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Seriam as mutações aleatórias e a seleção natural as únicas forças evolutivas?

2. DA ECOLOGIA DE VOLTA AO DIREITO

2.9. Algumas notas sobre a evolução e a nova visão aplicável à vida

2.9.1. Seriam as mutações aleatórias e a seleção natural as únicas forças evolutivas?

Não pretendemos – e nem temos elementos para tanto – definir as mutações genéticas com precisão maior do que aquela já efetuada neste trabalho. Acrescente-se que estas alterações genéticas ocorrem quando “algo no meio ambiente – digamos, radiação – quebra uma ligação química ou forja uma ligação indesejada”605. Estas modificações são responsáveis pela geração

ou aniquilamento de capacidades. Os indivíduos sobreviventes são aptos a transmitir tais características aos descendentes606. Esta é a síntese do processo.

O que os especialistas têm afirmado, no entanto, parece desencorajar os defensores das mutações aleatórias como única força motriz da evolução. Segundo Margulis e Sagan, tais mutações mostram-se insuficientes para elucidar o caminho evolutivo até a diversidade conhecida atualmente607.

Estimou-se que esses erros casuais ocorrem a uma taxa de cerca de um para várias centenas de milhões de células em cada geração. Essa freqüência não parece suficiente para explicar a evolução da grande diversidade de formas de vida, dado o fato bem conhecido de que, em sua maior parte, as mutações são prejudiciais e só um número muito pequeno delas resulta em variações úteis608.

601 CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 181. 602 Ibid., p. 182.

603 Ibid., p. 182. 604 Ibid., p. 182.

605 MARGULIS, Lynn; SAGAN, Dorion. Microcosmos: Quatro Bilhões de Anos de Evolução Microbiana. São Paulo: Cultrix, 2002, p. 53.

606 Ibid., p. 53. 607 Ibid., p. 53.

Não se trata de negar a importância dos conceitos apontados por Darwin – e nem seríamos pretensiosos a este ponto –, mas de reconhecer a presença de outras forças evolutivas – ou “dinâmicas evolutivas”, como apontam Margulis e Sagan609.

Uma primeira força alternativa é a denominada “recombinação de ADN”, por meio da permuta de genes entre organismos, como ocorre com as bactérias610. “Ao longo dos últimos

cinquenta anos ou mais, os cientistas observaram que os procariontes611 transferem de forma

rotineira e rápida parte do material genético para outros indivíduos”612. Neste processo, as

bactérias utilizam genes advindos de outros organismos e realizam uma “mistura” entre os materiais genéticos613. O mais surpreendente deste processo é a velocidade das trocas, que

supera sensivelmente aquela atribuível pela mutação: “os organismos eucariontes levariam 1 (um) milhão de anos para se adaptar a uma mudança em escala mundial, ao passo que as bactérias levariam poucos anos”614.

A segunda força alternativa, mais recentemente apontada por Lynn Margulis, decorre da simbiose. A simbiose “pode ser definida como uma vida íntima em conjunto de dois ou mais organismos de espécies diferentes, denominados simbiontes”615. A concepção desta teoria passa

pela ideia de associação entre microrganismos, seja por necessidade ou por mero acaso. O resultado deste processo de união – estável e duradoura, diga-se – é a transformação das células hóspedes em organelas das células hospedeiras – criando um novo tipo de organismo616. Trata-

se da evolução de algumas entidades biológicas por meio de uma “fusão entremeada de parceiros em uma simbiose”617. Capra também sintetiza bem esta concepção:

A simbiose, a tendência de diferentes organismos para viver em estreita associação uns com os outros, e, com freqüência, dentro uns dos outros (como as bactérias dos nossos intestinos), é um fenômeno difundido e bem conhecido. No entanto, Margulis deu um passo além e propôs a hipótese de que simbioses de longa duração, envolvendo bactérias e outros microorganismos que vivem dentro de células maiores,

609 MARGULIS, Lynn; SAGAN, Dorion. Microcosmos: Quatro Bilhões de Anos de Evolução Microbiana. São Paulo: Cultrix, 2002, p. 27.

