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Hermenêutica dos direitos fundamentais em um contexto pós-positivista

1. DO DIREITO À ECOLOGIA

1.3. A concretização de direitos fundamentais e a construção da norma ambiental

1.3.1. Hermenêutica dos direitos fundamentais em um contexto pós-positivista

Antes de avançarmos no estudo mais detido da hermenêutica dos direitos fundamentais, forçoso contextualizá-la, demonstrando o cenário no qual os processos interpretativos estão inseridos e, sobretudo, em qual fonte buscaremos o já mencionado contato com a realidade. A mudança para o paradigma do intérprete-concretizador, com um papel de destaque na construção do sentido último da norma (que será mais bem desenvolvido nos próximos tópicos), passa pela superação de uma matriz normativa extremamente formalista, chegando àquilo que Tavares denomina de “abertura epistemológica do Direito Constitucional”170, típica de um

cenário que se pode chamar de pós-positivista.

A confiança no direito natural – como “um conjunto de valores e de pretensões humanas legítimas que não decorrem de uma norma jurídica emanada do Estado”171 – foi inicialmente

169 TAVARES, André Ramos. Fronteiras da Hermenêutica Constitucional. São Paulo: Editora Método, 2006, p. 51.

170 Ibid., p. 19.

171 BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (Pós-

modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ - Centro de Atualização

Jurídica, v. I, nº. 6, setembro, 2001. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em 18 de junho de 2013, p. 19.

suplantada pelas revoluções liberais, que, mesmo inspiradas até certo ponto no movimento anterior, acabaram por dogmatizar o direito, transpondo-o para códigos:

O advento do Estado liberal, a consolidação dos ideais constitucionais em textos escritos e o êxito do movimento de codificação simbolizaram a vitória do direito natural, o seu apogeu. Paradoxalmente, representaram, também, a sua superação histórica. No início do século XIX, os direitos naturais, cultivados e desenvolvidos ao longo de mais de dois milênios, haviam se incorporado de forma generalizada aos ordenamentos positivos. Já não traziam a revolução, mas a conservação. Considerado metafísico e anticientífico, o direito natural é empurrado para a margem da história pela onipotência positivista do século XIX172.

Este rompimento é visualizado pelo surgimento do positivismo jurídico, enquanto tentativa de se criar uma ciência do Direito. O movimento de codificação passou a identificar o Direito como a lei, em razão de uma demanda burguesa de segurança em face das arbitrariedades do Estado173. O resultado disto foi o afastamento dos elementos exteriores ao

Direito – o ordenamento jurídico, no positivismo, “contém conceitos e instrumentos suficientes e adequados para solução de qualquer caso”174.

Se o positivismo alçou a lei à condição de fonte primária – senão única – do Direito, é igualmente marcante o papel atribuído ao intérprete, despido de qualquer viés criador, vinculado estritamente ao texto escrito. O positivismo, como aponta Tavares, trouxe à ciência jurídica um aspecto de unidisciplinaridade e de fechamento175, afastando-a assim de outras

ciências – como se a norma, per se, fosse capaz de trazer soluções aos casos a ela submetidos. O ápice deste movimento se deu com a Teoria Pura de Kelsen – pura justamente por prever a compreensão do Direito apenas pelo Direito.

A derrocada do positivismo vem como consequência dos regimes totalitários da metade do século XX, como o nazismo alemão. A norma foi utilizada para justificar inúmeras condutas cruéis praticadas contra seres humanos. “O fetiche da lei e o legalismo acrítico, subprodutos do positivismo jurídico, serviram de disfarce para autoritarismos de matizes variados”176. O Direito

como sinônimo de lei – o próprio positivismo – foi de herói (dada sua origem nas revoluções liberais) a vilão, pois era insuficiente para dar as repostas necessárias à sociedade emergente do pós-guerra (Segunda Guerra Mundial). “A superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso político do positivismo abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de

172 BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (Pós-

modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ - Centro de Atualização Jurídica, v. I, nº. 6, setembro, 2001. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em 18 de junho de 2013, p. 15-16.

173 TAVARES, André Ramos. Fronteiras da Hermenêutica Constitucional. São Paulo: Editora Método, 2006, p. 23.

174 BARROSO, Luís Roberto. Op. cit., p. 25. 175 TAVARES, André Ramos. Op. cit., p. 28. 176 BARROSO, Luís Roberto. Op. cit., p. 26.

reflexões acerca do Direito, sua função social e sua interpretação”177 – momento este que vem

sendo denominado como pós-positivismo.

Não pretendemos aqui, definitivamente, afirmar que a indicação deste período como

pós-positivista é inequívoca, nem mesmo que suas características são igualmente inquestionáveis. Pelo contrário, o objetivo é apresentar particularidades do atual momento histórico vivido pelo Direito para, em seguida, termos algumas premissas solidificadas e aptas a estruturar uma exploração interdisciplinar dos direitos fundamentais.

Para nós, um dos principais pontos a ser destacado, reiteramos, é a superação da legalidade pura e simples. Neste contexto, um dos movimentos responsáveis por este passo de transformação é o constitucionalismo, que concebe a Constituição – e a normatividade a ela atribuível – como um documento permeável a influxos da mais variada ordem, compreendendo “valores jurídicos suprapositivos”178, ou mesmo elementos de outras ciências e áreas do

conhecimento. Dentre várias coisas, o constitucionalismo impôs ao Direito a absorção de outros saberes179, seja como instrumento para a compreensão de sentidos normativos da própria

Constituição, seja para legitimá-la como um conjunto de regras a regular a vida social. Este cenário permite o desenvolvimento de um novo modelo, bem definido por Bonavides:

O novo método é pluridimensional: abre-se aos valores, aos fins, às razões históricas, aos interesses, a tudo enfim que possa ser conteúdo e pressuposto da norma. O sistema constitucional já não é tão-somente o sistema da Constituição normativa, mas está acrescido de todo aquele complexo de forças, relações e valores, que o positivismo formalista deliberadamente excluía ou ignorava e cuja totalidade, compõe a ordem material da Constituição, formando um núcleo ou círculo mais largo e compreensivo, excepcionalmente rico de conteúdo180-181.

O Direito deixa de ser unidisciplinar, passando a aceitar como elemento básico a multidisciplinaridade. Esta abertura, em termos práticos, se dá com a utilização de fórmulas textuais carregadas de abstração e generalidade182. O Direito não é mais visto como uma ciência

fechada em razão destas características – não mais um Direito puro, ao contrário do diagnóstico de Kelsen. E não é só: “a abertura das normas constitucionais [...] possibilita a evolução do

177 BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (Pós-

modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ - Centro de Atualização Jurídica, v. I, nº. 6, setembro, 2001. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em 18 de junho de 2013, p. 27.

178 Ibid., p. 30.

179 TAVARES, André Ramos. Fronteiras da Hermenêutica Constitucional. São Paulo: Editora Método, 2006, p. 41.

180 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 28 ed. São Paulo Malheiros 2013, p. 141.

181 É bom que se diga, até por honestidade acadêmica, que esta mesma passagem foi por nós identificada no livro de Bastos e, em seguida, fomos buscar no original (Cf. BASTOS, Juliana Cardoso Ribeiro. Constituição Econômica e a Sociedade Aberta dos Intérpretes. São Paulo: Verbatim, 2013).

Texto Constitucional, o acompanhamento do desenvolvimento da realidade, superando-se, assim, a mentalidade que se tinha acerca do sistema jurídico [...]”183.