao estatuto da consciência e, como em Barthes, a

percepção, mas sem se restringir a abordagem pós-estruturalista. A mensagem que o mito fornece à

indagação que se tem sobre sua relação com a vida cotidiana é menos abstrusa do que se imagina, pois

ao mito não interessa ser importante, mas, de fato, cabe às pessoas serem cativadas pelas histórias que a

mitologia carrega consigo pelo tempo, pois elas constituem a base de formação não somente de muitas

crenças, como também ajudou a edificar civilizações, as quais são importantes.

Os mistérios abordados por esse sistema mítico aprofundam-se mais na complexidade do

indivíduo, em termos de existência, no sentido do que se fazer com a vida. Não que o mito forneça

respostas concretas para o sentido da vida e como nos guiarmos pelo caminho à eternidade, no entanto,

compreende a celebração da experiência de se estar vivo. Para Campbell (2000), o mito sobrepõe-se à

ruptura do real e o imaginário, de modo a reatar o laço entre a vida no mundo físico e a vida espiritual

na terra.

Nesse sentido, os modelos dos heróis que assumem a figura central das grandes narrativas não

apresentam tantas distinções quanto se imagina, independentemente da cultura a que pertencem. Por

exemplo, nas tradições mais antigas, quando as fronteiras geopolíticas estavam longe de ter o desenho

que possuem no mundo globalizado de hoje, era comum os guerreiros saírem em busca de monstros

gigantes para enfrentarem, à força, o terror de um mundo desconhecido. No entanto, o cerne dessa

pressuposição revela que a mão do homem ainda não havia delineado os traços de uma cultura.

(28)

desdobramento da cultura. Todavia, personagens religiosas como Buda, Cristo e Mohamed, encerram

um fundamento em comum: a trajetória, bem como seu intuito de retornar com o plano de uma nova

arquitetura de sociedade. Ou seja, eles partem numa empreitada com dever a cumprir a fim de, tempos

depois, retornar com uma nova visão acerca da compreensão do mundo real. Campbell (1988, 12'19')6

sintetiza o caminho épico do herói mitológico em uma tricotomia: “departure; fulfillment; return”.7

Ainda segundo Joseph Campbell, um dos maiores estudiosos da mitologia universal, as mais

diversas manifestações culturais humanas decorrem do mito. De acordo com ele, “As religiões,

filosofias, artes, formas sociais do homem primitivo e histórico, descobertas fundamentais da ciência e

da tecnologia e os próprios sonhos que nos povoam o sono surgem do círculo básico e mágico do mito.”

(2000, p.15)

Isso porque os símbolos da mitologia não podem ser fabricados, inventados ou ordenados. Ao

contrário, são produções espontâneas da psique e revelam em si o poder criador de sua fonte, ou seja, é

por meio do mito que se evidencia a força criadora da mente humana.

Além disso, o estudioso ressalta que a função inicial da mitologia e dos ritos é proporcionar os

símbolos que permitem que o espírito humano avance, uma vez que, do contrário, podemos permanecer

presos na infância, seja pelo apego exacerbado à imagem da mãe, no caso dos homens, seja pela busca

do amor em figuras mitológicas, no caso das mulheres. Desse modo, a mitologia é fundamental para

viabilizar a passagem para a vida adulta.

Nesse contexto, apoiado à psicanálise, Campbell (2000) atesta que os mitos correspondem aos

sonhos coletivos da humanidade e expõem o ciclo da autodescoberta, isto é, da inocência à maturidade.

Nisso consiste, segundo o estudioso, a razão para a onipresença do monomito e da universal paixão

humana pelas narrativas heroicas: a trajetória do herói lendário traduz em idioma coletivo os desafios,

as ciladas e as possíveis gratificações do desenvolvimento psíquico de cada ser humano.