610 CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 184.

611 Segundo Art, o procarionte (ou procariote) é “uma célula ou organismo destituído de um núcleo distinto. Os procariotes incluem as bactérias, as algas-verde-azuladas e os actinomicetos” (ART, Henry W. Dicionário de

Ecologia e Ciências Ambientais. 2ª ed. São Paulo: Editora UNESP, p. 428). Como ensina Margulis e Sagan, a vida na Terra é dividida em duas classes, os procariontes supramencionados e os eucariontes, formados por todas as demais formas de vida – ou, como perfilha Art, são aqueles “organismos cuja célula ou células têm um núcleo distinto rodeado por uma membrana, bem como uma certa quantidade de organelas distintas dentro do citoplasma” (ART, Henry W. Op. cit., p. 219)

612 MARGULIS, Lynn; SAGAN, Dorion. Op. cit., p. 27. 613 Ibid., p. 27.

614 Ibid., p. 27-28.

615 MARGULIS, Lynn. Os Primórdios da Vida: os Micróbios têm Prioridade. In: THOMPSON, William Irwin (Org..). Gaia: Uma Teoria do Conhecimento. São Paulo: Gaia, 1990, p. 95.

616 Ibid., p. 95.

617 BEGON, Michael; TOWNSEND, Colin R.; HARPER, John L. Ecologia: De Indivíduos a Ecossistemas. 4ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2007, p. 407.

levaram, e continuam a levar, a novas formas de vida. Margulis publicou, pela primeira vez, sua hipótese revolucionária em meados da década de 60, e ao longo dos anos a desenvolveu numa teoria madura, hoje conhecida como "simbiogênese", que vê a criação de novas formas de vida por meio de arranjos simbióticos permanentes como o principal caminho de evolução para todos os organismos superiores.618

Um exemplo seriam as mitocôndrias619. As bactérias são a forma mais primitiva de vida

no Planeta Terra, das quais se originam as formas mais complexas de vida hoje conhecidas. No passado – algo em torno de dois bilhões de anos – algumas bactérias maiores se alimentavam de outras menores, “englobando-as com sua membrana celular e lentamente digerindo seu conteúdo”620. Por alguma razão, em um momento específico desta história, a bactéria não foi

efetivamente digerida e acredita-se – com provas relevantes sobre isso – que tais bactérias precederam as mitocôndrias, presentes nas células de grande parte dos eucariontes. Como demonstraram esta tese? Os cientistas descobriram que o DNA621 das mitocôndrias não possui

semelhanças com o DNA do restante da célula e, mais do que isso, assemelham-se muito com o DNA de determinadas bactérias622.

Esta nova concepção já foi muito bem assimilada pela comunidade científica, como apontam Begon, Townsend e Harper623, além de Dawkins624. O seu grande salto, porém, está

em considerar a cooperação625 como um elemento central da evolução, ao contrário dos

darwinistas, que enxergavam na competição a grande força motriz deste processo626. Segundo

Margulis e Sagan, “a noção de evolução como uma competição sangrenta crônica entre indivíduos e espécies [...] dissolve-se diante de uma nova visão de cooperação contínua, forte interação e dependência mútua entra as formas de vida”627. Por isso, para os autores, é tranquilo

afirmar que a “vida não se apossa do globo pelo combate, mas sim pela formação de redes”628.

618 CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 185.

619 Segundo Art, mitocôndria são “organelas especializadas, capsulares ou filamentosas, no citoplasma de células que contêm material genético e muitas enzimas” (ART, Henry W. Dicionário de Ecologia e Ciências Ambientais. 2ª ed. São Paulo: Editora UNESP, p. 363)

620 LOPES, Reinaldo José. Além de Darwin – Evolução: o que sabemos sobre a história e o destino da vida. São Paulo: Globo, 2009, p. 111.

621 Segundo Art, DNA é uma “molécula orgânica complexa encontrada em todos os animais, plantas e na maior parte dos vírus, que contém a informação genética transmitida de uma geração à seguinte. [...]” (ART, Henry W. Op. cit., p. 168-169)

622 LOPES, Reinaldo José. Op. cit., p. 111.

623 BEGON, Michael; TOWNSEND, Colin R.; HARPER, John L. Ecologia: De Indivíduos a Ecossistemas. 4ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2007, p. 407.

624 O autor, embora reconheça a teoria de Margulis, apresenta algumas críticas a parte dela, que, por não alterarem as conclusões aqui lançadas e serem sobremaneira técnicas, deixaremos de lado (DAWKINS, Richard. A Grande

História da Evolução. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 620).

625 Cooperar naquele sentido de agir conjuntamente, já abordado por nós alhures. 626 CAPRA, Fritjof. Op. cit., p. 185.

627 MARGULIS, Lynn; SAGAN, Dorion. Microcosmos: Quatro Bilhões de Anos de Evolução Microbiana. São Paulo: Cultrix, 2002, p. 26.

O reconhecimento da simbiose como uma força evolutiva importante tem profundas implicações filosóficas. Todos os organismos maiores, inclusive nós mesmos, são testemunhas vivas do fato de que práticas destrutivas não funcionam a longo prazo. No fim, os agressores sempre destroem a si mesmos, abrindo caminho para outros que sabem como cooperar e como progredir. A vida é muito menos uma luta competitiva pela sobrevivência do que um triunfo da cooperação e da criatividade. Na verdade, desde a criação das primeiras células nucleadas, a evolução procedeu por meio de arranjos de cooperação e de co-evolução cada vez mais intrincados629.

Embora Margulis tenha apresentado uma base teórica hoje inquestionável sobre a cooperação, foi um autor russo – Kropotkin – um dos primeiros a apresentar críticas630a Darwin

e sua “ênfase exagerada na seleção natural como uma luta sangrenta”631. O pesquisador analisou

a gélida Sibéria, e constatou que para enfrentar as condições adversas do clima, muitas espécies animais sobreviventes mantinham relações de suporte mútuo. “Onde a vida animal era abundante ele viu colônias de roedores, rebanhos de cervos e outros organismos, as migrações de pássaros, e assim por diante – em outras palavras, a ajuda mútua na luta contra a adversidade física e outras espécies”632. Para o autor, a importância da cooperação e da competição poderia

variar conforme as circunstâncias envolvidas, sendo que a seleção natural tenderia a favorecer, em longo prazo, a cooperação. A “ajuda mútua confere uma vantagem na luta pela sobrevivência à medida que provê uma melhor defesa contra predadores e um ataque mais eficaz contra a presa”633-634.

Esta nova concepção sobre a evolução nos coloca em outro patamar de compreensão das relações existentes na natureza. O padrão da vida definido por Capra como sendo de rede – a teia da vida, a ser mais bem explorada adiante – é identificado não só agora, mas em toda a história do Planeta e projetado para o futuro, no intricado desenvolvimento do processo da vida – a evolução. Trata-se da constatação da inter-relação e da cooperação como elementos fundamentais em todo o curso do universo. “Isto é bastante diferente de ver a vida como uma ‘luta pela existência’ Darwiniana; isto é verdadeiro localmente, mas não globalmente. Há, propriedades embutidas, decorrentes das redes que, no cômputo geral, operam para reduzir esta luta”635. Diga-se, isto não representa a negação das ideias de Darwin, mas sua complementação.

629 CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 193.

630 O uso deste vocábulo aqui não pode ser entendido como uma ideia de afastamento da teoria darwiniana. A importância de Darwin – até os dias de hoje – é absolutamente inquestionável e ainda não superada. Quando dizemos “criticas” queremos mais frisar um olhar diferenciado sobre as bases desta teoria.

631 ODUM, Eugene P.; BARRET, Gary W. Fundamentos de Ecologia. São Paulo: Cengage Learning, 2011, p. 304.

632 TODES, Daniel P. Darwin Without Malthus – The Struggle for Existence in Russian Evolutionary Thought. New York: Oxford University Press, 1989, p. 129.

633 Ibid., p. 134.

634 A importância de Kropotkin é muito mais histórica do que científica propriamente dita. Trazemos a notícia da sua existência mais pela natureza do questionamento e pelo momento em que foi efetuada (1902).

Esta nova acepção constatou um equívoco na teoria darwinista: “ao longo de todo o mundo vivo, a evolução não pode ser limitada à adaptação de organismos ao seu meio ambiente, pois o próprio meio ambiente é modelado por uma rede de sistemas vivos capazes de adaptação e de criatividade”636. Há uma “sutil interação entre competição e cooperação, entre criação e mútua

adaptação”637.