Nesse sentido, o caminho percorrido pelo herói representa a viagem interior do indivíduo com

destino ao seu crescimento e amadurecimento espiritual. As regiões ameaçadoras e desconhecidas do

inconsciente são figuradas pelos terrenos de perigos, trevas e armadilhas em que o herói é obrigado a

ingressar. Os recursos próprios, porém ainda desconhecidos, são representados pelos ajudantes ou

objetos mágicos que ele encontra em seu percurso. O inimigo, a quem o herói deve vencer para salvar a

      

(29)

humanidade, desempenha o papel do próprio indivíduo, alegorizando a questão de ser ele próprio seu

maior rival. Por isso, em grande parte das histórias, o momento da vitória do herói é precisamente o

momento de sua morte: este é o momento da autodescoberta; da morte do ego e, por fim, da passagem

para a maturidade, por meio da eternização de sua heroicidade.

Ainda conforme Campbell, o herói é aquele que realiza ou encontra algo excepcional, que

transcende a esfera comum da experiência.

[...] é o homem ou mulher que conseguiu vencer suas limitações históricas pessoais e locais e alcançou formas normalmente válidas, humanas. As visões, ideias e inspirações dessas pessoas vêm diretamente das fontes primárias da vida e do pensamento humanos. Eis por que falam com eloquência, não da sociedade e da psique atuais, em estado de desintegração, mas da fonte inesgotável por intermédio da qual a sociedade renasce. O herói morreu como homem moderno; mas, como homem eterno – aperfeiçoado, não específico e universal – renasceu. (2000, p. 28)

O herói é, nesse contexto, alguém que supera seus próprios limites, além dos limites externos

que o rodeiam. É alguém que se inspira no passado, que busca nos primórdios da vida e pensamento

humano base para constituir seus princípios. Por essa razão, é, geralmente, loquaz; expressivo. O herói,

como figura, renasce neste passado e nisso constitui sua principal tarefa subjacente: retornar ao

contexto atual e ensinar a lição de vida que aprendeu.

Para tanto, é preciso que se retire do espaço mundano e inicie uma trajetória “pelas regiões

causais da psique, onde residem efetivamente as dificuldades, para torná-las claras, erradicá-las em

favor de si mesmo” (CAMPBELL, 2000, p. 27) Apenas desse modo, poderá vencer os traumas e

estigmas infantis para, então, ter domínio das experiências e assimilações sem distorções, ou seja, ter

clareza para discriminar o que é verdadeiro do que é falso.

Assim, pode-se entender a trajetória do herói como uma simbologia do percurso realizado rumo

ao autoconhecimento ou ao conhecimento de algo maior. A trajetória do herói o transforma e,

consequentemente, transforma todo o mundo, uma vez que o caminho trilhado por ele não terá de ser

trilhado por outros para que atinjam um determinado fim. O fio desta trilha deve apenas ser seguido

para um caminho já plenamente conhecido.

Há, conforme especifica Campbell (2000), dois tipos de proezas realizadas pelo herói, sendo a

primeira física, na qual se cumpre um ato heroico físico, como um ato de guerra, por exemplo; e a outra

(30)

relatar essa experiência, ou seja, cumpre um ciclo de ida e volta.

Nisso consiste a lógica da trajetória seguida pelo herói: abandonar uma determinada condição;

encontrar a fonte da vida e retornar para uma condição diferente, assim como em um rito de passagem.

A criança, ao deixar a infância para ingressar na vida adulta, sofre uma espécie de morte das suas

características infantis, para então ressurgir com as características de um adulto responsável e é

justamente nessa morte simbólica que reside o sentido da trajetória do herói.

Nesse sentido, Otto Rank (1909), no livro O mito do nascimento do herói, afirma que todo

humano é herói ao nascer, já que enfrenta uma enorme transformação, da fecundação ao nascimento.

Assim, a figura da mãe seria também heroica nesse processo. Essa seria, segundo o autor, a forma

primária do herói. Há, entretanto, uma longa viagem simbólica a ser efetuada pelo indivíduo para que

ele atinja a heroicidade.

De acordo com a distinção apontada por Campbell (2000), há três tipos de heróis. O primeiro,

muito comum em mitos celtas, é conduzido a uma aventura, sem saber com precisão o que está fazendo.

Quando se dá conta, está em meio a uma peripécia. Há também o herói que decide, de modo consciente,

partir para realizar sua proeza. Trata-se de uma busca pelo próprio destino, natureza ou origem. Há

ainda o herói que é lançado, mesmo contra a sua vontade, a uma situação de risco, como ocorre na

convocação para o exército. Assim, há um objetivo moral no heroísmo, como salvar um povo, uma

pessoa ou ideia. A moralidade consiste, portanto, no sacrifício que o herói faz por algo.

Dr. House, protagonista da série homônima e objeto de estudo desta análise, adéqua-se à

segunda categoria traçada pelo teórico, uma vez que, obstinado, escolhe os casos médicos que não

foram solucionados por outros profissionais e que, de um modo geral, apresentam-se intrincadas pela

falta de relação entre os sintomas apresentados. Encontrar uma resposta é sua proeza e, para atingir

esse objetivo, House quebra regras éticas, morais e legais, mas frequentemente salva vidas que médicos

comuns teriam perdido.

Para Campbell (2000), o que diferencia as histórias de heróis de uma cultura para outra é o grau

de ação ou de iluminação. Um exemplo típico é o herói cuja missão consiste em matar monstros. Isso

provém de um período histórico em que o homem construía seu mundo com base em um mundo

selvagem, ainda sem forma, ao menos a forma adequada para o homem. Desse modo, com base nessa

analogia histórica, pode-se afirmar que o herói evolui ao longo do tempo, assim como outros conceitos

(31)

Na mitologia grega, por exemplo, os heróis tinham por principal missão lutar por seu povo em

um contexto de guerra e rivalidade entre nações. Aquiles, participante da guerra de Tróia e protagonista

da Ilíada, de Homero, tornou-se famoso por sua bravura e força. O herói era um semideus, filho de

Tétis (deusa grega do mar) e Peleu (rei dos mirmidões, guerreiros que, posteriormente, lutariam ao lado

de Aquiles), que foi banhado, ainda recém-nascido, nas águas do rio Estige, o qual, segundo a

mitologia, dava sete voltas no inferno. Isso o tornou invulnerável, com exceção do calcanhar, que não

foi mergulhado, pois era por ele que a mãe o segurava.

Na contemporaneidade, em uma sociedade ocidental, um herói como Aquiles, Clássico, não

corresponde aos anseios e necessidades do indivíduo moderno, embora ele ainda seja um modelo

recorrente que inspira outros perfis de herói que atendam aos dilemas modernos. A título de exemplo,

pode-se citar o protagonista do filme Tropa de Elite, Capitão Nascimento, que faz parte de um grupo

policial incorruptível, que luta para combater o crime nas favelas do Rio de Janeiro do século XXI.

Evidencia-se, assim, que a figura heroica representa um todo, bem como o período em que este

está inserido. Para tanto, passa por mudanças conceituais de personalidade e comportamento que

devem harmonizar-se com o local e momento histórico que retratam.

De acordo com o teórico, é na perda da autopreservação; do ato primário de pensar

primeiramente em si próprio e render-se a outro que consiste uma das provações do herói a qual

envolve uma grande transformação da consciência. É justamente disso que tratam os mitos, da

transformação da consciência.

Faz-se pertinente afirmar, então, que é na autorrenúncia, no ato de abdicar-se de seus propósitos

e interesses individuais que reside a constituição do herói. É a partir disso que sua forma de pensar e de

enxergar o mundo sofrerá uma mudança fundamental no que concerne o comportamento considerado

ético e isso só se torna possível por meio do enfrentamento de provas.

A esse respeito, Campbell (2000) afirma que, nos temas mitológicos, ao receber o chamado ou

ser conduzido para sua jornada, o herói está, de um modo geral, pronto para encará-la e, inclusive, o

ambiente e as condições ao seu redor harmonizam-se com sua prontidão. A personagem Dr. House

ilustra essa questão na medida em que suas grandes epifanias, que frequentemente solucionam os casos

médicos, decorrem de situações prosaicas, como um diálogo sobre assuntos alheios com algum

membro da equipe ou, com maior recorrência, Wilson, seu melhor amigo. Além disso, cabe considerar

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está preparado para a jornada de investigação e conta com a contribuição dos elementos que o cercam.

Ademais, Campbell (2000), ao traçar uma análise da personagem Han Solo, da primeira trilogia

do filme Star Wars, evidencia um tipo de herói que, a priori, mostra-se prático; materialista e egoísta,

mas, no decorrer da narrativa, revela-se compassivo e percebe-se que há algo mais, além da ambição

pessoal, que o mobiliza.

House, em diversas passagens do seriado, faz questão de salientar que não se preocupa com os

pacientes ou seus dramas pessoais e que o que o prende ao caso é a atração que sente pelo enigma. No

decorrer das temporadas, entretanto, o médico tem atitudes que contradizem essa postura.

Outro ponto discutido pelo teórico, ainda tomando como base o épico estelar de George Lucas,

é a analogia que se pode estabelecer entre a cena em que as protagonistas da história estão em um

compactador de lixo quando as paredes começam a se fechar e o ventre da baleia em que, na passagem

bíblica, Jonas é mantido. Para o estudioso, este é um lugar que simboliza tudo o que está no

inconsciente. Sob uma interpretação psicológica, a água simboliza o inconsciente ao passo que a

criatura aquática simboliza a diligência do inconsciente que, devido ao fato de ser poderoso e perigoso,

tem de ser controlado pela consciência que, por sua vez, é um órgão secundário que deve servir à

natureza humana do corpo.

O herói, ao iniciar sua jornada, retira-se do plano iluminado, já conhecido e dominado por ele, e

submerge à escuridão, ou seja, ao desconhecido. É nesse ato que ficará frente a frente com seu monstro

e conseguirá ou não derrotá-lo. Caso o vença, entra, finalmente, em contato com sua natureza humana.

House é declaradamente racional e lógico em suas decisões e atitudes, além de ser

absolutamente cético nas questões que tangem o sobrenatural. Em algumas passagens da série,

entretanto, essa postura é colocada à prova e resultam em sensíveis transformações no comportamento

do personagem. É no último episódio da série, porém, que o médico enfrentará o ventre da baleia e

encontrará sua natureza humana.

No episódio Holding On, penúltimo da 8ª e última temporada, House recebe a notícia de que

perderá sua condicional e terá de voltar à prisão para cumprir mais seis meses de pena, enquanto

Wilson, seu melhor amigo e mentor, conforme será desenvolvido à frente, conclui que terá apenas mais

cinco meses de vida, devido ao câncer já evoluído, recentemente descoberto. No episódio seguinte, o

protagonista acorda em um prédio em chamas, tendo delírios com personagens da série que já não

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questões pendentes.

Enquanto o prédio incendeia, as personagens aparecem, uma a uma, para mostrar a House suas

fraquezas e as razões pelas quais merece viver ou entregar-se à morte. Kutner, por exemplo, um dos

funcionários preferidos de House, durante a quarta e quinta temporadas da série, suicida-se no final

desta última sem motivos aparentes e deixa o médico abalado muito mais por não ter percebido à

iminência do ato que pela perda. Em meio aos delírios, o protagonista questiona a razão pela qual vê o

funcionário morto e este justifica dizendo que House se identifica, pois é tão autodestrutivo quanto ele,

suicida. Âmber, por sua vez, outra ex-funcionária morta, aponta para House que seu único interesse

real sempre foi os enigmas, ou seja, concluir os diagnósticos que ninguém mais conseguira.

Pode-se dizer que, neste momento da série, House enfrenta seus demônios, ou seja, o monstro

que o herói deve derrotar. Ao forjar a própria morte em nome da amizade que tem por Wilson, o

médico vence o desafio e tem, finalmente, um encontro com sua essência humana, uma vez que se

abdica do racionalismo em detrimento de um sentimento. House mostra-se capaz de renunciar a seus

interesses particulares para se fazer presente nos momentos finais da vida do amigo. É justamente nessa

escolha, no ato de render-se, que consiste a mudança de consciência que, conforme Campbell (2000), é

essencial para o surgimento do herói.

1.1 A Jornada do herói: um chamado à aventura

Para Campbell (apud. VOGLER, 1997), há um fio condutor que liga todas as histórias contadas

no mundo. Desse modo, a mesma história seria, segundo ele, contada e recontada desde os mitos

antigos até os maiores sucessos de bilheteria do cinema contemporâneo. A essa história repetida no

interior de outras histórias o estudioso nomeia de A jornada do herói mitológico.

A partir disso, o teórico defende que qualquer história pode ser estruturada com base no

esquema da Jornada do herói ou, ao contrário, é possível identificar em qualquer história todos os

passos desse trajeto. Pautado nesses conceitos, Christopher Vogler, roteirista de Hollywood e autor do

livro A Jornada do Escritor (1997), elaborou um programa similar, mas voltado para as narrativas

contemporâneas, como as veiculadas na TV ou no cinema, por exemplo. Ele apresenta as etapas que

compõem uma história estruturada segundo a jornada de Campbell.

(34)

herói em três atos, sendo o primeiro a apresentação da personagem heroica; o segundo, o

desenvolvimento do conflito que esta enfrentará e o terceiro, a resolução.

No primeiro ato, o herói é, em um primeiro estágio, mostrado em seu mundo cotidiano como

uma pessoa comum, o que, conforme o autor, é uma forma de estabelecer um vínculo entre a

personagem e o público.

Como numa apresentação social, o Mundo Comum estabelece um vínculo entre as pessoas e destaca alguns interesses comuns, para que seja possível o diálogo começar. De algum modo, devemos reconhecer que o herói é como nós. Num sentido muito real, uma história nos convida a entrar na pele do herói, ver o mundo com seus olhos. Como se fosse mágica, projetamos no herói uma parte de nossa consciência. Para que essa mágica funcione, é preciso que se estabeleça um vínculo forte de solidariedade ou interesse comum entre o herói e o público. (1997, p. 99)

Vogler (1997) ressalta ainda que, para que esse vínculo entre o herói e os espectadores ocorra,

não é necessário que aquele seja bom ou simpático, mas é preciso que ele seja relacionável8, ou seja,

faz-se mister que haja empatia por parte do público. Assim, segundo o autor, para que ocorra essa

identificação, o herói deve apresentar impulsos; objetivos e desejos universais, pois “Todos somos

capazes de nos relacionar com impulsos fundamentais, tais como a necessidade de reconhecimento,

afeição, aceitação ou compreensão”. (1997, p. 100)

Cabe relacionar, nesse ponto, às acepções do estudioso, a apresentação do herói que compõe o

corpus desta pesquisa. House é, desde o episódio piloto, apresentado ao público como um sujeito

antissocial; mal-humorado e rabugento. Em contrapartida, sua obstinação pela resolução dos casos

médicos, seu relacionamento obsessivo com a verdade e sua convivência permanente com a dor física e

emocional geram, no expectador, um sentimento de solidariedade e promovem, portanto, a

identificação imprescindível entre o público e o herói.

O roteirista acrescenta que os heróis dos contos de fadas têm em comum a carência de algo que

lhes foi tirado. De um modo geral, é frequente que essa ausência recaia sobre a unidade familiar para

dar movimento à história. Nesse sentido, esse gênero trata da busca por um complemento e da luta por

integridade.

Entretanto, não apenas os contos de fadas apresentam heróis com essa característica. O herói

      

Imagem

Figura 1: Estrutura do Mito
Figura 3: Trecho de diálogo entre House e uma freira em que o médico expressa sua, característica, ironia e ceticismo
Figura 5: House e sua debilidade física – Temporada 1 ep:1 3'14 fonte: Netflix
Fig. 19: Dr. Chagley
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Referências

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